Por José Carlos Campos Velho:
“O bom do caminho é haver volta.
Para ida sem vinda
Basta o tempo.”
Muito antes de interessar-me mais profundamente em conhecer o Movimento Slow Medicine – apenas havia sabido da existência desta vertente da prática médica quando de meu contato com Dennis McCullough no Congresso da American Geriatrics Society em 2010 – em uma ocasião, após haver consultado um paciente que, se não me falha a memória, era portador de uma dislipidemia, e conversado com ele sobre a eventual necessidade de tratamento, ele me deu de presente este livro: Overdiagnosed, de Gilbert Welch. Agradeci e guardei. A capa, em um primeiro momento, não me agradou: este é mais um daqueles autores médicos americanos que querem lucrar com suas ideias e colocar seu nome em evidência. E pus de lado o livro, que ficou em minha estante por longos anos.
Voltando um pouco ao passado, vou expressar algumas ideias sobre as quais meditei ao longo dos anos. Como geriatra, acompanho muitos idosos, grande parte deles nascidos na primeira metade do século XX. A Medicina, na época em que nasceram, dispunha de poucos recursos diagnósticos e terapêuticos. A expansão destas possibilidades, ocorridas após segunda grande guerra, é algo muito impressionante. Como pontua Marco Bobbio, em sua palestra no lançamento da Slow Medicine Brasil, em 2016, “….as pessoas vivem mais. Muitas doenças antes incuráveis foram vencidas. Os pacientes estão mais conscientes e informados. Os tratamentos são mais eficazes. Os serviços de saúde são mais acessíveis. Os diagnósticos por imagem permitem a exploração de cada milímetro do organismo humano. Os exames laboratoriais podem analisar milhares de substâncias presentes no sangue.” Este fato criou uma grande expectativa das pessoas na capacidade da Medicina em resolver os problemas de saúde, em particular pela utilização de medidas farmacológicas e procedimentos terapêuticos. E esta fantasia está presente não só na cabeça dos pacientes, mas também nos profissionais de saúde. Citei os idosos pelo fato que, saindo de uma situação de parcos recursos, chegamos a outra em que existe uma pletora de oferta de serviços médicos. É uma situação muito frequente que cada sintoma ou desconforto acenda na mente do idoso a possibilidade de um medicamento que solucione o seu problema. Compreensível, mas sabemos que os idosos são um grupo populacional em que a cautela deve ser a regra básica quando da prescrição de medicamentos, e que muitas vezes medidas não-farmacológicas devem ser o esteio do tratamento. Ao longo de minha carreira, pude testemunhar a ascensão da ideia de que as estatinas deveriam ser usadas de forma bastante liberal, e passávamos a confundir a existência de um fator de risco com a doença em si. Ao longo dos anos, a prevenção primária com estatinas para doença cardiovascular passou a ser questionada, sugerindo-se o compartilhamento de decisão com o paciente sobre o uso contínuo do medicamento a longo prazo, em particular naquele sem outros fatores de risco cardiovascular. A utilização de gastrostomia como a solução da questão da disfagia em pacientes portadores de demência, principalmente em fases mais avançadas da doença, teve seu ápice há cerca de 3 décadas e hoje é bastante questionada, inclusive por várias recomendações da campanha Choosing Wisely.
O que ocorre é que vivemos uma época que vem se debruçando sobre os excessos de cuidados médicos como um problema de saúde pública, e é neste ponto que o livro Overdiagnosed cumpre um papel muito importante, por trazer a tona, de maneira magistral, a discussão sobre a questão. A ilusão de controle é um conceito explorado em artigo publicado no jornal New England Journal of Medicine, em 2016, por David Casarett, onde ele afirma que “…nos últimos anos, os Estados Unidos vêm observando cada vez mais esforços para reduzir o uso inadequado de tratamentos e exames médicos. Talvez a mais visível tenha sido a campanha Choosing Wisely, em que sociedades médicas identificaram muitos testes, medicamentos e tratamentos que são usados de forma inadequada. O resultado são recomendações que desaconselham o uso dessas intervenções ou sugerem que elas sejam consideradas com mais cuidado e discutidas com os pacientes”. E prossegue: “…o sucesso de tais esforços, no entanto, pode ser limitado pela tendência dos seres humanos de superestimar os efeitos de suas ações. Os psicólogos chamam esse fenômeno, que é baseado em nossa tendência a inferir causalidade onde não existe, a “ilusão de controle”. Na medicina, pode ser chamada de “ilusão terapêutica” (um rótulo aplicado pela primeira vez em 1978 ao “entusiasmo injustificado” à tratamentos por parte de pacientes e médicos ”). Quando os médicos acreditam que suas ações ou ferramentas são mais eficazes do que realmente são, os resultados podem ser cuidados desnecessários e dispendiosos.” Mais uma vez citando Marco Bobbio, “…desperdício, inadequação, conflitos de interesse e modelos que induzem profissionais e pacientes a consumir mais e mais serviços de saúde na ilusão de que é sempre melhor fazer mais para melhorar a saúde(…).”
