Para Cada Família Um Cuidado Paliativo

outubro 9, 2024
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Por: Vera Anita Bifulco & Carla Rosane Ouriques Couto

“O luto é assunto de família.” (Shapiro, 2014)

Resenha do filme “AS TRÊS FILHAS” (original: “HIS THREE DAUGHTERS”)

EUA, 2023. Direção de Azazel Jacobs. Produção Netflix.

          A narrativa desta delicada obra cinematográfica traz uma situação que interessa a todos, cada vez mais comum em nossa sociedade: idosos precisando de cuidados paliativos, com poucos filhos, dispersos geograficamente e distantes emocionalmente da família de origem.

Um final, várias histórias

          Assim está Vincent, um pai viúvo, após dois casamentos, vivendo com a filha mais nova, Rachel, em seus últimos dias, acamado, sem previsão de melhora e precisando de suporte ventilatório. Vincent opta por ficar em casa e recebe a visita periódica do médico Angel e de uma enfermeira. Rachel não tem ocupação definida e é considerada pelas duas irmãs mais velhas alguém sem responsabilidade alguma. Katie, a irmã mais velha, é controladora e detalhista, e no momento tem conflitos com sua única filha adolescente. Christina é mãe de filhos pequenos, e tem uma personalidade mais calma e conciliadora, apesar de dilemas existenciais complexos. Rachel é filha do segundo casamento de Vincent. As duas esposas de Vincent morreram de câncer e ele é, portanto, a figura central da família.

          As três irmãs se reúnem para acompanhar os últimos dias do pai. Cada uma vive um ciclo de vida diferente. Cada filha sente um pai diferente em Vincent, e têm por consequência um modo de lidar com sua partida. Katie se ocupa das coisas práticas e de providenciar um testamento vital, ainda não assinado. O pai havia expressado sua decisão de morrer em casa, sem UTI, sem medidas heroicas e sem entubação. É um processo complexo e dolorido para a família, e vale a pena acompanhá-lo no filme. 

          Há sempre uma história por trás de cada morte. Uma história que cuidadores precisam conhecer. Vincent e suas filhas buscam a dignidade na morte, a mesma que tiveram em vida. Para Rachel, a vida é leve, ela navega suavemente pelo bairro onde cresceu, e entende a morte como inevitável, até um descanso depois de dias de doença e limitações que acompanhou de perto. Para Katie a vida é dura, rígida, cheia de responsabilidades. Portanto, ela vê a morte como algo que demanda compromissos e providências. Para Christina a morte é uma passagem, natural, e sua preocupação é estar unida às irmãs e presente para o pai.

A equipe de saúde e o contexto

          Para o médico Angel, a morte também é natural, e desenvolve seu trabalho com muita tranquilidade, sendo gentil para com todos, e honesto quando declara: “está próxima a partida, mas não sei quando será”. Angel se preocupa com o conforto do paciente, mas em seu processo de comunicação com a família há lapsos: ele não considera os sentimentos diversos que ali se mostram. Toma seu café, dá os comunicados clínicos e se vai. Angel segue um protocolo técnico, ainda que não rígido, porém ouve pouco e demonstra pouca empatia. Cabe aí uma questão importante para o movimento Slow Medicine: quem cuida da família do paciente em Cuidados Paliativos que é também cuidadora? Como essas dinâmicas e conflitos impactam a qualidade do cuidado e o bem-estar do paciente? Que habilidades a equipe precisa desenvolver para dar conta disso?

          Muito filmes abordam a temática dos Cuidados Paliativos, a grande maioria mostra o lado biológico do fim da vida, a condução médica por trás dos procedimentos. Porém em “As Três Filhas” vemos um filme que escancara e esmiuça todas as questões de relacionamento, não resolvidas, que se avolumaram no decorrer da vida. A perda iminente traz à tona tudo o que não foi trabalhado durante a vida das três, que se veem vulneráveis: há muito a processar, em especial para as duas que não conviviam com o pai. Há um pai que será lembrado por três filhas de forma diferente, e o tempo para significar a figura paterna está acabando. Da mesma forma a relação das três sofre profundas modificações: diminuída a distância física, se alargam as diferenças, mágoas e ressentimentos de infância. 

O tempo relativo

          Diante do abismo de uma grande perda, pondera-se o valor de tudo, o vivido, o recalcado e o não dito. Nesse sentido é necessário viabilizar um tempo de despedida em que tanto o paciente como a família tenham a oportunidade para dizer “desculpe”, “obrigada”, “te amo” e “adeus”. Palavras que em geral todos nós economizamos em família. Não deveríamos usá-las somente quando o tempo é escasso. 

          Decisões que se impõem diante da morte jamais deveriam ser deixadas para o fim da vida. Mormente é isso que acontece, o que inevitavelmente acarreta discussões familiares num momento em que a união deveria prevalecer. Porém mesmo quando a homeostase do sistema familiar é ameaçada pela proximidade da morte, a crise se configura uma oportunidade de promover a união dessas irmãs. O roteiro se mostrou certeiro em demonstrar essa possibilidade.  

          A visita domiciliar talvez seja o clímax da experiência assistencial em Cuidados Paliativos. Quando adentra a casa que abriga uma família onde alguém está morrendo, o profissional de saúde será chamado, conscientemente ou não, à tarefa de decifrar os múltiplos enigmas que estão em curso no processo de comunicação que une (e desune) os membros daquele espaço casa-família. Angel parece ter um padrão de comportamento, que não inclui as singularidades do grupo familiar. Ainda assim, mostra-se pouco tradicional quando dá conselhos, de como agir, caso Vincent não consiga assinar o testamento vital. Aí ele contraria o sistema médico tradicional e aconselha a família a não chamar o suporte de emergência de imediato. Nas entrelinhas diz: “deixe seu pai morrer em paz”.

          Falta claramente à equipe assistencial (mínima no caso e no Brasil inexistente com frequência) habilidades para dar conta do luto antecipatório. A enfermeira não tem nenhum envolvimento com a família. O luto antecipatório é composto de ameaças reais e/ou imaginárias que criam mudanças significativas na dinâmica familiar, pois cada membro da família tem uma relação muito ímpar, singular com a pessoa que está morrendo. Famílias possuem regras e crenças pregressas que podem ou não gerar fontes de apoio. No luto antecipatório os sentimentos podem se mostrar ambíguos, é um tempo de espera de uma morte anunciada mas com tempo indefinido para acontecer.

          A ausência de um suporte de excelência no luto antecipatório pode ser fator de risco para um luto complicado no pós-morte. Frente a uma perda eminente o sistema familiar tende a conservar seu modo de operar prévio, porém as regras familiares podem ser revisitadas, ressignificadas e reformuladas gerando novos vínculos, como bem é mostrado no filme.

          Apesar de ser uma obra cujo relevância social é demonstrar a complexidade do Cuidado Paliativo e a singularidade de cada grupo familiar diante da perda, a cena final em que finalmente o pai se mostra, talvez seja a grande lição para todos nós, profissionais de saúde ou não. Vincent delira nos últimos instantes e seu último desejo é dizer o que ainda não foi dito a cada filha. 

          Trata-se enfim e sempre, do tempo, o elemento mais precioso ao movimento Slow Medicine. Tempo para os profissionais ouvirem, compreenderem, compartilharem. Tempo para a família se reorganizar e se preparar. Tempo para quem parte poder dizer o que importa. O caminho para que esse tempo seja respeitado ainda é longo. Ainda é muito difícil morrer em paz e em sua própria cama no Brasil. O movimento Slow Medicine segue lançando luzes sobre essa utopia, e a arte do cinema a nos mostrar o caminho. 

                                             “Luto é um árduo e lento trabalho pelo interior de nossas emoções. É encaixar pedra por pedra de nossa perda, até termos um novo lugar de nossa sensibilidade para habitar.” Fabrício Carpinejar.


CARLA ROSANE OURIQUES COUTO. Médica de Família e Comunidade. Pediatra, sanitarista, especialista em Educação Médica, Gerenciamento de UBSs, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Psicanalista em formação. Tutora do Programa Mais Médicos. Uma entre milhões de filhos que não viram seus pais morrerem em paz. Não basta o desejo, o caminho é árduo. 

VERA ANITA BIFULCO. (Mãe de três filhas, na vida real). Psicóloga, Psico-oncologista. Mestre em Ciências pelo Centro Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Unifesp-EPM. Psicóloga Integrante do Ambulatório de Cuidados Paliativos da Unifesp. Co-organizadora dos livros Câncer: Uma Visão Multiprofissional e Cuidados Paliativos: um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Co-autora do livro Cuidados Paliativos – Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde. Membro Participante do Movimento Slow Medicine Brasil, Coordenadora do Comitê de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Psico-oncologia – SBPO.

Decisões de fim de vida são conversadas rotineiramente entre minhas filhas e eu. 

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Iêda Aleluia
Iêda Aleluia
6 dias atrás

Ainda não assisti esse filme, mas a resenha reforçou minha vontade de vê-lo. Obrigada!

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