Psiquiatria sem pressa: “Tudo pede salvação”

fevereiro 11, 2023
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Resenha da série, por: Carla Rosane Ouriques Couto

       “Só aquilo que somos realmente tem o poder de nos curar”. (Carl Jung)

     Daniele é um jovem comum na Itália de 1994.Trabalha como vendedor de ar-condicionado. Sai para se divertir com amigos a noite, e as vezes usa substâncias psicoativas (SPAS). Como muitas pessoas, apenas “por lazer”.  Numa manhã de domingo, após uma dessas noites, amanhece contido num hospital psiquiátrico, sem memória do ocorrido. Trazido pela família, foi sedado com dificuldade, e está em internação compulsória por uma semana, para diagnóstico psiquiátrico. Sua mão está ferida, e aos poucos lembra que num surto psicótico, ao chegar em casa, agrediu os pais. 

     A partir daí a narrativa traz a experiência de Daniele, dia a dia. Encontra-se numa enfermaria psiquiátrica, com pacientes de diagnósticos diversos. Mário, o mais velho, é um caso de depressão crônica grave, professor de literatura, internado por longo tempo, após tentar matar a família. Madonitta é um psicótico em permanente delírio religioso, internado por ser incendiário. Gianluca tem Transtorno Bipolar e enfrenta dificuldades com os pais rígidos, por ser homossexual. Alessandro é catatônico, e está alheio da realidade. 

     A enfermaria é um lugar quente. O hospital está sem recursos para comprar ar-condicionado (ironicamente o que Daniele vende). Então são obrigados a manter as janelas abertas. Pela janela aberta, Mário vê um pássaro que mais ninguém vê, e nele coloca sua esperança. O enfermeiro Pino é “duro” no trato e de pronto comunica a Daniele: “se você for louco e cruel, serei pior ainda com você…poderá ser transferido para a ala dos vilões…”

     Daniele encontra ali dois médicos psiquiatras. Um em conflito consigo, incapaz de ouvir e ser empático: Dr. Mancino. Mancino é um solitário de olhar triste, que dorme no trabalho sem estar de plantão. A outra médica é capaz de captar o ser humano oculto pelo diagnóstico: Dra. Cimaroli.  

     A partir dos atendimentos com a médica Cimaroli que o incentiva a escrever poesias, Daniele revê seus traumas, medos e inseguranças. Uma lembrança recorrente é a mãe o esperando na saída da escola. Outra é o uso abusivo de medicações analgésicas desde a infância. Via perigos onde os outros não viam. Tinha dificuldade em aceitar a realidade. Recorda do reencontro com um colega de escola muito inteligente, inválido após um acidente, e de se atormentar perguntando o porquê desses acontecimentos. Esse evento parece ter sido o gatilho de sua descompensação. Lembra das namoradas que o deixaram por ser uma pessoa intensa demais. Sentia que a vida pesava mais para si do que para as pessoas comuns. Buscava sentido e não encontrava. 

     Dotado de rara sensibilidade e de fácil interação, Daniele consegue compreender a dor dos colegas de enfermaria, as dores dos enfermeiros, de uma jovem internada em outra ala, e até dos médicos que o atendem. Aproxima-se de todos. Consegue perceber até Alessandro, através dos relatos do pai que o visita. O discurso recorrente do pai está claramente em busca de um sentido para a situação do jovem, que subitamente entrou em estado de catatonia. Mário torna-se um pai e uma referência. O processo de compreender os acontecimentos que o levaram a internação, não o impede de compreender os demais. Um novo colega, Giorgio, portador de psicose e de aparência intimidadora, é admitido na enfermaria. Passado o medo inicial, todos acolhem Giorgio.

     No correr da semana, todos se aproximam e Daniele se torna um facilitador no grupo. Mário consegue falar da insônia, do pássaro e de sua profunda tristeza por coisas que não consegue esquecer: “estou me afogando em minha própria mente”, “ninguém espera acabar num lugar como esse”. Gianluca consegue falar da família que o rejeita: “podem me rotular para sempre”. Giorgio consegue falar da origem de sua doença, quando não foi levado a se despedir da mãe após sua morte. Nas noites insones, Daniele vai a outra ala do hospital e conversa com enfermeiros e com Nina, a moça por quem se apaixona. Os médicos negam medicação para dormir, por conta de sua dependência. Mancino declara que Daniele é um sujeito institivamente levado ao uso de SPAS. Ele apenas sente que luta contra a melancolia desde a infância. Os colegas são a coisa mais próxima de sua natureza até então. 

     O grupo parece estar sob controle. Uma das enfermeiras pede pizza para todos. Cantam e imaginam performances onde cada um tem seu papel, todos são marinheiros num navio de loucos. Daniele sente que estão no mesmo barco, entre a loucura e algo que não tem nome, expostos aos elementos da vida.

