Patocenose e pandemia de Covid-19

março 26, 2020
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Por Afonso Carlos Neves:

O médico e historiador Mirko Grmek elaborou o conceito de “patocenose”. Patocenose diz respeito a fatores que participam na formação de uma doença, além do fator biológico. São então fatores sociais, culturais, econômicos, políticos, antropológicos. Dizem respeito então mais ao “adoecer”, do que à “doença”. Em inglês temos as palavras disease, illness, e sickness. Disease é equivalente à doença biológica, ou doença biomédica.     Illness corresponde ao adoecer individual. Sickness ao adoecer coletivo. O adoecer individual e o adoecer coletivo correspondem a como o indivíduo vivencia a doença e o coletivo, a como o agrupamento humano envolvido vivencia essa doença.

A atual pandemia é uma pandemia do período “pós-pós-moderno”.

A Era Contemporânea começou após a Revolução Francesa (1789) e suas primeiras consequências. A primeira parte da Era Contemporânea corresponde ao Período Moderno, que foi de 1800 a 1950 (Não confundir com Era Moderna, que foi de 1453 a 1789). Em cada período, costuma haver uma tendência dominante e uma outra tendência contrária. Nesse Período Moderno, ao mesmo tempo em que progrediram bastante as consequências da Revolução Industrial, da Tecnologia e da Ciência, surgiu o Movimento Romântico como contracorrente. Durante esse período, foi ganhando corpo uma Ética embasada no princípio de São Tomás de Aquino. Esse diz respeito a “os fins não justificam os meios”. Isso quer dizer que não se pode usar qualquer meio para atingir um objetivo. O objetivo a ser atingido não é soberano. O caminho para chegar nesse objetivo precisa ser ético. O Período Moderno viu progredirem idealismos diversos, que tinham a ética e princípios como orientadores (lembrando que “nem tudo eram flores”). Na transição do século XIX para o século XX, na chamada Belle Époque, surgiu então o “tempo das certezas”, em virtude de otimismo crescente com as descobertas das ciências e com certo progresso humano. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocou uma grande corte nessas “certezas” e em certa “ingenuidade” que supunha que essa seria a última das guerras, a guerra das guerras. O mundo pós-guerra tornou-se um mundo de “incertezas”, com, por exemplo, a “geração perdida” de Hemingway. E assim surgiu espaço para os totalitarismos. Entre eles o Nazismo, que levou à Segunda Guerra Mundial. Na Segunda Guerra Mundial, idealistas como os da Resistência Francesa venceram. O mundo foi reconstruído aos poucos. Nessa fase foi criada a Organização Mundial de Saúde em 1948.

Com o gradual progresso econômico, em 1950 começou o Período Pós-Moderno, que durou até 2001. O Período Pós-Moderno viu, gradativamente, a ética e o idealismo passarem a ser secundários aos objetivos e aos resultados. A partir de 1980, a subjetividade perdeu valor para a objetividade. Predominaram pragmatismo, eficiência e resultados, em detrimento da ética, da subjetividade, da arte plena.

Entre 2001, ano do ataque ao World Trade Center, e 2008, ano do início da grande crise econômica, ocorreu um período de transição para o Período Pós-pós-moderno. Neste período começou uma decadência do pragmatismo, da eficiência e dos resultados como predominantes e certa volta da Ética como mais importante do que os objetivos buscados, e certa revalorização da subjetividade. Tudo isso ainda está em caminho.

Nesses períodos referidos, a medicina passou por várias fases. Ela não foi a mesma entre 1800 e 2020. Assim também mudou a sociedade, aumentou o tempo de sobrevida das pessoas, progrediram os recursos tecnológicos, e outros fatores.

Quando eu estudei medicina, na década de 70 do século XX, as pessoas viviam menos. Os recursos médicos eram bons, mas menos do que agora. Um paciente com mais de 70 anos dificilmente era operado, porque o risco era grande. Um dos fatores levados em conta se poderia ser operado era a idade. Hoje em dia, praticamente não há esse limite. Não é a idade isoladamente que conta, mas outras condições. Do mesmo modo, o recurso de intubação ainda era relativamente recente e os ventiladores (ou respiradores) eram menos aprimorados. Assim, dificilmente se intubava algum paciente com mais de 70 anos. Dizia-se que se isso fosse feito ele não mais sairia do aparelho e morreria em breve. Se nessa época surgisse uma pandemia como a do coronavírus, como a idade de sobrevida era menor, talvez houvesse menos foco na questão de ter que intubar os casos graves. Embora já se conhecesse o coronavírus, não havia tanta tecnologia para identificar o “novo coronavírus”.

Em 2020, as pessoas vivem muito mais. Nesta pandemia, os idosos são os que mais sofrem as graves consequências desse quadro. Mas a tecnologia avançou e já se conhece mais sobre a intubação e os processos respiratórios, de modo que intubar um idoso não é mais uma sentença de morte. Então, a indicação de intubação implica em uma responsabilidade da medicina para com esses pacientes. Além deles, os pacientes com moléstias crônicas existem em maior número do que na década de 1970, não só pelo aumento da população, mas também porque os recursos médicos permitem que eles vivam mais e melhor, embora mais frágeis. Também existe uma responsabilidade da medicina para com esses pacientes, no sentido de evitar que sejam acometidos pela pandemia. Esses dois grupos devem ser cuidados pela medicina com os recursos atuais.

A patocenose dessa moléstia implica então em toda a complexidade de fatores presentes em 2020, que fazem essa pandemia ser pandemia e as medidas de prevenção serem como são, com quarentena e isolamentos.

 As pessoas que têm uma mentalidade estacionada nas décadas de 1960 e 1970 raciocinam com a medicina daquela época, com a sociedade daquela época, vêm fantasmas sócio-culturais daquela época.

 Fatores positivos e fatores negativos sempre estiveram presentes na história. A Idade Média não foi a Idade das Trevas, nem o Iluminismo a Idade da Luzes. O século mais sombrio da humanidade, por enquanto, foi o século XX.

Em 2020, também há fatores negativos e positivos, mas a medicina é obrigada a fazer o que tem que fazer, com seus imperativos éticos. Dizemos sempre que não existem doenças, existem doentes. As doenças mudam, as patocenoses mudam. A pessoa que sofre está sempre presente.

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Afonso Carlos Neves

Sou médico formado pela Escola Paulista de Medicina em 1979, neurologista, mestre e doutor em Neurologia pela EPM , com Pós Doutorado em Neurologia na University of California San Francisco. Doutorado em História Social da Ciência pela FFLCH; tive livros publicados de ficção, ensaios e pesquisa histórica. Em 2015 tive a oportunidade de participar de Workshop sobre Medicina Narrativa  com Rita Charon na Columbia University, NY. Sempre tive “um pé” em Ciências Humanas e nas Artes. Por isso, enquanto estudava medicina aprimorei-me um pouco na música e na escrita. Desde que entrei na faculdade a questão do humano me “incomodou”, nas situações em que a ciência, ou o comportamento decorrente de uma maneira de ser ou de pensar eram centradas num triunfalismo científico. Encontrei caminhos mais amplos com colegas, com alguns professores e com outras pessoas, com livros, com discos, com filmes, etc, etc. Tenho também um traço místico/religioso que influenciou na minha preocupação com o humano.

 

 

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