No ano passado resolvi resgatar o livro Overdiagnosed da prateleira. E pude constatar, com sua leitura, que se trata de uma obra que tem um papel essencial no desenvolvimento de uma visão da prática médica baseada nos princípios da Slow Medicine. Infelizmente não lembro quem foi o paciente que me deu o livro, mas gostaria de agradecer a ele de alguma maneira, e contar-lhe que o seu presente foi uma semente que caiu em solo fértil e que hoje está dando seus primeiros frutos.
Gilbert Welch é reconhecido como um porta-voz de uma medicina mais gradual e moderada e seu nome está vinculado de maneira visceral a discussão do uso excessivo de recursos médicos nos EUA. O livro Overdiagnosed inicia-se pela discussão de um artigo pivotal sobre hipertensão arterial, realizado pela Administração dos Veteranos, na década de 60, que demonstrava de maneira cabal a redução de eventos cardiovasculares pelo tratamento da hipertensão em pacientes assintomáticos. Mas um fato que o autor aponta é que, quanto menos significativos forem os aumentos dos níveis pressóricos, menos benefícios o tratamento vai trazer. Neste sentido, a redução das metas de níveis pressóricos, embora amplie de maneira significativa o número de doentes portadores de hipertensão, e com isso de pacientes tratados, pode oferecer riscos pelo uso prolongado de medicamentos, sem que hajam claros benefícios deste controle. Isso é particularmente importante em idosos, em faixas etárias avançadas, portadores de múltiplas patologias e em uso de vários medicamentos, em que níveis moderadamente elevados de pressão arterial podem ser tolerados, pois o contrário pode trazer danos e prejuízos.
O surgimento de novas tecnologias diagnósticas, como por exemplo a maior disponibilidade de ultrassonografias permitiu que o diagnóstico de pedras na vesícula, aneurismas de aorta abdominal e outros achados em pacientes assintomáticos fossem feitos com frequência cada vez maior. E o aumento das intervenções segue o mesmo ritmo. E tal atitude pode, potencialmente, causar danos. Não existe dúvidas de que alguns pacientes se beneficiam disso. Mas não são todos.
O diagnóstico precoce de câncer é estudado em vários capítulos, onde são explorados o câncer de próstata, de mama, de tireóide, melanoma e de pulmão. Embasado em extensa literatura e com um grande número de gráficos ilustrativos, o autor aponta várias questões, entre elas a questão da mortalidade. A explosão de diagnósticos de câncer de tireoide é um caso típico de uso excessivo da tecnologia para diagnóstico de câncer, em que o impacto na mortalidade foi nenhum. Mas o número de intervenções decorrentes do diagnóstico é assustador. É conhecida a epidemia de câncer de tireóide na Coréia do Sul, em que foram sugeridas medidas governamentais para coibir o rastreamento em populações saudáveis.
O livro ainda levanta a questão dos problemas que podem surgir a partir de estratégias genéticas de rastreamento, como por exemplo, da hemocromatose e a interessante discussão sobre os “incidentalomas“, achados de exames de imagem solicitados por outra finalidade.
Em seus capítulos finais, o livro aponta várias causas para que as ideias de diagnóstico precoce e rastreamento tenham tomado uma proporção tão relevante dentro da medicina contemporânea, e entre elas as questões econômicas e os conflitos de interesse obviamente ocupam um papel. Em um sistema médico-hospitalar em que “fazer mais é fazer melhor”, mais diagnósticos são feitos e mais tratamentos são executados, às vezes com custos muito elevados. Para o sistema de saúde, para a sociedade e para o indivíduo – que pode ser lesado fisicamente, economicamente e psicologicamente pelo overdiagnosis.
O Sétimo Princípio da Slow Medicine fala que a segurança deve vir em primeiro lugar: “…lembre-se do juramento de Hipócrates : Primum non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir.” A discussão de uma prevenção Slow é uma questão que carece de exploração. A detecção precoce de doenças e o rastreamento de diversos problemas de saúde deve ser estimulada? Em que situações ela se justifica? Em que casos os benefícios efetivamente superam os problemas? O livro de Gilbert Welch nos aponta para inúmeras reflexões. Conforme ele diz na conclusão de seu livro, “…felizmente, a medicina preventiva também envolve a promoção da saúde. Pense na promoção da saúde como o que sua avó teria dito quando você era jovem: não fume, coma suas frutas e verduras e vá brincar ao ar livre (com a mensagem oculta: faça algum exercício e gaste um pouco de energia). Sua ideia era simples: leve uma vida saudável.”
Batendo na mesma tecla: individualização do cuidado, compartilhamento de decisões, relação médico-paciente sólida e de confiança, uma vida saudável – as decisões em saúde podem ser tomadas de forma mais adequada quando estes requisitos são respeitados. Inclusive para a decisão acerca de estratégias de rastreamento.
Prezado Campos Velho. Ai está. O velho renasce ou, o que foi tem volta. Esse texto é a própria história da medicina, agora contada no século 21, reconquistando-a com a “slow”, como conta, Bobbio. Grato. Barbério.