Para que serve a morte?

maio 9, 2022
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Por André Islabão:

“Mas eis a hora de partir: eu para morte, vós para a vida.

Quem de nós segue o melhor rumo ninguém o sabe,

exceto os deuses.”

Sócrates

Nas últimas semanas, dois artigos muito interessantes trouxeram à tona a questão da morte e sua importância para a humanidade. O artigo do Lancet [1] faz parte de uma iniciativa que busca aumentar a discussão sobre o tema na sociedade e melhorar a qualidade da assistência e a experiência de morte para as pessoas e suas famílias. Com o sugestivo nome de O valor da morte, a iniciativa que inclui nomes como Richard Smith, Seamus O’Mahony e M. R. Rajagopal traz uma visão bastante abrangente do problema e seus aspectos históricos, sociais e filosóficos, além de uma abordagem bastante holística para as soluções. O artigo do NEJM [2] faz um certo contraponto ao primeiro artigo e mostra uma visão mais pragmática do problema, analisando aspectos técnicos e econômicos da assistência médica durante o período de morte e questionando qual seria o melhor tipo de cuidado e o local mais adequado para a morte das pessoas.

Por trás da preocupação dos autores está uma desigualdade constrangedora em relação aos cuidados recebidos pelas pessoas em seus últimos dias de vida: enquanto as classes mais ricas sofrem desnecessariamente devido ao excesso de cuidados médicos muitas vezes fúteis e inadequados, as classes mais pobres sofrem exatamente por não terem acesso aos cuidados de saúde básicos que poderiam evitar grande parte do sofrimento enfrentado nesta etapa de suas vidas. Mais do que nunca, a “lei dos cuidados inversos” [3] de Julian Hart segue valendo até mesmo na hora da morte. Além disso, a modernização do processo de morte o transferiu da comunidade para dentro dos hospitais, criando o que Ivan Illich chamava de iatrogênese cultural [4] ao retirar das famílias e comunidades um conhecimento acumulado ao longo de gerações e a autonomia para o cuidado de seus entes queridos, acabando por reduzir a importância e o significado da morte para a sociedade. É aqui que o artigo do NEJM se encaixa, sugerindo que transferir de volta o cuidado das pessoas em processo de morte dos hospitais para o domicílio pode ser algo positivo nas classes sociais mais remediadas, mas pode representar uma crueldade se as famílias não tiverem as condições mínimas para tais cuidados e não receberem o suporte adequado.

Segundo os autores, a pandemia não parece ter melhorado muito a aceitação da inevitabilidade da morte nem ampliado a discussão do assunto entre as pessoas. Ao mesmo tempo em que estávamos ávidos por acompanhar diariamente as contagens de mortos nos noticiários, parece que ficamos ainda mais resistentes a aceitar a nossa própria finitude e aquela das pessoas próximas. Parte do problema deriva da péssima qualidade de morte enfrentada pelas vítimas da pandemia. Afastadas de tudo e de todos, muitos morreram de maneira indigna, seja por estarem hermeticamente isolados da família em hospitais ou por morrerem em casa por falta de assistência médica adequada. Como sociedade, já morríamos mal antes da pandemia, mas morremos de maneira ainda mais trágica durante ela. Além disso, apesar de todo o sofrimento visto na pandemia, a medicina se concentrou em tentar diminuir o número de mortes sem demonstrar o mesmo grau de preocupação com a redução do sofrimento de quem morre e dando pouco espaço aos cuidados paliativos, apesar de essa abordagem já ter demonstrado reduzir tanto os custos dos cuidados como o sofrimento da pessoa que os recebe.

Algumas condições são citadas pelos autores como fundamentais para que se possa alcançar uma experiência positiva no processo de morte. Entre elas estão a obtenção de alívio dos sintomas físicos e emocionais, a autonomia do paciente na tomada de decisões, a abordagem de aspectos culturais e espirituais além daqueles físicos, a ocorrência da morte no local desejado e o suporte adequado aos familiares e amigos. Ou seja: como qualquer outro tipo de intervenção do sistema de saúde, o cuidado na morte também deve ser algo individualizado. Algumas pessoas podem necessitar de um cuidado hospitalar mais intensivo, enquanto outras poderão terminar seus dias tranquilamente em casa ou em outro local escolhido com o mínimo de intervenção do sistema de saúde. A sabedoria está em perceber onde os cuidados estão sendo supérfluos ou inadequados e realocá-los para onde eles são desesperadamente necessários.

Para demonstrar a viabilidade da proposta, os autores citam a experiência positiva obtida na região de Kerala, na Índia, onde ao longo das últimas décadas tem havido um esforço continuado para melhorar o cuidado das pessoas ao final de suas vidas. Nesta iniciativa foram estabelecidos os cinco princípios para a obtenção do que os autores chamam de uma “utopia realista”: a abordagem dos determinantes sociais da saúde, os quais acabam sendo importantes também para a morte e o luto; a compreensão de que a morte é um evento relacional e espiritual em vez de simplesmente fisiológico; a criação de redes de apoio que envolvem não apenas profissionais da saúde, mas também familiares e voluntários da comunidade (como a iniciativa das “comunidades compassivas”); a ampla disseminação de histórias e conversas sobre as experiências diárias de morte e luto nas comunidades para aumentar sua aceitação como parte natural da vida; e, por fim, o reconhecimento do valor da morte em nível individual e para a humanidade.

É interessante reconhecer como a proposta dos autores está em plena consonância com os princípios da Slow Medicine, principalmente no que diz respeito a autonomia e autocuidado, individualização de cuidados, compaixão, uso parcimonioso de recursos e equidade no tratamento. A iniciativa visa tanto à redução do excesso de intervenções entre as classes mais ricas quanto à facilitação do acesso a cuidados de qualidade – sempre que necessários – para as classes menos favorecidas da população. Isso nada mais é que a medicina sóbria, justa e respeitosa preconizada pela Slow Medicine.

A morte serve para nos lembrar que precisamos fazer algo significativo em nossas vidas enquanto ela não chega. A morte serve para lembrar que, por trás das diferenças superficiais, somos todos muito parecidos e igualmente frágeis. A morte também serve para lembrar que precisamos uns dos outros para viver bem e para morrer com dignidade. Em outras palavras, a morte é imprescindível para a humanidade. Este é o valor da morte sugerido de forma provocativa pelos autores. Sêneca dizia que morrer bem só era possível para quem tivesse vivido uma boa vida. É por isso que, ao estreitar as relações na comunidade e abordar as desigualdades e outros determinantes sociais das doenças, a abordagem holística da morte proposta no Lancet pode melhorar não apenas a experiência de morte para essas pessoas, mas também a sua saúde e sua própria vida!


[1] Report of the Lancet Commission on the Value of Death: bringing death back into life

[2] Where Americans Die — Is There Really “No Place Like Home”?

[3] The inverse care law

[4] Ivan Illitch

__________________________

André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br

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