Por José Carlos Aquino de Campos Velho:
“Acreditar na medicina seria a suprema loucura se não acreditar nela não fosse uma maior ainda, pois desse acumular de erros, com o tempo, resultaram algumas verdades.”
Pode parecer incomum que uma opinião acerca de uma especialidade venha de um indivíduo estranho a ela. No entanto, trata-se de especialidades com grandes afinidades e convergências: geriatria e psiquiatria, havendo inclusive uma área em comum chamada psiquiatria geriátrica, que se debruça, em particular, sobre as depressões, demências e psicoses tardias.
De onde vem a ideia de uma Psiquiatria sem Pressa ou uma Slow Psychiatry? Ao explorarmos a história da psiquiatria moderna observaremos uma verdadeira revolução a partir do século XIX. Grandes nomes como Freud, Kraepelin , Charcot e outros estudiosos da mente humana buscaram entender o mistério que se escondia por trás da doença mental. Já ao longo do século passado, particularmente em sua primeira metade, a psiquiatria caracterizava-se por uma por ser uma especialidade onde o diálogo, a conversa, a semiologia – falando-se da propedêutica exploratória do sofrimento mental-, tinham um papel fundamental. Era uma especialidade onde o detalhe, a minúcia, os maneirismos, tinham relevância diagnóstica. Mesmo as propostas terapêuticas frequentemente alicerçavam-se no entendimento que o próprio paciente pudesse ter de seu sofrimento e, tomando consciência dele, procurasse encontrar a saída por meio de técnicas psicodinâmicas, em estreita colaboração com o seu terapeuta. Claro que não estamos falando de doenças psiquiátricas cuja abordagem é quase impraticável do ponto de vista de relações interpessoais, em pessoas com severas limitações, na vigência de patologias tão graves que a comunicação se torna impossível. Infelizmente estes casos perfazem um número significativo de doentes em Psiquiatria e uma abordagem Slow nestas situações pode ser interessante no sentido humanitário, no aspecto da contingência do sofrimento e do acolhimento afetuoso destas pessoas.
A segunda metade do século XX trouxe um enorme enriquecimento, tanto do ponto de vista dos instrumentos diagnósticos quanto dos fármacos disponíveis para o tratamento psiquiátrico. Novamente podemos trazer a palavra revolução na abordagem das doenças mentais. Isso trouxe benefícios inquestionáveis para um grande número de pacientes . Porém, é nesse momento em que o pêndulo que se movia em direção ao centro se moveu por demais para o lado contrário: a psiquiatria passa a se comportar enquanto especialidade muito mais próxima da neurologia do que das ciências psicológicas. É provável que a psiquiatria passe a limitar seus horizontes – e possibilidades de intervenção clínica – quando não enxerga esse tipo de necessidade como essencial. Podemos ver no surgimento de estruturas classificatórias (como por exemplo DSM V) que tende à “patologização” de uma miríade de sintomas mentais, uma verdadeira medicalização da vida cotidiana, dentro da área psíquica. A medicalização transcende a psiquiatria, ela se dá em inúmeras áreas da medicina. Porém dentro da psiquiatria frequentemente os comportamentos passam a ser interpretados como patológicos e portanto passíveis de tratamento e intervenções – particularmente intervenções farmacológicas. Aqui surge um verdadeiro marco na “nova” psiquiatria: os grandes conflitos de interesse por uma relação de excessiva proximidade com a indústria farmacêutica, tanto na área de pesquisa, como assistencial. O apetite da indústria farmacêutica na área psiquiátrica é insaciável, na medida em que existe um constante estímulo sobre a classe médica a acreditar que todo e qualquer comportamento possa ser considerado doentio e portanto, tratável.
