Para ser visto, precisa ser notado. Será? Inquietações sobre a nova publicidade médica

abril 10, 2024
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Por Lívia Callegari:

O orgulho dos pequenos consiste em falar sempre de si próprios; o dos grandes em nunca falar de si.”

Voltaire

Redes sociais. Mídias diferenciadas. Novas possibilidades de comunicação. 

Uma vez mais, a tecnologia muda os hábitos culturais, e a maneira das pessoas se colocarem no mundo – afinal, quem não é visto, não é lembrado. Nessa toada, são aprimoradas técnicas de marketing, neuromarketing, e outras estratégias para manter ou cativar um publico em potencial. Resumidamente, todas as técnicas pretendem propor formas de convencimento de que um profissional pode ser muito melhor do que o outro coleguinha de profissão.

Como para alguns o objetivo é “faturar” sem nenhum propósito ético com a profissão, com os pacientes, e muito menos com a coletividade, não raras vezes surgem veiculações distantes de qualquer evidência científica ou benefício efetivo à qualidade de vida, que é seguida pela proposta de tratamentos rápidos com soluções fáceis para problemas complexos, prometendo-se mais do que se pode cumprir. 

Para angariar clientes – e não pacientes no sentido mais purista do termo – a criatividade é sem limites, assim como a irresponsabilidade e a estupidez, inclusive com direito à invasão na esfera de atuação de outra profissão, pois o “mercado” pede. Porém,  apesar de, como não se pode perder a ternura  – pois  cada profissão é calcada em seus Códigos Deontológicos que devem ser seguidos, sob pena de amargas experiências em caso de descumprimento – travestem-se na qualidade de éticos, e como parte importante do marketing, utilizam-se de linguagem recorrente ao incutir a condição de seres iluminados, dotados de missão de vida muito especial e diferenciada de auxílio ao próximo. Por isso, dizem no discurso, não se importam com ganhos financeiros e que apenas agem estreitamento absoluto com os princípios mais basilares da profissão. No final, os  menos avisados ficam sensibilizados e são fisgados, por não entenderem a descarada técnica de manipulação, originada de uma fórmula pronta de marketing digital.

O gatilho mais rápido. No Velho Oeste é assim

Enfim, quem se coloca de maneira comedida e não se propõe a essa nova Era, carrega o sentimento de estar defasado perante os demais ou ficar totalmente esquecido, com latente perda da tão escassa reserva de mercado de uma profissão, que já está desnaturada por um consumismo desvairado e grandes interesses escusos. Então, nesse verdadeiro cenário instalado de  bang-bang à italiana, na balança do bom senso, a atitude hedonista vence os eixos essenciais que a profissão deveria estar pautada,  direcionada na sobriedade dos atos que proporcionam um atendimento justo e respeitoso, segundo o qual o centro da relação é a pessoa do paciente. 

Foi então que, o maior órgão de representação da classe médica – o Conselho Federal de Medicina – publicou a Resolução nº 2336/23, que traz modificações substanciais na publicidade e propaganda permitida aos médicos. Em suma, cedeu às pressões e acrescentou inúmeras concessões que, caso mal interpretadas, tendem a ser aberrantes por se distanciarem do que deveria corresponder ao mais absoluto respeito ao paciente. Foi um claro resultado do movimento dos profissionais que se viam tolhidos e cerceados na franca disputa de mercado, em detrimento às outras profissões que fazem veiculação de serviços no melhor estilo ladeira abaixo, por falta de regulamentação mais restritiva em publicidade.

Objetivamente, clamor da classe, possibilitou avanços não isentos de graves perigos, distorções e maior objetificação do paciente, nesse caso visto como instrumento de lucratividade de um sistema doentio, que de há muito está em grave condição de irreversibilidade. 

Antes e Depois?

Dentre tantas inovações, merece destaque a permissão de propaganda de “antes e depois”. Ainda que possível a adoção da estratégia de acordo com determinadas limitações, nem sequer deveria  existir por ser na maioria dos casos enganosa. Não considera a individualidade do paciente, peculiaridades, condições intrínsecas e idiossincrasias de cada um. Mesmo que alertado, hipoteticamente dentro do percentual de risco de 0,001% de um evento ocorrer, em termos reais para aquele indivíduo contemplado, física, emocional e esteticamente, equivalerá a 100%. 

Relembre-se que, no preâmbulo do Código de Ética Médica é estabelecido que o exercício da Medicina não pode ser objeto de mercantilização,  ou considerado  mera relação de consumo. Por serem necessárias à preservação da essência e o bom prestígio da profissão, essas linhas edificadoras não deixaram de existir, apesar dos tempos modernos, por impedirem qualquer forma de banalização. Porém, não significa dizer que a Medicina deverá permanecer em uma bolha da intocabilidade, parada e sem evolução. 

