Por André Islabão
A filosofia slow tem se imposto cada vez mais como uma necessidade em nosso mundo. Não é à toa que o movimento que iniciou como Slow Food já tem vertentes tão variadas como Slow School, Slow Travel, Slow Cities e Slow Money, apenas para citar alguns. Os benefícios da filosofia slow para a medicina estão ficando cada vez mais evidentes, o que tem feito com que cada vez mais pessoas leigas e profissionais se interessem pelo movimento. A Slow Medicine ou Medicina Sem Pressa muda o tempo da consulta e do contato entre médico e paciente. Mesmo quando a duração da consulta não é significativamente prolongada, é como se a “profundidade” do tempo fosse diferente, já que a intensidade do contato é diferente. Dito isso, um dos problemas encontrados pelos profissionais com uma visão sem pressa da medicina é que a velocidade em outras áreas da medicina é cada vez maior, o que pode sugerir uma certa desarmonia. Uma dessas áreas fast tem sido a pesquisa médica. Porém, não seria ruim se a pesquisa médica também adotasse uma postura mais slow. Já pensou como seria uma Ciência Médica Sem Pressa? Poderíamos começar tentando ajustar a pesquisa médica aos belos princípios da Slow Medicine.
O princípio mais importante da Slow Medicine é o que propõe uma mudança em nossa relação com o tempo, o que nos daria mais oportunidade para compreender, refletir e tomar decisões com mais sabedoria. Se extrapolássemos este princípio para a pesquisa médica, uma Ciência Médica Sem Pressa seria mais cautelosa na aprovação de novos medicamentos, proporcionando tempo para que os resultados dos estudos sejam analisados com calma e replicados por outros grupos de pesquisadores para que seus resultados sejam confirmados ou refutados. É evidente que a pressa nas pesquisas não é uma exigência da própria ciência. Na verdade, a pressa até atrapalha a ciência em sua busca por verdades sólidas, embora ajude a quem deseja lucrar com medicamentos cuja eficácia ou segurança talvez não resistam a uma análise mais aprofundada. Assim, ao proporcionarmos tempo para a análise cuidadosa dos resultados também estaríamos levando em consideração um outro princípio importante da Slow Medicine: o princípio da segurança em primeiro lugar.
Já o princípio do tratamento individualizado seria abordado adotando-se uma visão mais cautelosa em relação à generalização dos resultados dos estudos para o paciente individual, algo que atualmente não parece receber o cuidado necessário. Além disso, poderíamos ser mais exigentes na adoção das intervenções médicas buscando NNTs menores, o que faria com que as intervenções tivessem mais chances de beneficiar o paciente individual. Seria também interessante reduzir as exigências dos critérios de inclusão e exclusão nos RCTs a fim de que os sujeitos nos estudos fossem mais parecidos com as pessoas da vida real. Outra maneira de abordar a individualidade do paciente – e que também contemplaria os princípios de autonomia e decisão compartilhada – é considerar seus valores e preferências até mesmo na hora de delinear e conduzir os estudos. Muitas vezes os desfechos clínicos dos estudos são escolhidos apenas para facilitar a aprovação dos medicamentos, sendo muito diferentes dos desfechos que seriam considerados adequados pelos pacientes. Reduzir um ou dois pontos em uma escala é bem diferente de curar alguém ou de eliminar os sintomas de uma doença.
Os princípios relativos ao autocuidado e à prevenção seriam contemplados por uma pesquisa clínica que não se limitasse a intervenções medicamentosas ou invasivas. Uma dificuldade da pesquisa atual – com o rigor de sua hierarquia – é que ela reduziu o interesse da medicina por intervenções não medicamentosas, já que é mais difícil avaliá-las por RCTs. Poderíamos fazer mais pesquisas sobre intervenções não farmacológicas para tratamento de problemas que costumamos tratar com remédios ou mesmo delinear comparações criativas e interessantes entre medicamentos e medidas não farmacológicas. Ao reduzir o papel dos estudos de intervenções não farmacológicas, a pesquisa atual diminuiu muito a autonomia das pessoas em relação a seus cuidados, já que criou uma impressão geral – não necessariamente verdadeira – de que remédios são sempre mais potentes que intervenções não farmacológicas.
