Por Carla Rosane Ouriques Couto:
“Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.”
Guimarães Rosa
Por décadas a comunidade científica conheceu três níveis de prevenção em saúde, desenvolvidos por Leavell e Clark em 1965, a partir da história natural de cada doença, a saber: prevenção primária, secundária e terciária. A prevenção primária engloba todo o conjunto de estratégias direcionadas a remover fatores de risco a saúde individual ou coletiva antes do desenvolvimento de doenças. São exemplos de prevenção primária as imunizações e a educação em saúde em seu amplo espectro de atuação – desde aconselhamentos de atividade física, cessação do tabagismo e abuso de substâncias, uso de preservativos à prevenção por medicamentos específicos capazes de evitar um agravo antes da doença. Na prevenção secundária, já existe o adoecimento, e as medidas visam atenuar seu curso, como o diagnóstico precoce, seja através de rastreios coletivos ou de grupos de risco, rastreios de contatos ou ainda medidas capazes de identificar o adoecimento já instalado. O que diferencia a secundária da primária, é que o desfecho final da estratégia vai encontrar pessoas já adoecidas. Um exemplo conhecido seria a oferta de mamografias em alta escala para detecção de câncer de mama: as mulheres identificadas já estavam adoecidas, tendo sintomas ou não.
Na prevenção terciária, as estratégias são direcionadas a evitar o agravamento de doenças estabelecidas, em geral crônicas, como Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e Diabetes tipo 2 (DM2). Aí entram todas as ações de controle da HAS e DM2, como monitoramento dos níveis pressóricos, cuidados ao pé diabético e outros. Esse nível de prevenção engloba também todas as ações de reabilitação voltadas à qualidade de vida e reinserção social e laboral, minimizando as condições de limitação ou incapacidade. Neste nível paciente e médico se encontram na percepção da doença, o paciente se sente doente e o médico o vê como doente. Desde 1965 importantes consensos na área de saúde coletiva superaram as ideias de Leavell e Clark, como o Relatório Lalonde, publicado em 1974 no Canadá, e a Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em 1986, em Ottawa, trazendo para o debate mundial a afirmação do social nos determinantes de saúde, questionando o modelo biomédico preventivista e colocando a saúde como direito de cidadania. Podemos dizer que o conceito de Promoção à Saúde: “processo de fortalecimento e capacitação de indivíduos e comunidades para que ampliem suas condições de controlar os determinantes do processo saúde-doença, mudando positivamente seus níveis de saúde” perpassa todos os níveis de prevenção até então descritos. Quando olhamos para os cinco campos de ação da Promoção à Saúde, iniciamos a compreender as limitações dos três níveis de prevenção, e já visualizamos uma ligação importante do conceito de Promoção à Saúde com os princípios da Slow Medicine: elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; criação de ambientes favoráveis à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais e reorientação do sistema de saúde.
Estão aí incluídos alguns dos princípios internacionais do movimento Slow Medicine como: conceito positivo de saúde, individualização do cuidado, uso racional de tecnologias, segurança do paciente acima de tudo e a prática preventiva que promova mudanças positivas na qualidade de vida de indivíduos e comunidades. O conceito de Promoção à Saúde se encontra também com a Prevenção Primordial, que está direcionada a doenças crônico-degenerativas com foco na redução de comportamentos ou estilos de vida sabidamente associados ao adoecimento. Engloba políticas públicas que favoreçam a atividade física e nutrição saudável, por exemplo.
O conceito de Prevenção Quaternária (P4) aparece pela primeira vez abordado pelo médico de família belga Marc Jamoulle, no fim dos anos 80, como resultado da constatação de efeitos adversos de medicamentos e tratamentos, o que chamamos de iatrogenia clínica. A ideia de um quarto nível de prevenção foi oficialmente reconhecida em 2003 pela World Organization of National Colleges, Academies e Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians (WONCA), entidade que funciona como a Organização Mundial dos Médicos de Família. Segundo uma revisão recente de Peer e Shabir, na Europa, cerca de 95 mil óbitos anuais se dão por efeitos adversos de tratamentos e erros médicos evitáveis, sendo a iatrogenia a quinta causa de morte em todo o mundo. A sistematização da prevenção quaternária representa então uma postura ética e reflexiva no sentido de questionar: que consequências este tratamento, este medicamento, esta intervenção ou cirurgia podem ter para esse paciente em particular? Irá promover seu bem-estar, provocar danos ou apenas prolongar sua vida com sofrimento? Ou ainda, especialmente quando trabalhamos em Cuidados Paliativos, há uma questão essencial: qual era o desejo manifesto por esta pessoa no convívio com sua doença?
