Por Vera Bifulco:
“Não existem doenças, existem doentes”
Todo diagnóstico de câncer é sempre acompanhado de uma carga emocional muito grande e de fantasias decorrentes dos medos do portador e da família, quer seja em relação ao tratamento propriamente dito, quer seja à sua evolução.¹
É preciso tomar muito cuidado com as imagens mentais que pacientes criam a partir das informações distorcidas que já escutaram a respeito do câncer ou do que interiorizaram como estigma desta doença a partir do que é repassado pela sociedade. O câncer aparece associado ao “ulcus rodens” (úlcera que corrói) ou ao caranguejo devastador que destrói tudo por onde passa. É esta ainda a ideia que impera no julgamento feito pela maioria das pessoas e é com esse paradigma mental que o paciente e sua família chegam aos consultórios oncológicos. Lidar com as fantasias mentais dos pacientes é imprescindível quando almejamos alcançar um cuidado integral. Por outro lado não existe real sem a fantasia, ou seja, a fantasia faz parte do real.
A explicação fantasiosa que originalmente se fazia pelos antigos médicos gregos era apoiada pela observação comum das maneiras como uma formação maligna tantas vezes se mostrava e perseguia com inexorável determinação suas vítimas com o propósito de destruir-lhes a vida. Desse modo, a observação comum de que todos os pacientes de câncer ficavam realmente com melancolia era por uma razão óbvia.
Essas características dão ao câncer um enorme significado, pois ele passa a simbolizar a tênue ligação do doente com a vida, bem como a frágil realidade do controle sobre ela. O diagnóstico de uma doença estigmatizante como o câncer pode trazer à tona para o paciente sua fragilidade como ser humano e a consciência de sua finitude. Talvez pela primeira vez na vida, o portador de um diagnóstico de câncer pense em sua condição de ser mortal. A doença se configura como uma morte simbólica, um lado sadio do paciente que já não existe mais e que vai necessitar de uma reorganização física, emocional e social para dar vazão a uma nova etapa da vida, onde tratamentos e incertezas serão vivenciados.
Através dos tempos e subjulgada a este conceito, a humanidade sofreu cruelmente durante milênios até se chegar a triunfos da medicina capazes de prevenir, diagnosticar e tratar a maioria das doenças. O estigma do câncer, porém, ainda desperta ansiedades no doente, que estão relacionadas diretamente à morte e ao sofrimento, tanto físico quanto emocional.
O tratamento do paciente oncológico se inicia nas campanhas de prevenção, passa pela sensibilidade de lidar com o momento do diagnóstico e o tratamento visando à cura, e pode chegar aos cuidados no fim da vida. Esse percurso aponta para uma medicina de verdades passageiras, em que a realidade científica mesmo diante dos avanços tecnológicos, talvez não cumpra suas promessas. Por outro lado é possível dizer que a ciência avança mais rápido do que as reflexões sobre os seus efeitos e a singularidade de cada caso necessita que se concilie uma medicina de evidências com uma medicina de vivências, sem deixar de lado a sensibilidade de tratar à temática câncer levando em consideração a integralidade do cuidar do paciente oncológico, assim como sua família e equipe de saúde que o assiste. São ações que visam resgatar a humanização nas áreas da saúde, como a relação médico paciente e de outras especialidades também, o valor do tempo numa escuta mais refinada, a individualização do atendimento, a autonomia e o auto-cuidado, o conceito positivo de saúde, a qualidade de vida durante todas as fases do tratamento, uma medicina integrativa que contemple o equilíbrio e a harmonia das ações, a segurança do paciente sempre em primeiro lugar, ter paixão e compaixão e o uso parcimonioso da tecnologia, ou seja, é possível aplicar todos os princípios que regem a filosofia Slow Medicine. O diagnóstico de câncer é recebido e sentido, mormente, por toda a família, que possui nesse contexto duplo papel, cuidadora e merecedora de cuidados. O paciente com câncer e sua família estão ligados a um sistema emocional único e recíproco, onde sentimentos e emoções mostram-se inter-relacionadas. A equipe de saúde que assiste o paciente não fica fora da necessidade de cuidados principalmente quando existe um mau prognóstico e não pode ir além do que a ciência tem a oferecer em termos de cura e isso pode frustrar o profissional médico tanto quanto toda a equipe.
O MODELO DA PSICO-ONCOLOGIA
“Não tem receita
Tem você, com todo seu conhecimento(..).
É uma grande viagem! Aquilo que cada um vive, é dele, é especial”.