Uma maneira de abordar o princípio do conceito positivo de saúde e a qualidade de vida seria a consideração de desfechos clínicos mais relacionados à qualidade de vida dos pacientes, em vez de simplesmente medir dados quantitativos como porcentagem de sobrevida, pontuações em escalas de doenças ou proporção de pessoas com determinado desfecho clínico. Isso é especialmente verdadeiro naquelas populações onde a qualidade de vida pode ganhar ainda mais importância que a quantidade de vida, como é o caso dos pacientes mais idosos.
O princípio que reflete a convivência respeitosa com as práticas de medicina integrativa poderia ser contemplado dando maior importância à investigação sistemática dessas intervenções variadas. Como elas não costumam ser submetidas a testes empíricos de qualidade, acaba-se com a impressão de que sejam “inúteis” ou “mais fracas”, o que pode ou não ser verdade. A questão importante aqui é que os estudos sejam delineados e conduzidos segundo os princípios da medicina baseada em evidências original e evitando-se ao máximo os chamados conflitos de interesse. Se já foi demonstrado que boa parte das intervenções médicas comumente usadas não estão firmemente baseadas em evidências, deveríamos ter a humildade necessária para admitir uma convivência respeitosa, evitando essa espécie chauvinismo científico tão comum atualmente.
A questão do uso exagerado das tecnologias poderia ser abordada segundo a explicação de que a tecnologia deve servir ao homem, e, não, o contrário. Atualmente é a medicina que tem servido aos interesses da indústria e da pesquisa fast. Novos medicamentos são testados não por sua necessidade na prática clínica, mas por haver uma molécula disponível e algum nicho de mercado lucrativo. A necessidade de se buscar uma nova alternativa terapêutica para qualquer doença deveria ser uma demanda originada na prática clínica diária. O que vemos atualmente é a inversão disso, com as empresas de biotecnologia testando moléculas em laboratórios e posteriormente criando uma demanda baseada no marketing de doenças.
O princípio da paixão e compaixão é bastante óbvio. A pesquisa clínica, assim como a prática clínica, deve ser fruto de uma vocação pura. Como dizia um sábio da medicina: o médico deve gostar de gente. O pesquisador também deve ser apaixonado pela sua atividade e ter como meta principal descobrir novas formas de ajudar as pessoas. Aquele que faz pesquisa apenas por vaidade ou ganância deveria abandonar essa atividade tão bela e importante para a humanidade. Nenhum pesquisador apaixonado pela sua atividade e pelas pessoas aceitaria aprovar medicamentos inúteis ou indecentemente caros, pois saberia que são essas pessoas comuns que acabarão sendo prejudicadas por suas descobertas, seja por efeito colateral direto dos medicamentos ou pela retirada de recursos de outras medidas mais baratas e efetivas.
Enfim, uma Ciência Médica Sem Pressa é possível e seria uma conquista muito bem-vinda para a humanidade e para a própria medicina. Até já existe um movimento incipiente por uma Slow Science em outras áreas da ciência. Quem considera que a pesquisa médica deve ser o mais fast possível e que ela não pode perder tempo, deve lembrar que os problemas médicos da humanidade atual são os mesmos de nossos ancestrais e que a velocidade com que novos medicamentos são aprovados e colocados no mercado não se traduz em benefício clínico com a mesma rapidez e intensidade. Usamos alguns nomes diferentes, mas na maioria das vezes os problemas atuais da humanidade sempre existiram. Se existem as chamadas “doenças da modernidade” elas são em grande medida um resultado de nossa atual cultura fast, a qual tem causado muito sofrimento e desumanização. Talvez devêssemos reconhecer isso e buscar alternativas que não sejam essa atual de acelerar cada vez mais rumo ao desconhecido. Se a grande conquista evolutiva dos seres humanos foi a capacidade de raciocinar, vamos exigir tempo para fazê-lo adequadamente. Alguns autores já clamaram por uma “moratória” em várias áreas da ciência. Podemos ser bem mais modestos e realistas, aceitando que uma redução em seu ritmo alucinante já seria uma grande conquista para a humanidade.
André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – a obra “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine e autor do blog andreislabao.com.br.