      Em uma cena, Daniele retorna revoltado de uma consulta com o Dr. Mancino, em que este estava distraído e ausente. Seguem os comentários dos colegas de enfermaria: 

– Gianluca: “mas já conheci muitos médicos idiotas. Um se chamava Bonafede. Mas de bom, ele só tinha o sobrenome. Eu era muito nova. Eu só chorava. Pedi ajuda para ele, e ele ficou bravo porque minhas lágrimas mancharam a mesa dele, que era uma herança de família. 

– Giorgio: “tive um que me deu tantos comprimidos que eu podia dormir por uma semana; meu avô me espetava com uma agulha. Eu nem sentia. Quando meu avô estava vivo, ele falava com os médicos. Agora que ele já morreu, eles nem me respondem. Dizem que sou louco. Que se fodam!”

– Mário: “Sabe o que acho? Que estar errado é ponto de partida da ciência. Todas as coisas extraordinárias que o homem fez no passado foram graças às características agora classificadas como patologias. Como a capacidade de ser obcecado por algo, uma ideia, uma obra de arte. Só estou dizendo que eles não querem tratar, querem purificar, normalizar. Em vez de tentar separar a parte criativa da destrutiva da loucura”. 

– Gianluca: “Eu entendo Mário. Desde que nasci sofro com esses dois tipos de loucura”.

     Esse diálogo mostra a distância e as dificuldades de comunicação entre médicos e pacientes, em especial os adoecidos mentalmente. E como muitos se sentem pouco compreendidos em sua integralidade, como diz Mário.

      Chegando ao fim da semana, Madonitta coloca fogo na enfermaria e desestabiliza o serviço. Num momento de distração da enfermagem, Mário pula da janela da enfermaria e é internado com ferimentos graves. Tudo vira caos. Giorgio agride médicos e enfermeiros e é retirado para um manicômio judiciário. Giorgio queria apenas se despedir de Mário, que sempre os confortou. Dr. Mancino se revolta contra a precariedade do hospital, voltando ao problema do ar-condicionado. O grupo de pacientes se une para orar por Mário. Na parede acima de seu leito está a famosa frase de Arthur Rimbaud (1871): “eu é um outro”. Daniele percebe clara sua lição: o “eu” se encontra numa instância múltipla, indefinida, complexa, paradoxal, não unificada. São os vários “eus” tão bem representados pela obra de Fernando Pessoa, que seus colegas de loucura lhe mostraram.  

     Mário não resiste aos ferimentos. A equipe se culpa. A metáfora do ar-condicionado é interessante. O ar, ou a salvação, estão disponíveis nos próprios pacientes. Está sobrando em Daniele, e não se encontra no hospital como um todo. Há pequenos respiros. Um deles é a capacidade de escuta e acolhimento do próprio Daniele para com os demais. Outro respiro é a escuta da Dra Cimaroli e de alguns enfermeiros. A possibilidade de escrita é outro respiro. Quando os corredores de cura são fechados, acontecem tragédias como o suicídio de Mário. Quando se deixa de discutir e expressar luto pela morte de entes queridos, acontecem tragédias como a de Giorgio. Quando a família exclui seus descendentes por diferentes visões da vida e do amor, acontecem tragédias como a de Gianluca. Quando alguém oculta seu sofrimento por longo tempo, acontecem tragédias como a de Alessandro. Quando o mundo carece de espiritualidade ocorrem tragédias como a de Madonitta. Essas situações sem dúvida escapam da abordagem médica tradicional.

     No sonho/visão de Daniele, quando todos são tripulação de um navio, há lugar para todos e sua percepção é a de todos saudáveis e alegres. Um ambiente semelhante não precisa ser ilusão. Basta lembrar as festas organizadas por Nise da Silveira, o contato com os animais dentro do hospital e as belas obras do Museu do Inconsciente1. Nise era uma psiquiatra sem pressa, que se conduzia a partir do potencial de cada paciente.  Dizia que “o que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito.”  Ser rotulado como esquizofrênico não excluía ser um grande artista. As fronteiras entre a razão e a alienação não eram rígidas para ela. A diferença é o ponto da viagem: “o artista e o poeta mergulham no inconsciente e voltam. Já o louco, o doente mental não tem bilhete de volta.” Nise achava os loucos capazes de gentilezas, o que nem sempre é visível nos normais. 

     A semana termina. Gianluca resiste em voltar para casa: “sou como um cachorro, vocês me aceitam como sou”. Daniele ao final da avaliação, é diagnosticado com depressão severa e afirma que essa semana durou uma vida.  A mãe o espera na saída. “É como se eu renascesse todos os dias e tivesse que aceitar a vida como ela é”, afirma ele. As lições que leva são em maioria as que aprendeu com os outros “loucos”, enquanto dividiam as sobremesas com Mário, enquanto Gianluca pintava as unhas de todos, enquanto todos trocavam as roupas de Madonitta. Reconhecer o humano em cada um, promoveu a melhora. Poetas, artistas e loucos têm algo em comum: vêm as coisas como são, e sentem mais profundamente a nostalgia do paraíso. 