GUIMARÃES ROSA
Cada caso é um caso, único, ímpar. Precisamos singularizar o cuidado ao paciente, 2º princípio do Slow Medicine. Para além da doença cuidar do sofrimento humano.
Na ótica fenomenológica, chegar à essência de um fenômeno não é algo total e acabado, pois os fenômenos não se esgotam em uma perspectiva, mas se modificam a cada olhar.
A Psico-oncologia, área de interface entre a psicologia e a oncologia, vem atender a ampla gama de aspectos psicossociais que envolvem o paciente com câncer, sua família e todos os profissionais que atuam em seu tratamento. Sua abrangência vai desde a pesquisa ao estudo de variáveis psicológicas e sociais relevantes para a compreensão da incidência, da recuperação e do tempo de sobrevida após o diagnóstico do câncer.
Neste cenário, a psico-oncologia surge com o objetivo maior de oferecer ao doente, sua família e a toda a equipe de saúde que o assiste apoio emocional que lhes permita enfrentar a doença melhorando a qualidade de vida em todos os estágios, desde a prevenção, o diagnóstico, o tratamento até a cura e/ou os cuidados paliativos.
Do ponto de vista psicológico, o doente e sua enfermidade se confundem, pois toda doença é sentida como uma ameaça de morte, um lado sadio do indivíduo que ele imagina estar perdendo, e viver as limitações impostas por uma doença pode gerar alteração de sua imagem interior e exterior, que foi construída no decorrer de sua existência.
Uma doença que traz consigo o discutível estigma da morte incorporado à nossa cultura traduz-se necessariamente numa relação médico-paciente e equipe de saúde com características diferentes de situações menos contundentes. Atualmente o câncer não é mais uma sentença de morte como pode parecer aos menos desavisados. Existe uma parcela de indivíduos com câncer que pode se curar graças à evolução técnica-científica, mas quando esse diagnóstico chega ao indivíduo, à primeira reação costuma ser o medo, medo de que seu caso possa não estar dentro das estatísticas de cura ou mesmo que seu câncer vá trazer consigo muito sofrimento, dor, mutilação e limitações. A presença de uma equipe compassiva e com competência técnica pra lidar com as várias fases do tratamento se faz fundamental para cuidarmos de todos os aspectos que norteiam o paciente com câncer e seu entorno, aspectos de ordem física, mas também mental, espiritual, social e cultural.
A atuação da psico-oncologia feita desde o impacto de uma doença grave pode ajudar e muito no fortalecimento do estado emocional proporcionando ao paciente e família maior adesão ao tratamento e uma melhor resposta física, bem como mais equilíbrio, entendimento e, em consequência, uma melhor dinâmica familiar. O psicooncologista pode vir a ser, dentro da equipe multiprofissional o protagonista na transformação da realidade sentida pelo paciente.
As Intervenções Psicoterápicas dentro do modelo da Psico-oncologia tem confluente com a filosofia Slow Medicine utilizando métodos psicodinâmicos para compreender e cuidar de reações emocionais:
Foucault escreveu: “O mundo é um vasto texto”. A medicina narrativa oferece uma espécie de família de narrativas geradas pela doença, como, a doença no corpo, a autobiografia do paciente, o relato entendido pelo médico e o curso da doença. O câncer para o médico é diferente do câncer sentido pelo paciente. Um retrato desta realidade nos serviços de saúde, principalmente os públicos, está no filme Lição de Vida, onde fica evidente, na sua maioria, o contato imparcial dos profissionais para com os pacientes, principalmente profissionais médicos. O filme transcorre num hospital britânico, onde uma professora com um tumor avançado de útero e com chances remotas de cura é submetida a árduos processos de tratamento e longos períodos de sofrimento, principalmente do maior deles, a solidão. Numa das cenas mais significativas da inter-relação médico-paciente, a professora questiona o médico do porque câncer? Porque não outro evento? Este tomado de todo o entusiasmo que o levou a optar por estudar o câncer, se inflama nas conjecturas todas que envolvem o câncer como um grande fenômeno científico a ser pesquisado. Fica claro que o encontro entre médico e paciente não pode se reger apenas por elementos objetivos e racionais. Uma coisa é falar sobre câncer como um estudo científico, outra coisa é estar do outro lado da questão e se sentir “tomado” pelo câncer. O câncer vivido pelo paciente é diferente do câncer estudado pelo médico.
