Por André Islabão:
“para encontrar o azul eu uso pássaros”
Novembro está aí e com ele a campanha anual do Novembro Azul – ou Blue November, como é chamado em alguns países – que visa conscientizar a população sobre o câncer de próstata e defende medidas de rastreamento para a detecção precoce de casos da doença. O movimento que começou na Austrália[1] já parece estar passando por mudanças e, em alguns países, suas ações se voltam agora para uma visão mais global da saúde masculina, o que certamente envolve muito mais do que o câncer de próstata. Esta é uma evolução importante que deve ser buscada o quanto antes aqui no Brasil, não apenas porque outras condições clínicas como as doenças cardiovasculares matam muito mais do que o câncer de próstata, mas porque os procedimentos de “prevenção” defendidos nos moldes atuais da campanha são bem menos eficazes e benéficos do que se imagina.
Estamos realmente prevenindo o câncer de próstata?
Uma discussão pertinente é saber o que os procedimentos atuais de rastreamento do câncer de próstata de fato se propõem a fazer. Diferente do que se imagina, a dosagem do PSA – que é a forma de rastreamento preconizada com ou sem o toque retal – não previne o câncer, sendo apenas capaz de detectar um câncer de próstata que já exista. É verdade que podemos em raros casos impedir a progressão de um câncer agressivo que, se não fosse detectado a tempo, poderia ameaçar a vida do paciente. Porém, na imensa maioria dos casos, o rastreamento amplo do câncer de próstata com a dosagem do PSA apenas aumenta a detecção de cânceres localizados e de crescimento lento que muitas vezes nem precisariam ser diagnosticados, pois jamais ameaçariam a vida desses homens (o chamado sobrediagnóstico, o qual pode chegar a 50% dos casos de câncer detectados pelo PSA[2]).
Além disso, essas campanhas não costumam nem mesmo citar as medidas preventivas que realmente poderiam reduzir os casos de câncer em nível populacional, como o consumo de dietas saudáveis ricas em produtos de origem vegetal, a manutenção de um peso corporal adequado e a prática regular de atividade física[3]. Afora o benefício de redução dos casos de câncer de próstata, a ampla adoção dessas medidas de estilo de vida mais saudáveis tem a capacidade de reduzir também a incidência de vários outros tipos de câncer e das temidas doenças cardiovasculares, as quais matam 10 ou 20 vezes mais homens do que o câncer de próstata. Como é possível perceber, o foco exagerado da campanha nos exames de rastreamento pode nos levar a não dar a devida importância àquelas medidas que realmente trariam amplos benefícios para os homens.
O que diz a Ciência sobre essas campanhas?
O calcanhar de Aquiles do Novembro Azul talvez seja o evidente descompasso entre os procedimentos propostos pela campanha em anúncios na mídia e as melhores evidências disponíveis sobre o assunto. Se considerarmos as melhores evidências disponíveis nos estudos científicos e nas análises de instituições confiáveis como a Cochrane[4], a UpToDate[5], a USPSTF[6] e a Choosing Wisely[7], não haveria nenhuma razão para defendermos o amplo rastreamento de homens a partir de 50 anos com testes de PSA e/ou toque retal, pois todas essas evidências apontam para a ineficácia de tais procedimentos em termos de fazerem as pessoas viverem mais ou melhor.
Quando se analisa o conjunto dessas evidências, o rastreamento do câncer de próstata não reduz a mortalidade total e nem mesmo parece reduzir de forma confiável a mortalidade específica por câncer de próstata. Entre os cinco estudos randomizados que avaliaram a questão, apenas um deles mostrou um pequeno benefício em termos de mortalidade específica por câncer de próstata. O problema é que este benefício pode ser facilmente anulado pelos inúmeros efeitos prejudiciais decorrentes da cascata de procedimentos desencadeada pelo rastreamento.
