Os Óculos Slow

maio 11, 2023
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8 min de leitura

Por Ana Carolina Eiris Pimentel

“… olhe muito (pense pouco) e tente fazer parecido com o que você vê. Compreenda primeiro o outro em você.” (José Angelo Gaiarsa)

Ao longo da minha experiência como enfermeira noto os olhares intensos dos pacientes. O olhar é sempre algo muito misterioso e extremamente vasto de conhecimento humano, imagina o tanto que já foi visto por quem está naquele leito. Os pacientes são vigilantes, eles são atentos a tudo e a cada um que passa pela sua cabeceira. Ele pergunta: “É você hoje de novo minha filha? Não está cansada não?”; “Aquele rapaz não está bem né, o que houve com ele?” ou às vezes nem precisam dizer nada, basta uma expressão, um levantar de ombros, e a opinião deles sobre algo já foi dada.

            Lembro-me de quando eu era ainda jovem, nem sonhava em ser enfermeira, minha avó estava internada no CTI e durante uma das visitas diárias uma das médicas disse à minha mãe que ela durante a noite abriu os olhos. Entendi naquele momento que ela contou esse fato para nos confortar e reforçar que apesar de tudo ela ainda estava ali. E me perguntei: por que então não abrir os olhos quando estamos ali ao seu lado? Será que ela não quer nos ver? Isso ficou guardado tão forte em mim que cada vez que vejo uma situação parecida eu entendo hoje que ela apenas não queria se ver.

            Achamos muitas vezes que o olhar é para enxergar, de fato isso é óbvio. Mas não nos damos conta que nossos olhos refletem a nossa consciência, memória e propriocepção. Eles funcionam apenas como portais entre você e eu. A luz bate em você, é refletida no fundo do meu cérebro e ele repassa essa imagem e então te vejo, é quase uma representação. Eles sozinhos só me passam algumas informações, agora… Eles acompanhados de um contexto passam sim a alma de cada um.

Edgar Allan Poe em seu conto “O Corvo” nos conta a famosa frase “os olhos são a janela para a alma”, e eu não tenho dúvidas disso. Mas acho que, às vezes, nos acostumamos tanto com essa frase que achamos que ele se refere à identificação do outro para o outro, e sim isso acontece, mas na verdade a alma exposta é a sua. Você quando olha para alguém, pode não estar se vendo fisicamente, mas bem na beiradinha daquela retina você se identifica. Em tudo que o você conversa e sente, você expõe a si mesmo.

            Papo de louco? Sim! Sejamos loucos em nos perceber nos olhos dos nossos pacientes, muitas vezes olhos tênues, distantes, raivosos, tristes, opacos, vidrados, chorosos, felizes, atentos, amarelados, confusos… Tantos olhares que nos fazem pensar quem é cada um, qual é a sua dor, o que pensa e o que deseja. Quantas vezes na passagem de plantão você não se pegou comentando “mas achei os olhos deles tristes hoje…” A expressão no rosto de cada um reforça o seu desejo.

            Uma vez, durante os cuidados de uma paciente que não falava devido a um quadro neurológico importante, vi seus olhos grandes bem tristes, sobrancelhas franzidas, boca rebaixada e uma pequena lágrima em seu olho direito. Olhar para ela naquele momento era entender o que ela queria dizer, mas não conseguia falar, ela estava cansada e com dor, e não queria estar ali. Eu só olhei de volta e falei “eu sei”. Confesso que quase chorei junto, ela levantou a mão e acariciou o meu rosto. Ali tive certeza de que olhar não é apenas ver: é viver. É pura comunicação corporal.

            José Angelo Gaiarsa, médico e psicoterapeuta, em seu livro “O Olhar” destrincha muito bem que ver é um ato de coragem, por que envolve muita análise própria de identificação. Como olhar os outros se eu mesmo não me enxergo? Muitas vezes desviamos o olhar de alguém ou de algo e isso acontece quando temos medo, indignação, raiva, ou de alguma forma nos identificamos com aquilo a ponto de nos fazer refletir, e nisso nos afastamos (de nós). O íntimo é dito como invisível né? Pois bem… digo a vocês que não, nosso interior é tão exposto como nossos gestos, e quando somos notados nos incomodamos. 