O cuidar como processo dinâmico
O processo de cuidar não deve se pautar somente na identificação de sinais e sintomas clínicos da doença, mas nas modificações que ocorrem na estrutura dos seres humanos as quais se abalam a sua totalidade frente a uma doença, principalmente quando se trata de doença estigmatizante como o câncer. Estamos frente a um grande desafio, num momento de alta tecnologia disponível, cuidar do ser humano na sua totalidade, exercendo uma ação preferencial em relação a sua dor e seu sofrimento, nas dimensões física, psíquica, social e espiritual, com competência técnico-científica, mas, sobretudo humana, é a singularizarão do cuidado, justo e apropriado a cada doente, o paciente deve ser o foco da atenção e seu ponto de vista assim como seus valores levados em consideração nas tomadas de decisão. A ênfase do trabalho multiprofissional em oncologia (mas não somente nela) deve ser dirigida ao conforto, à dignidade e ao autorrespeito do paciente, bem como ao respeito sobre o direito de receber explicações sobre sua doença, para que ele possa participar ativamente das condutas preconizadas e decisões conscientes no que concerne aos seus tratamentos, em suma, a equipe deve promover a vida por meio de uma assistência integral.
Usando uma frase de Botega: “O encontro entre médico e paciente não se rege apenas por elementos objetivos e racionais”, pelo simples fato que somos seres humanos cuidando de outros seres humanos, com toda a complexidade existente na natureza humana, principalmente fragilizada quando enfrentando uma condição adversa como uma doença, um câncer. Acredito que todos os princípios resgatados pela medicina sem pressa podem e devem ser aplicados nas situações onde o cuidar do paciente oncológico se faz realidade.
Vera Anita Bifulco
Psicooncologista do IPC
¹ Câncer Uma Visão Multiprofissional, Editora Manole, 2013, Bifulco, V.A., Fernandes, H.J.
Querida Vera, adorei seu texto! Muito bem escrito,bastante claro e chamando a atenção para questões fundamentais na atualidade”fast food”. Dentre elas destacaria o uso da tecnologia com bom senso, à serviço da dignidade e qualidade de vida do paciente, principalmente nos grandes centros, a fundamental importância da relação médico-paciente, ou melhor, equipe cuidadora e paciente, num momento tão delicado, em que o outro torna-se vulnerável. Além disso, os demais princípios da Slow Medicine como integrantes da boa prática da psicooncologia. Parabéns! Já compartilhado! bj gde
Obrigada Ana, sua opinião é muito cara para mim, sou sua admiradora como profissional e ser humano da mais alta qualidade. Na minha prática clínica vejo o quanto poderíamos conciliar mais os princípios da Slow Medicine, que sintetizo como a pratica da medicina em sua essência. Pacientes, cuidadores e equipe de saúde se beneficiariam sobremaneira com sua aplicabilidade. Vejo a Slow Medicine como uma filosofia norteadora de nossas vidas, seja pessoal como profissional, não dá para desvincular. Lembro saudosamente de uma frase de Rubem Alves que escreveu: quando se confia o medo desaparece, é dessa confiança que estamos ávidos, em todos os segmentos da vida.
Beijo grande!
Belo e sensível artigo sobre o câncer. Chamou minha atenção a sintonia da escolha da pintura para ilustrar o texto! Ambos, pintura e artigo falam de imagens mentais, e de ver pelo olhar do outro, assim como vemos o olhar do homem melancólico em um entorno sombrio.
E, dentre as frases do texto, a que me marcou foi….”conciliar uma medicina de evidências com uma medicina de vivências”, desafio para os médicos e cuidadores dos pacientes enfermos. Enfim uma frase que condensa a slow medicine.
Sim, Silvia, concordo com você. Houve uma belíssima sintonia na escolha da pintura que ilustrou o texto. Esta obra de Edvard Munch “Melankoli”, Melancolia datada de 1981, deu início a um ciclo de trabalho de pinturas do autor que ele chamou de “O Friso da Vida”, temas sobre o amor, a vida e a morte. Melancolia ou estado de tristeza e desencanto são sentimentos normais e esperados quando se recebe um diagnóstico de doença estigmatizante como o câncer. Acolher essa dor e possibilitar um novo significado para esta etapa da vida é tarefa desafiadora mas jamais impossível. Os princípios da Slow Medicine podem e devem ser aplicados gerando destarte uma transformação positiva em todos os envolvidos no ato de cuidar do paciente oncológico, sua família e equipe de saúde além da rede social. Obrigada pelo seu comentário. Grande abraço.
Vera, grata pelo magnífico artigo. Abrangente e sensível, deveria ser lido por todos os pacientes oncológicos e seus familiares. Sua leitura por si só já representa um grande apoio e esclarecimento.