Para se ter uma ideia, segundo os dados deste mesmo estudo organizados pela CTFPHC[8], para cada 1.000 homens rastreados durante 10 a 15 anos, haveria 280 casos de PSA elevado que seriam submetidos a biópsias prostáticas, dentre os quais ocorreriam 4 casos de hemorragias e infecções. Destes 280 casos, 178 homens receberiam um diagnóstico falso-positivo e 102 seriam diagnosticados com câncer, mas um terço destes seriam considerados como sobrediagnóstico. Além disso, como a imensa maioria desses pacientes receberia algum tratamento para o câncer, é de se esperar que muitos deles sofram complicações do tratamento (10-20 casos de infecções, reoperações e hemorragias; 10-40 casos de disfunção erétil prolongada; 10-20 casos de incontinência urinária; além de possíveis casos de complicações fatais do tratamento). Neste que foi o estudo com resultados mais “positivos”, foi sugerido que o rastreamento evitaria uma morte de cada seis mortes por este câncer específico. É importante lembrar que, em termos populacionais, isso significa apenas a mudança da causa mortis, sem representar um real prolongamento da vida desses homens.
Como explicar a discrepância entre mortalidade total e específica?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que esses dados se referem a populações, e não a indivíduos. Mesmo que a análise de todos os estudos não mostre benefício de mortalidade total nem específica, poderíamos ser levados a acreditar de forma otimista neste estudo “positivo” que demonstrou uma redução de mortalidade específica por câncer de próstata de 0,6% para 0,5% (6/1.000 para 5/1.000). Neste caso, teremos que buscar explicações para o fato de uma intervenção reduzir a mortalidade específica sem promover a redução da mortalidade total.
A primeira possibilidade é de que o número de pessoas avaliadas nos estudos não tenha sido suficientemente grande para demonstrar um eventual benefício. Esta é uma boa possibilidade, mas deve-se ressaltar que os estudos analisados envolveram cerca de 500.000 pessoas, o que nos leva a questionar a relevância clínica de uma intervenção que precise ser realizada em milhões de pessoas para que seu eventual benefício possa ser demonstrado. Outra possibilidade bastante razoável é de que o eventual benefício sobre a mortalidade seja anulado pelas complicações do tratamento da doença, como infecções, hemorragias e complicações cirúrgicas. Também se deve ter em conta que os fatores de risco para câncer de próstata são praticamente os mesmos de outros cânceres e das doenças cardiovasculares, o que sugere que muitos pacientes apenas troquem uma morte por câncer de próstata por uma morte coronariana ou por AVC.
Em qual narrativa acreditar?
No caso dessas campanhas coloridas, é comum que haja vários atores envolvidos, cada qual com seus interesses próprios[9]. No caso do Novembro Azul, as sociedades de urologia e de oncologia e os profissionais diretamente envolvidos nos procedimentos de rastreamento são muito mais favoráveis ao rastreamento, em alguma medida por questões econômicas. Existem ainda os interesses de empresas que lucram com a realização de exames de imagem e que também ganham com a empreitada mais ampla. Há também os políticos, os quais nunca ligaram de fato para a Ciência e estão mais preocupados em angariar votos, o que certamente é mais fácil de conseguir quando se adotam medidas midiáticas de grande impacto como as campanhas de meses coloridos. Por fim, existe a grande mídia, a qual infelizmente ainda repercute a narrativa da necessidade imperiosa de que os homens façam o rastreamento do câncer de próstata. Isso sem falar naquele famigerado material de propaganda da campanha onde um piadista sem graça e um ator famoso recentemente se prestaram a disseminar desinformações sobre o tema, provavelmente por não terem sido adequadamente orientados.
Em casos como este, a melhor opção é avaliar as narrativas conforme seu grau de comprometimento financeiro ou eleitoral com a empreitada, optando por acreditar naquelas produzidas por instituições ou profissionais sérios e sem conflitos de interesse gritantes em relação ao assunto. No caso do Novembro Azul isto é muito fácil, uma vez que a Ciência é clara em relação ao assunto e até mesmo o Ministério da Saúde e o INCA[10] já se manifestaram contrariamente à realização do rastreamento de próstata de forma mais ampla na população masculina em geral.