Ao nos depararmos com o conceito de P4, é impossível não nos lembrarmos da mais preciosa diretriz do juramento médico: “primum non nocere”. Onde esta máxima se descolou de nossa prática e se tornou apenas um estereótipo, restrita à atitude individual de cada um? Quando começamos a acelerar e buscar novos diagnósticos, exames e tratamentos ainda incertos cientificamente, atropelando o tempo e o estilo de vida de cada paciente? Não se trata de desconsiderar o progresso da ciência médica, mas sim de ponderar a velocidade de utilização do que é novo ou pouco conhecido.
Voltando ao primeiro e mais sagrado princípio da Slow Medicine – o tempo – uma forma de aplicar a P4 seria respeitar a demora permitida, acompanhando pacientes que possuem fatores de risco ou apenas se preocupam demais com sua saúde (“worried well ”), sem praticar sobrediagnósticos e sobretratamentos. Um exemplo comum seria prescrever estatinas para um paciente jovem e saudável, por uma história familiar de doença cardíaca e hábitos pouco saudáveis. Este jovem não é nem está doente, mas passa a ser tratado assim. É quem Marco Bobbio nomeou de “o doente imaginado” .
Um exemplo de estratégia efetiva de P4 é a campanha Choosing Wisely, lançada pela ABIM Foundation – American Board of Internal Medicine – que preconiza diretrizes amplas do que não fazer diante de situações frequentes na prática clínica. Além da redução da morbimortalidade por iatrogenia, a P4 permite a otimização da alocação dos recursos disponíveis, o que representa uma vantagem não desprezível em um contexto no qual o financiamento da saúde é um grande desafio em escala global. É consenso que nenhum sistema de saúde conhecido consegue suprir todas as necessidades e demandas em saúde pois, além destas demandas e necessidades, há um conjunto de “desejos” em saúde, constantemente expandido e nutrido pela mídia e pelos diversos segmentos do mercado. Neste admirável mundo novo , não apenas não ficaremos doentes e morreremos, mas seremos esteticamente belos e adequados ao padrão vigente. Uma boa reflexão é a constatação de que boa parte da dermatologia e da cirurgia estética se dedica intensamente à busca da satisfação destes desejos.
Num contexto geral, o uso intensivo de novas tecnologias não tem produzido melhorias significativas nos indicadores de morbimortalidade mas sim promovido o aumento de custos e o empobrecimento da relação clínica entre pacientes e profissionais de saúde, comprometendo um aspecto vital: o vínculo terapêutico. No sistema privado a atitude geral do paciente é “consumir” profissionais, exames e serviços, recebendo de volta seu investimento. No sistema público, excetuando ilhas de excelência, há barreiras de acesso e cuidado em todos os níveis de atenção. A medicina então deixa de ser “justa, sóbria e respeitosa” como preconiza o Manifesto da Slow Medicine, e passa a ser desigual, descontrolada, injusta e desumana. Esta prática oferece e incentiva o excesso para alguns e a falta para outros, que não tem a possibilidade de consumir e muito menos desejar. Múltiplos estudos comprovam que uma abordagem centrada na pessoa, com respeito ao tempo de fala, acolhimento, escuta cuidadosa e compartilhamento de decisões reduz a utilização excessiva dos serviços de saúde, traz benefícios para a saúde mental e diminui a maioria dos sintomas dos usuários. Temos como instrumento as tecnologias leves. Merhy e Feuerwerker, autores brasileiros, sugerem que estas tecnologias permitem a construção de vínculos de confiança no encontro do profissional de saúde e paciente permeado pela escuta e interesse mútuo. Um modelo que se encontra com a Slow Medicine: dar a cada um o seu tempo, permitir-se respeitar o tempo do profissional também, que está presente de “corpo e alma” e reconhece à sua frente a presença de um ser singular, que precisa ser acolhido. Para que sejamos praticantes da P4, é necessário um avanço em competências e habilidades de comunicação com o foco na pessoa, e não no serviço, no sistema ou no mercado. Esse avanço necessita ser da sociedade como um todo, para além dos sistemas de saúde, passando pela educação e formação em saúde, para que os usuários possam reconhecer o que é bom e adequado para si. Nesse sentido há encontro com os princípios Slow Medicine de compaixão, foco na qualidade de vida e individualização de cuidados.