Sensatez, equilíbrio,  respeito e comedimento continuam a ser palavras de ordem para o exercício da profissão. Significa dizer que seus fundamentos não podem se perder, e essa é uma das principais propostas da Slow Medicine ao considerar a manutenção da integridade da profissão e o resgate da Medicina Raiz, tal como ela deve ser, apesar dos mais variados enviesamentos e distorções que possam surgir na prática médica ao longo do tempo. A publicidade médica, neste contexto, é bem-vinda, mas deveria apontar na direção de divulgar uma boa assistência e evitar riscos aos pacientes, e não meramente vender serviços.

O paciente no centro da atenção

A assistência, portanto, deve ser centrada na pessoa, e levar em consideração o Tempo. Fundamental estar presente no momento presente da consulta, para que haja fidedigna e total entrega na comunicação dos seus interlocutores, com desenvolvimento da escuta ativa e atenção plena com foco da atenção no paciente, a direcionar um cuidado particularizado que destaque todos os seus pontos de vista, valores, expectativas e preferências, podendo, inclusive, envolver a sua rede de cuidados. Todo esse conjunto de fatores, confluirá em um processo de tomada de decisão compartilhada,  na forma mais adequada possível. Por isso que, na abordagem baseada nos preceitos da Slow Medicine, devem estar introjetadas as atitudes prudentes, o olhar compassivo, e as conexões individualizadas fortalecidas pela confiança. Não existe marketing mais confiável que este.

Desse modo, há constituição de uma relação sólida, atrelada a um mandamento de não causar mal, que comporta em um dever de agir em algumas situações, mas que não descarta abster-se de agir em situações que não traga benefícios ou que se encontre fora dos parâmetros de qualquer racionalidade clínica. Por isso, o uso parcimonioso da tecnologia traz um componente imprescindível na percepção de que a tecnologia é uma ferramenta que deve servir ao ser humano. A parcimônia tecnológica também se aplica às redes sociais e quaisquer outras formas de publicidade médica: seu uso excessivo, imprudente ou mal-intencionado pode, sim, matar pessoas ou trazer consequências irreversíveis. 

Além do mais, é importante relembrar que, as tecnologias devem cumprir seus reais objetivos de auxiliar a pessoa no autocuidado, bem como ajudar o médico a tomar as melhores decisões técnicas para seu paciente. Essas decisões devem caminhar para um ganho qualidade de vida, e não para direcionamentos que levem a desfechos com riscos desnecessários e desfavoráveis. 

Nesse sentido, incumbe ao profissional investigar acerca da maturidade da tecnologia, e não apenas, por exemplo, anunciar a utilização de um equipamento sem ter a certeza dos resultados e possíveis perigos que pode proporcionar. Compreender o tamanho de sua responsabilidade na vida das pessoas e na sociedade em geral está entre os atributos mais dignos dos profissionais da saúde.

Justamente por isso que a Slow Medicine continuará conduzindo-se na proposta de constante reflexão, e jamais em uma especialidade médica, selo de garantia, grife passageira, modismo, ou lista de médicos diferenciados nesse mundão de meu Deus. A proposta é muito mais aprofundada e distante de uma realidade líquida.

Montagna Slow

Lamentavelmente, é bem provável que assistamos publicidades que se apropriem indevidamente do uso da expressão Slow Medicine, criando profissionais em condição diferenciada que vislumbram um trampolim para galgar algum tipo de projeção. Quando isso acontecer, e caso se depare com alguém que se intitule assim, desconfie e fuja para as montanhas! Quem anuncia dessa forma, nada entendeu, porque jamais foi esse o real propósito.

Em suma, a chave de tudo está atrelada a um pensar ético, que sopesa as atitudes e busca o caminho do meio. E a ética nunca deve ser tratada como obstáculo para qualquer avanço, ao contrário, ela serve, sobretudo, para a consolidação das relações seguras. A experiência diz que a constante aplicação da ética nas relações nada mais é que o refinamento de uma sociedade evoluída.

Nesses pouco mais de 180 dias para a entrada em vigor da nova norma que regula a publicidade em Medicina, será que realmente houve amadurecimento e reflexões necessárias? Qual a Medicina que realmente queremos para nós?

 Oremos!

Lívia Abigail Callegari, nasceu em São Paulo. É advogada, inscrita no Brasil e em Portugal e atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

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jose carlos de miranda
7 meses atrás

Tenho lido com prazer estes artigos por vocês publicados; são base para uma reflexão intensa. Talvez neste mundo de pressa contínua não sejam devidamente valorizados, mas tenho certeza de que aqueles que pararem para lê-los, estarão usufruindo de um importante referendo para suas próprias vidas.

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