Criação Ana Lucia Coradazzi
O poder da boa informação
Uma questão importante é como conjugar os achados populacionais obtidos nas grandes metanálises sobre o tema com as condutas tomadas diante do paciente individual que busca a atenção médica. Como profissionais bem-intencionados, tendemos a acreditar que todos os diagnósticos de câncer de próstata que fazemos a partir do PSA são oportunos e beneficiam aquele paciente sentado à nossa frente no consultório. Além disso, tendemos a acreditar que os pacientes que eventualmente desenvolvem câncer de próstata avançado o fizeram porque não foram submetidos ao rastreamento. Porém, os dados dos estudos e o diagrama da CTFPHC deixam claro que muitos casos diagnosticados pelo PSA representam cânceres indolentes cujo diagnóstico não necessariamente traz benefícios ao paciente. Por outro lado, os mesmos dados mostram que a imensa maioria dos casos de doença avançada (5 de cada 6) teria ocorrido mesmo em vigência de rastreamento. Reconhecer esses dados pode nos levar a agir de forma menos arrogante ao indicarmos os testes de rastreamento e também impediria que nós de alguma forma culpássemos os próprios pacientes com câncer avançado por não terem realizado o rastreamento.
O que fazer?
O câncer de próstata é uma doença significativa e que representa uma elevada carga de morbimortalidade na população. Porém, muita gente parece ter ficado confusa com as notícias discrepantes sobre se é válido ou não realizar os testes de rastreamento para o câncer de próstata. Neste caso, a melhor alternativa é adotar a postura parcimoniosa da Slow Medicine e optar pelo “caminho do meio” entre a negação do problema e a farra do rastreamento universal. Isso significa conversar com seu médico de confiança sobre o assunto para definir qual o seu nível de risco e quais as suas preferências pessoais em relação ao assunto. Pode-se ainda aproveitar a conversa e descobrir as melhores estratégias de prevenção primária da doença, como dieta, atividade física, etc.
O que está bastante claro conforme a melhor Ciência atual é que o rastreamento amplo dos homens em geral para o câncer de próstata com PSA não parece trazer benefícios em nível populacional e pode causar várias complicações. Isso não significa que o rastreamento deva ser totalmente abandonado, mas sim que ele deve ser usado de maneira mais diligente com foco em pessoas de maior risco (história familiar de câncer, homens negros, portadores de determinadas mutações genéticas, etc.) ou que optem por realizá-lo em um processo de decisão compartilhada no qual o paciente esteja realmente informado sobre o tema. É nessas situações difíceis que percebemos o quanto que os princípios da Slow Medicine – como o tempo, a individualização, a relação clínica, a prevenção e a segurança – podem nos ajudar. Se o tal Blue November também pode significar um novembro triste, agora temos razões de sobra para ficarmos animados!
André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine. Recentemente publicou o livro “O risco de cair é voar“. André é também autor do blog andreislabao.com.br
A imagem que ilustra o texto é uma pintura de Yves Klein .
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[2] https://www.uptodate.com/contents/screening-for-prostate-cancer
[3] https://www.cancer.org/cancer/types/prostate-cancer/causes-risks-prevention/prevention.html
[4] https://www.cochranelibrary.com/cdsr/doi/10.1002/14651858.CD004720.pub3/full
[5] https://www.uptodate.com/contents/screening-for-prostate-cancer
[6] https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/recommendation/prostate-cancer-screening
[7] https://www.sbmfc.org.br/noticias/choosing-wisely-a-iniciativa-da-sbmfc/
[8] https://canadiantaskforce.ca/tools-resources/prostate-cancer-harms-and-benefits/
[9] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/article-abstract/2808645
[10] https://www.cnnbrasil.com.br/saude/exame-de-rastreamento-do-cancer-de-prostata-nao-e-mais-necessario-nao-e-bem-assim-entenda/
Conteúdo lúcido e responsável. Como é significativo encontrar pessoas competentes e humanizadas no meio médico.
Muito obrigado, Claudeildo!