Por Andrea Bottoni:
Antonio Bonaldi é presidente da Associação Italiana de Slow Medicine e publicou o artigo “Perché in medicina si fanno cose inutili e danosa? Salute e benesserenon dipendono dalla quantitá di beni i di servizi consumati” , na revista Wall Street Journal International, em fevereiro de 2020, poucos dias antes da eclosão da Pandemia pelo Novo Coronavírus na Itália. Nosso colaborador Andrea Bottoni traduziu e comentou o artigo.
O artigo é dividido em quatro partes: 1) “A crise da medicina e do serviço de saúde”; 2) “Como poderiam ser melhorados os investimentos?”; 3) “Por que não agimos?”; 4) “Então, o que pode ser feito?”
A medicina faz muitas coisas úteis, das quais não poderíamos abrir mão sem comprometer seriamente nossa saúde, e das quais os médicos e profissionais de saúde têm orgulho. O cuidado com a saúde é um dos direitos garantidos pela constituição (italiana) e representa um importante indicador da civilização e desenvolvimento de um país. Defender e financiar adequadamente nosso Serviço de Saúde (que muitos nos invejam no exterior) é, portanto, um dever de todos. A Itália gasta 8,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, aproximadamente o mesmo que a média dos países da OCDE. No entanto, os custos estão aumentando continuamente e os recursos alocados à saúde estão se mostrando cada vez mais insuficientes para garantir o acesso a cuidados de boa qualidade para todos.
É sabido que há desperdícios na saúde, aproximadamente 20 a 30% das despesas atuais de assistência médica. Um número enorme, que segundo um recente relatório GIMBE (estudo sobre sustentabilidade do Serviço Sanitário Nacio0nal italiano 2016-2025) equivaleria, para o nosso serviço de saúde, a mais de vinte bilhões de euros por ano. Entre os diferentes tipos de desperdícios (ineficiências organizacionais, compras com custos excessivos, fraudes, etc.), o item mais significativo é representado pela prestação de serviços de saúde desnecessários.
As prestações de serviços de saúde desnecessários desse tipo são muitas e amplamente documentadas pela literatura científica, mas ninguém parece disposto a conter um fenômeno tão singular; de fato, parece que o interesse predominante seja exatamente o oposto. Alguns exemplos são: rotinas de exames pré-operatórios; artroscopia de joelho em quadros degenerativos ; exames de imagem solicitados precocemente para dores nas costas; programas de check-up; dosagem indiscriminada do PSA; prescrição de vitaminas e suplementos alimentares na ausência de necessidades reais. Tentamos imaginar uma empresa que desperdice 25% de seu faturamento todos os anos. Certamente, teria poucas chances de sobreviver sem a adoção de medidas corretivas adequadas e imediatas. No entanto, essa regra parece não se aplicar ao Serviço Sanitário Nacional (italiano), que continua desperdiçando grande parte dos recursos para executar serviços de saúde desnecessários e até prejudiciais. Por que esse paradoxo não termina? A resposta é muito simples. Porque as atividades humanas, incluindo a saúde, não são guiadas por seus efeitos, mas pela conveniência econômica dos atores envolvidos. O desperdício e os ganhos atribuíveis a uma determinada atividade são dois aspectos da mesma moeda e dependem do ponto de vista do observador. O que é considerado desperdício, por um lado, por outro lado, se torna um ganho e, geralmente, quando interesses econômicos entram em jogo, prevalecem os mais influentes e mais gananciosos do ponto de vista do poder e das finanças. Infelizmente, não há receita segura: nenhuma varinha mágica pode nos ajudar. Os enormes interesses em jogo, a indiferença das instituições, o mito do crescimento ilimitado, a ideia quase unânime de que fazer mais é sempre melhor, a incapacidade das pessoas de se orientarem entre propostas muitas vezes contraditórias nos levam a acreditar que o fenômeno, apesar de alguns sinais auspiciosos, está destinado a persistir por um longo tempo e a se expandir ainda mais. De qualquer forma, dado que a esperança é a última a morrer, embora tenhamos consciência da enorme desproporção das forças em campo, no momento estamos contentes em registar alguns sinais encorajadores de mudança. Os jovens estão conscientes de que, para garantir nosso bem-estar e o das gerações futuras, é necessário promover uma mudança de paradigma: de um sistema cultural e social baseado em uma economia extrativa, onde a natureza é considerada uma mina inesgotável de recursos, para uma economia gerador em que a natureza é percebida como um ecossistema a ser respeitada e usada como modelo de aprendizado. No setor da saúde, há alguns anos, esses problemas têm sido objeto de grande interesse e suscitaram importantes campanhas de conscientização, entre as quais mencionamos: Less is more, lançado em 2010 pela JAMA Internal Medicine, Too much Medicine, promovido em 2013 pelo BMJ e a Campanha Choosing Wisely, que começou em 2012, nos Estados Unidos, coordenado pela Abim Foundation e adotada na Itália pelo Movimento Slow Medicine. O último projeto trata do excesso de serviços de saúde através do envolvimento simultâneo de pacientes e profissionais. Para tanto, as empresas científicas que aderem à iniciativa comprometem-se a identificar, com base no melhor conhecimento disponível, 5 procedimentos de saúde comumente usados que não trazem benefícios significativos aos pacientes, mas que podem expô-los a possíveis efeitos nocivos. 46 sociedades científicas já aderiram ao projeto, definindo 250 recomendações relacionadas a testes de diagnóstico, procedimentos de saúde e medicamentos usados de forma inadequada. Muitas pessoas de destaque estão nos dizendo que, para garantir atendimento de boa qualidade a todos, um dos grandes paradoxos da medicina atual deve ser enfrentado: conviver com uma grave crise financeira que impede que muitas pessoas tenham acesso a tratamentos essenciais (que salvam vidas), enquanto uma enorme quantidade de recursos é desperdiçada para executar serviços de saúde desnecessários e até prejudiciais. Obviamente, o caminho é complicado, pois requer uma mudança cultural importante que saiba como questionar o mito do crescimento quantitativo indefinido, a mercantilização da saúde e a ideia de que fazer mais é sempre melhor. Uma mudança que saiba reconhecer que saúde e bem-estar não dependem da quantidade de bens e serviços consumidos, mas do respeito pela rede de vida que se desenvolveu ao longo de bilhões de anos e que é cada vez mais comprometida por comportamentos míopes que buscam interesses individuais e de curto prazo.
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Andrea Bottoni, italiano, de Roma, é medico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição, com Especialização em Medicina Desportiva na UNIFESP, tem Título de Especialista em Nutrologia e em Medicina do Esporte, é Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP, com MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper e MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo, é Instrutor de Mindful Eating pela UNIFESP, vive no Brasil, em São Paulo, há 24 anos, felizmente casado com Adriana, também médica.
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Antonio Bonaldi é médico, especialista em saúde pública. Por mais de 20 anos foi diretor de serviços de saúde públicos na Itália. Ele é coautor do livro Slow Medicine – As palavras da medicina que muda (Il Pensiero Scientifico Editore, 2017). Atualmente é presidente do Movimento Slow Medicine Itália e é docente na Universidade de Verona – Itália.