            A ponto de me formar, estava fazendo estágio na emergência do hospital da minha faculdade, que funcionava como uma semi-intensiva. Muitos pacientes crônicos internavam conosco e, por dificuldade de trâmite de vaga, permaneciam ali. Havia uma senhora no cantinho da enfermaria, seu leito ficava ao lado da porta. Ela já estava ali há bastante tempo e sempre com os olhos fechados recebia visita dos filhos todos os dias. Percebi que todos possuíam olhos azuis. Um dia, passando em frente ao seu leito na correria louca de uma estagiária ansiosa, me deparo com seus lindos olhos azuis abertos, distantes e serenos. Lembro-me de ter parado para presenciar aquilo, pensava no que ela estaria pensando, se ela queria ver aquilo ou se seria seu último suspiro. O que será que ela sentia? O que será que ela queria? Logo depois, ela já com os olhos fechados, um dos seus filhos chega para visitá-la. Para ele talvez nada tenha mudado, mas para ela sim… Recordando da minha avó e da médica que nos acolheu, achei que ele seria acolhido também e então contei o que vi. Ele sorriu e agradeceu. Minutos depois da partida dele, ela faleceu serena.

            Esse movimento orgânico da morte possui dentro da medicina oriental uma fase denominada de a Dissolução do Fogo, na qual o paciente apresenta o que é chamado da melhora da morte. Segundo ela, todas as células do seu corpo após entrarem em contato com sua essência trabalham intensamente para mostrarem ao mundo aquilo que têm de melhor. Consomem sua última molécula de ATP e sua última ativação de AMPc para quem sabe poder abrir os olhos e ver nada mais (e nada menos) que a si mesmo por uma última vez. Ali me dei conta de que o simples fato de abrir os olhos para a nossa realidade demanda mesmo muita energia.

            É um desafio poder olhar o outro, porque assim olhamos para nós mesmos. Isso reflete não só quem somos, mas nossos anseios e desejos. O olhar nos faz perceber a dor do próximo e para tal é preciso ter muito autoconhecimento para permitir que isso adentre em você a ponto de se mover com tamanha compaixão. A slow medicine é puro olhar compassivo (me dei conta disso a pouco tempo levando esse tema a um congresso de tamanho impacto científico onde as pessoas, que não conheciam o movimento, me perguntavam sem entender muito bem o sentido da slow).

            Quando fui explicar, me vi falando puramente do olhar. Quando olhamos para alguém com os “óculos slow” vemos alguém que não precisa que você seja necessariamente lento, e sim cauteloso e preciso nas suas decisões clínicas. É o olhar científico e compassivo, conectado em mente e corpo, para o outro que vai definir a sua tomada de decisão e o caminhar desse paciente na sua linha de cuidado.

            Talvez eu seja até repetitiva em meus textos, mas preciso sempre convidá-los a algo, e hoje gostaria de chamá-los à luz dos olhos. Conecte-se à sua mente, não tenha medo. Viaje nos olhos de quem te vê, seja você mesmo na sua realidade ou fantasia, acompanhe sua essência e se permita se reconhecer no outro. Veja o que ele pode te oferecer, busque que o olhar te transforme, e assim você cuida de você também.

Referências:

Gaiarsa, JA. O olhar. 3ª edição. Rev. E Ampl. São Paulo: Ágora, 2009.

Arantes, ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver. Editora Sextante. São Paulo, 2019.

Imagem: Fallen Angel (de Alexandre Cabanel)


Ana Carolina Eiris Pimentel: Enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense, residente do Programa Cardiovascular da Universidade Estadual Rio de Janeiro vinculada ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, admiradora do movimento slow e eterna aluna apaixonada pelo cuidado.

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Nalucia Diniz
Nalucia Diniz
1 ano atrás

👏👏👏👏👏👏👏👏👏

Mauricio Francelino Aragão
Mauricio Francelino Aragão
1 ano atrás

Que belo olhar para o atendimento.
Parabéns Ana Carolina !

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