É possível inferir que a P4 deve estar presente nos três níveis de prevenção inicialmente descritos. Ao propor um rastreio coletivo necessito individualizar os seus efeitos para a pessoa em questão. Entender que há duas (ou mesmo três perspectivas) de adoecimento, a biomédica: “disease” e aquela de cada pessoa: “illness”. Frequentemente pessoas que se sentem doentes são submetidas a uma “bateria” de exames, que quando normais ouvem ao final de sua consulta: “seus exames estão normais, você não tem nada, procure um serviço de saúde mental”. A perpetuação desse processo, que quase todo mundo já vivenciou em algum momento da vida, interessa a segmentos importantes, particularmente ao complexo médico-industrial – laboratórios, hospitais, indústria farmacêutica e de serviços privados de saúde. Ao praticarmos, no primeiro contato, uma abordagem slow centrada na pessoa, é possível que esse percurso seja modificado, racionalizando tempo e recursos, devolvendo ao paciente uma resposta mais próxima de sua demanda. Em contraponto, uma pessoa que não se sente doente pode, diante de uma ação preventiva inadequada, passar a considerar-se um indivíduo doente e carregar esta sina ao longo da vida.
Ao praticarmos os princípios da Slow Medicine em todas as atividades de prevenção estamos praticando a P4? Certamente. Seremos críticos de nossa prática e ensinaremos o paciente a ser igualmente crítico. A prática da P4 se define como postura de resistência ética, epistemológica e política à medicina do excesso, medicalizante. Não por acaso a P4 nasce na Atenção Primária à Saúde – APS, onde a longitudinalidade resulta em vínculo, responsabilização e permite a observação mais próxima dos resultados terapêuticos. O profissional que está presente “de janeiro a janeiro” conhece sua comunidade e sabe do que ela precisa para além da agenda midiática do outubro rosa e do novembro azul. Protocolos médicos de especialidades ou instituições têm rebaixado cada vez mais os limiares diagnósticos, incluindo mais pessoas em grupos de risco com todas as suas consequências. A prevenção imperiosa invade o conceito do que seja doença, provocando intervenções cada vez mais precoces. Por outro lado, no sistema público temos milhões de pacientes sem acesso a uma atenção primária eficaz e resolutiva. Quando há sobrediagnóstico em parte do sistema, há subdiagnóstico em outra parte, pelo alocação inapropriada e injusta de recursos. Pouco se fala atualmente dos determinantes sociais, econômicos e políticos da saúde, pois o indivíduo passou a ser o foco. Ainda que a pandemia de Covid 19 tenha deixado suas lições, pouco aprendemos sobre quando ampliar ou diminuir o foco do nosso olhar sobre agravos em saúde.
Avançamos no tempo e estamos diante de um conceito proposto pela comunidade médica de Portugal em 2014 : prevenção quinquenária, com foco na figura do médico. O conceito ganhou importância a partir da pandemia de Covid, onde o estado mental descrito como Burnout se tornou muito evidente: médicos adoeceram, perderam a vida, submetidos a rotinas exaustivas e e uma enorme pressão cotidiana. Diferencia-se da prevenção quaternária por focar o universo biopsicossocial do médico, sua carga e ambiente de trabalho, prevenindo assim erros involuntários. Muitas vezes esses erros são compreendidos e justificados, mas pouco se atua na sua prevenção. O médico passa a ser reconhecido como um ser humano com história pessoal, afetos e limitações. Trata-se de um conceito proposto, em curso, que irá envolver obrigatoriamente a gestão em saúde, além de fatores ligados ao médico, ao paciente e aos serviços de saúde. Será também um desafio para a classe médica, historicamente habituada a muitos vínculos de trabalho e jornadas exaustivas, como se fosse algo natural em sua profissão. Medidas quanto a essa prevenção passam por uma reflexão das relações do médico com o seu trabalho, com os seus pares, com os pacientes, com a comunidade e acima de tudo consigo mesmo. Há frequentes abusos relacionais em todos esses níveis.
Por fim, encontramos extensos e fortes laços de sintonia entre a filosofia e os princípios da Slow Medicine e os conceitos todos de prevenção, em especial da Prevenção Quaternária, quando praticados com serenidade, parcimônia, seriedade, presença, respeito a ética do cuidado em saúde e da vida, contemplando suas incertezas e imprevistos. A pressa é a antítese da atenção e do aprofundamento. O olhar apressado desestabiliza a presença e impede o encontro. Na dúvida, tomemos tempo para refletir, observar, compartilhar e então decidir. Esta é a melhor das prevenções.
“Viveremos melhor, mais serenos e mais felizes em um contexto menos intoxicado, mais consciente dos limites da ciência, e aceitando conviver com a imponderabilidade do futuro”.
Marco Bobbio
Carla Rosane Ouriques Couto é médica de Família e Comunidade. Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de UBSs, Educação Médica e Terapia Familiar. Mestre em Psicologia Social. Colaboradora do Movimento Slow Medicine. Sanitarista e aprendiz por natureza. Feliz por tem participado da evolução do SUS brasileiro: o tempo por vezes parece demasiado longo diante de nossas utopias, porém o reconhecimento das incertezas sempre resultou em avanço.
Bibliografia consultada: