Por Carla Rosana Ouriques Couto:
“Quando você não se lembra por que você está machucado, é quando você está curado”. Jane Fonda
A história poderia se passar em qualquer lugar…pequenas ou grandes cidades de qualquer país. É uma história que se repete cotidianamente em qualquer região do mundo, e tem seu ápice sempre ao anoitecer. Quando todos repousam, se recolhem, se olham. Cai a noite, e muitos idosos sentem a chegada de uma velha companheira: a solidão. Como diz a personagem Addie, uma senhora viúva, dona de casa, passada dos setenta, a “coisa” costuma piorar a noite, quando o silêncio e a falta de aconchego com outro ser humano podem trazer de volta as sombras do passado. Não há na verdade uma trama. O filme apenas observa o encontro inusitado entre dois vizinhos, ambos viúvos, idosos, habitantes de uma pequena cidade do centro-oeste americano, sem trabalho ou tarefas específicas no momento. O único filho de Addie, se casou e tem um menino. A única filha de Louis mora em outro estado. Eles se conhecem há anos, mas superficialmente.
Um belo dia, antes da noite, Addie atravessa a rua e bate na porta de Louis. Nunca antes ultrapassara este umbral, apenas conheciam um pouco a trajetória de vida um do outro. Addie então, faz uma proposta a Louis. Basicamente que comecem a dormir juntos, para se sentirem acompanhados, confortados, vivos. Como explica Addie: “Não é sobre sexo, é sobre conseguir passar a noite. Eu acho que poderia dormir bem de novo se tivesse alguém perto de mim. Sabe…alguém gentil”.
Louis fica surpreso, disfarça e promete pensar. Addie vai embora na certeza de ter feito uma proposta estranha e inaceitável. Após algumas reflexões, Louis aceita o convite, e passa a atravessar a rua todas as noites, com seu pijama e objetos pessoais. Já pensaram leitoras de mais de cinquenta…Robert Redford batendo na sua porta com o pijaminha na mão?
A essência do filme então se desenrola a partir das conversas de “antes de dormir”. São convidados então os fantasmas do passado. No caso de Louis um episódio de separação temporária da esposa para viver uma grande paixão. No caso de Addie, o atropelamento e morte da filha aos 5 anos, em frente da casa. Apesar das décadas decorridas dos eventos, eles continuam presentes nas emoções mais profundas dos dois, com culpa, ressentimento e alguma incompreensão. No acolhimento dessas emoções, e no alívio das dores, nasce entre os dois, a chama de novos sentimentos.
Com o passar das noites, a pequena cidade assiste ao novo romance entre os velhos conhecidos. Louis e Addie começam a participar da vida um do outro. Não há tédio. A filha independente de Louis aparece, e entre seus dilemas, há solidão. O filho de Addie, Gene, se separa, e traz para casa da mãe, o neto Jamie, pois não tem condições de cuidá-lo no momento. No filho e no neto também há solidão, e necessidade de mudanças e recomeços. No encontro dos personagens, extremamente comuns, tão comuns que dá vontade de abraçá-los em muitos momentos e apenas dizer: “vai ficar tudo bem!”, está talvez a maior das lições da história: todos atravessamos momentos e crises de solidão. E precisamos recomeçar. Apenas nos idosos, a solidão pode pesar mais, pelas correntes do passado que por vezes arrastam pelo caminho. Addie e Louis compartilham suas correntes, elas se tornam mais leves. Mais soltos e livres, podem caminhar novamente.
O primeiro dos diálogos é primoroso: “Bem, você pode deixar seu pijama e sua escova de dentes aqui de agora em diante, disse ela. Iria economizar sacos de papel, disse ele. Exatamente. Tem alguma coisa sobre a qual você gostaria de falar? ela perguntou. Não precisa ser nada de urgente. Só para a gente começar a conversar. O que eu mais tenho são perguntas, na verdade (ele). Eu também tenho algumas, disse ela. Mas quais são as suas?”
O seguimento das noites compartilhadas, expõe sonhos esquecidos: Louis queria ser pintor, mas não teve coragem de sair do país. Apaixonou-se uma segunda vez, mas não teve coragem de assumir seu amor. Ele diz: “É como se eu tivesse falhado em minha alma, ou perdido o chamado para algo melhor”. Ao mesmo tempo, relata como cuidou da esposa até sua morte. Addie lhe diz: “você pode me contar qualquer coisa….”
Nos dias do casal se seguem muitas alegrias: cuidar do neto, brincar novamente como uma criança, ter um cão, viajar para um lugar de sonho, acampar. E algumas perdas: a morte da melhor amiga, o retorno do neto à casa do pai, e a sensação de ninho vazio novamente.
Numa das cenas mais interessantes, que parece estar apenas implícita no livro de Kent Haruf, o filho Gene, vivendo uma crise existencial, diz a Addie que ainda sente culpa por ter sobrevivido à morte da irmã, e Addie pode então lhe dizer claramente, que nunca o culpou, e que também ainda sente a dor da perda. No encontro de Louis com a filha adulta, também há um resgate: a filha libera o pai da culpa pelos seus fracassos amorosos e relembra um momento de reconstrução: a montagem de um trem de brinquedo, logo após o retorno do pai para casa. São pequenas libertações e a certeza de que pais e mães, em qualquer idade, ainda que no leito de morte, podem e devem ressignificar junto a cônjuges, filhos e netos, eventos traumáticos como perdas e separações.
O filme é extremamente sutil, tudo apenas acontece, sem se forçar uma palha, sem dramas grandiosos. Tal como é a vida humana, comum e extraordinária ao mesmo tempo. A conversa entre o casal, se desenrola em fluxo natural e tranquilo, sendo comparável aos princípios do movimento slow: tudo a seu tempo, passo a passo, no compasso dos sentimentos.
Um dos impactos do filme é assistir Jane Fonda, a “lendária guerreira”, num papel de fragilidade existencial e declínio das capacidades físicas. Ao mesmo tempo a atriz parece ter encarnado um personagem que poderia muito bem, ser uma de suas leitoras. Prestes a fazer oitenta anos agora em dezembro, Jane tem uma obra especial para as mulheres em processo de envelhecimento, o livro “O Melhor Momento” (2012), onde a partir de entrevistas e pesquisas científicas reflete sobre as várias dimensões do envelhecer: trabalho, filhos, atividade física, amor, sexo e saúde emocional. Jane Fonda analisa sua vida, em seus vários atos, e considera que sua trajetória foi ascendente e mais feliz após os cinquenta anos. Propõe que se faça uma revisão constante ao final de cada ato, a partir da questão: “que roteiro compramos para nossas vidas?” Propõe que ao final de cada ato, se deixe para trás o que está fora do roteiro, perdoando se preciso, a si e aos outros. Atravessar ousadamente a rua em busca de companhia humana, poderia estar contida em uma de suas valiosas lições.
Obrigatoriamente pensaremos nos nossos pais, em especial quem como eu, tem mais de cinquenta anos e pais ainda vivos em idade avançada. Lidamos com os dilemas de autonomia, de permanência dos idosos em suas próprias casas, de preservação de sua integridade e identidade. Addie sofre uma queda, evento muito frequente em idosos, e fratura o fêmur. O atendimento e o cuidado domiciliar de Addie, oferecido por Louis é um exemplo de prática slow: supervisão sem excessiva proteção, carinho e suporte enquanto se recupera. A cena no hospital, em que Gene pede a Louis que se retire do quarto de Addie, por não ser da família também é bastante sugestiva. Remete-nos a uma conclusão da pesquisadora Mirian Goldenberg: no final da vida, ter filhos nem sempre garante cuidados adequados, ter bons amigos sim. De forma geral a história de Addie e Louis, nos faz concordar com a antropóloga Mirian: a velhice pode ser bela.
Porém a trajetória de Addie e Gene, como mãe e filho, o resgate que ambos necessitam, nos diz que no processo de percorrermos lado a lado com nossos pais, as últimas curvas da estrada, a última escalada da montanha, teremos mais uma oportunidade de nos livrarmos de alguns pesos, que as vezes não nos pertencem ou não foram bem elaborados. E só nossas figuras primordiais, pai e mãe, podem por vezes nos libertar. É o outro lado da Balada de Narayama (My Mother your Mother,2008), que se torna uma estrada de mão dupla, quando seremos ainda cuidados por nossos pais, enquanto os acompanhamos à última estação.
O casal de atores protagonistas se encontra 50 anos depois de terem filmado obras inesquecíveis. Quando Redford e Fonda filmaram pela primeira vez, o diretor Ritesh Batra não havia nascido. Diz Redford: “queria filmar com Jane antes de morrer”. O mistério do tempo, e seus efeitos, atravessa essa obra. A última palavra do filme é “tempo”, dita por Louis indicando um futuro para ele e Addie, ainda que separados por questões familiares. Kent Haruf, autor do livro que deu origem ao filme, escreveu pressionado pelo tempo, pois faleceu poucos dias após terminar a história, com câncer. Tinha algo mais a dizer, e o fez com maestria. À noite repousamos nossos corpos…mas as almas continuam a desejar…elas não tem idade…
Livros consultados
My Mother Your Mother – embracing “slow medicine”, the compassionate approach to caring for your aging loved ones. Dennis McCullough. 2009.
O Melhor Momento: aproveitando ao máximo toda a sua vida. Jane Fonda. Editora Paralela. 1ª edição, São Paulo. 2012.302 p
Nossas Noites. Kent Haruf. Editora Companhia das Letras. 2017. 150 p
A Bela Velhice. Mirian Goldenberg. Editora Record. São Paulo. 2013
Ficha Técnica:
Nossas Noites – Our Souls at Night
Data de lançamento 1/09/2017(1h 41min)
Direção: Ritesh Batra (38 anos), diretor de A Sense of an Ending, Lunchbox. baseado no romance homônimo de Kent Haruf, lançado no Brasil pela Editora Companhia das Letras
Elenco: Jane Fonda (79), Robert Redford (81), Matthias Schoenaerts, Judy Greer
Gênero Drama/ romance.
Nacionalidade: EUA.
Título original: Our Souls at Night.
Música: Elliot Goldenthal.
Personagens principais: Addie Moore e Louis Water.
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Carla Rosane Ouriques Couto é Médica de Família e Comunidade, professora do curso de Medicina da Unifenas, especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Sempre foi fã de Jane Fonda e de Robert Redford e tem muitos planos para todas as noites em frente. Olhar a vizinhança e atravessar a rua está na lista das boas opções.