A interessante iniciativa da ABIM Foundation, a Campanha Choosing Wisely busca levar alguma racionalidade a uma prática médica que muitas vezes se distancia das evidências, cujos referenciais frequentemente tendem ao empirismo, podendo inclusive ser permeados de crenças, em se falando particularmente da psiquiatria exercida no mundo real, fora dos horizontes da academia. A Campanha Choosing Wisely existe hoje em mais de 20 países, sendo que os EUA, a Grã-Bretanha e o Canadá tem recomendações das Sociedades de Psiquiatria. As principais questões endereçadas são o sobrediagnóstico e sobretratamento. Sabemos que um importante contingente da sociedade no mundo, mormente em países desiguais como o Brasil, não tem acesso a cuidados psiquiátricos em geral e muito menos qualificados, onde portanto testemunhamos enormes carências na assistência psiquiátrica. Paradoxalmente, pode haver sobretratamento da doença mental, por exemplo, pela restrição de tempo de atendimento e parca disponibilidade de profissionais, que acabam optando pela utilização massiva de fármacos, tendo como resultado uma sociedade altamente medicalizada no que tange ao sofrimento mental. Questões apontadas anteriormente, como o Sobretratamento, são observadas em várias áreas da Psiquiatria, como por exemplo no diagnóstico dos transtornos do espectro autista e nos transtornos do déficit de atenção e hiperatividade, com implicações imediatas abordagem clínica destas pessoas, tendendo-se novamente ao fenômeno da medicalização. Na Psiquiatria Geriátrica, observamos o sobrediagnóstico das demências, por uma avaliação muitas vezes fast dos problemas de memória, com a introdução intempestiva de anticolinesterásicos e sua manutenção até situações de terminalidade – fatos que estão distantes das evidências de benefícios. A utilização excessiva de outros fármacos, como antidepressivos, neurolépticos e benzodiazepínicos, pode trazer efeitos colaterais e reações adversas, particularmente quedas e dificuldades cognitivas, além de agravamento da dependência, em uma parcela da população frequentemente já fragilizada e com a sua autonomia comprometida.
Outra área permeada por abordagens pouco racionais (e que muitas vezes transcendem o exercício da psiquiatria, pois mesmo entidades religiosas se propõe ao cuidado dos portadores destes transtornos psíquicos) são as dependências químicas. Diagnósticos apressados de comorbidades psiquiátricas e uso excessivo de fármacos , pouca atenção à necessidade de um planejamento para manutenção da abstinência e prevenção de recaídas e um sem número de terapêuticas baseadas em crenças pessoais, seja do terapeuta ou dos pacientes e seus familiares, tornam o cuidado da dependência química uma verdadeira terra de ninguém.
Como então trazer à cena uma Slow Psychiatry? A primeira questão talvez seja resgatar o diálogo como pedra fundamental e ferramenta essencial para o psiquiatra em seu cotidiano. Embora haja consciência em geral de sua necessidade, a atenção multiprofissional e interdisciplinar em psiquiatria talvez ainda não esteja tão consolidada no cotidiano dos serviços de saúde mental, como poderíamos almejar. A questão do uso de medicamentos, primando por sua racionalidade, o que significa reduzir a Polifarmácia e optar por estratégias de Desprescrição quando assim possível; a evitação da influência da indústria farmacêutica e sua pressão para medicalização do sofrimento mental já seria um bom começo. A pressa para a elaboração diagnóstica e consequente introdução de fármacos, além de sua utilização por períodos prolongados, sem uma avaliação criteriosa dos reais benefícios dos medicamentos é outro ponto que pode ser salientado. Escolher com sensatez , e evitar o sobrediagnóstico e o sobretratamento podem ser o cerne de uma Psiquatria sem Pressa.
Uma questão que temos apontado é a necessidade de que os pacientes, familiares e cidadãos também se engajem na discussão sobre os preceitos da Slow Medicine, que devem ser divulgados para a sociedade. Sem a participação ativa das pessoas nas decisões que tangem à sua saúde, dificilmente haverão avanços concretos nesta proposta disruptiva de atenção médica. Em Psiquiatria, isso não é diferente, na medida em que a medicalização muitas vezes é uma demanda da própria coletividade.
Precisamos colocar a cabeça no lugar, depois de tanto sofrimento e dos desafios vivenciados pela humanidade após quase 3 anos de pandemia. E talvez isso comece por pensarmos em tomar menos remédios, caminharmos mais, passearmos mais, ouvirmos mais música, vermos mais filmes, convivermos mais com as pessoas que amamos. Uma psiquiatria sem pressa combina bem com uma vida sem pressa. Talvez este possa ser um dos segredos: mais vida e menos remédios.
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José Carlos Campos Velho é médico geriatra, editor do site Slow Medicine Brasil e atualmente vive no Rio Grande do Sul.
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A pintura que ilustra a matéria é de Edvard Munch, pintor norueguês, e 3 de suas 6 versões encontram-se no Museu Munch de Oslo. O nome da pintura é “Amor e Dor” ou “Vampira”.
Prezados: Não sou da area da saúde, minha esposa é Psicologa? Psicanalista, me interesso pelo assunto, como possivel paciente como também como curioso, acompanhop seus e mails a muito tempo, vocês têm uma relação de profissionais de Campinas SP que trabalham dentro da filosofia do Slow medicine?