     Nise acreditava que “o indivíduo somente se completa quando consegue integrar o inconsciente e o mundo exterior. Nesse processo, as forças do inconsciente são as principais.” Bem, vivemos numa sociedade em que o exterior tem um conteúdo veloz, infinito e invasivo. O mundo interior e o inconsciente estão com pouco espaço de expressão e respiro. Literalmente, desde George Floyd às catástrofes climáticas e migratórias, não estamos conseguindo respirar. O mundo exterior apresentado e alimentado pelas redes virtuais é homogêneo, cheio de padrões estéticos, felicidade eterna e sucesso, como se pudessem ser comprados. Os rostos das pessoas se parecem, em especial das mulheres, mais suscetíveis aos mandatos estéticos. Tentando se encaixar e parecer “igual” cada um perde a chance de se encontrar. 

     Trazendo as lições do cinema para a atenção em saúde mental, temos que raramente um paciente tem o privilégio de ser observado durante uma semana para uma definição diagnóstica. Em nossa realidade, com frequência, após 20 minutos de conversa (nos serviços mais organizados), num ambiente asséptico de consultórios e hospitais, um profissional opta por um ou mais códigos do imenso cardápio do DSM V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Esse rótulo em geral acompanha o futuro dessa pessoa. A demanda médica psiquiátrica é crescente, diminuindo o tempo de atendimento. A oferta de psicoterapia é escassa, bem como de terapias integrativas. A estrutura da rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos do passado, após anos de luta antimanicomial, é ainda insuficiente e com baixa conexão com a Atenção Primária, único nível do SUS capaz de garantir a longitudinalidade dos cuidados. A atenção à dependência química segue como um dos maiores dilemas da saúde pública. Imensa quantidade de pacientes tem o perfil de Daniele: jovens, sensíveis, portadores de um transtorno de base, que em algum momento descobrem alívio e conforto nas SPAS. Após o rótulo de dependentes químicos, tudo o mais submerge, desaparece, e são baixas as possibilidades de um diagnóstico pessoal, familiar e comunitário. Passam a habitar a “zumbilândia”. Uma multidão sem voz, que teima em se reunir após cada dispersão das forças de segurança e “higiene” nas grandes cidades.

     Algumas especialidades necessitam com premência dos princípios universais da Slow Medicine: sobriedade, justiça e respeito. A psiquiatria é uma delas. Talvez a de maior complexidade humana, a exigir muito mais tempo – dimensão mais importante da Slow Medicine – de escuta e compreensão. Embora sigam sendo fabricados velozmente novos antidepressivos, as evidências de que seu uso altera significativamente o curso da vida dos pacientes são escassas2. A teoria da serotonina está sendo amplamente discutida2. No entanto os psicotrópicos ganharam enorme importância no plano de tratamento, numa tentativa de responder rapidamente aos problemas que se somam ao longo da vida, não só pelas vivências individuais e familiares, mas pela pobreza, pela violência urbana e pela exclusão social. 

     As habilidades médicas que denominamos tecnologias leves, abundantes em Daniele, são via de regra as mais difíceis de ensinar aos estudantes de Medicina. Para que se reconheça os diversos “eus” de cada paciente, é necessário que o cuidador aceite e reconheça primeiro os seus vários “eus”. Sabemos que esse reconhecimento é dinâmico e nunca termina. Utilizar o instrumental Slow Medicine, dando tempo a si e ao paciente, exercitando a empatia, compartilhando decisões, lançando mão de diversas terapias integrativas e artísticas3, aguardando um pouco mais para diagnósticos e prescrições pode facilitar o fluxo necessário de emoções, sentimentos e saberes entre quem cuida e quem é cuidado. Essa troca foi belamente demonstrada na narrativa de “Tudo Pede Salvação”. Note-se a fala do Dr. Mancino após o enterro de Mário. Daniele consegue dizer o que ele nunca conseguiu. O paciente ensina ao médico. 

     No enterro de Mário, quase ninguém tem o que dizer. A única voz é a de Daniele:

     “Estou aqui para me despedir de Mário. Era para ter sido apenas um dos cinco loucos com quem dividi a cela por uma semana. Mas se tornou um irmão. As pessoas chamam meus irmãos de loucos, desequilibrados. Eles riem quando choram e riem quando sofrem. Mas acho que a verdadeira loucura é outra coisa. A verdadeira loucura é nunca desistir. Nunca se humilhar. Do alto/do topo do universo/ da cabeça aos pés/passando pelos calcanhares/além da velocidade da luz/através de cada átomo da matéria/tudo pede salvação. Essa era a palavra. Salvação. Para os vivos e para os mortos. Salvação para Mário, Gianluca, Alessandro, Giorgio, Madonitta. Salvação para os mais loucos de todos os tempos. Engolidos pelos hospícios da história. Salvação!!!”

                            “A coisa mais assustadora que existe é aceitar a si mesmo completamente”. (Carl Jung)

Ficha Técnica: “TUDO PEDE SALVAÇÃO” – baseado em “Tutto Chiede Salvezza”, livro de Daniele Mencarelli (2020). Direção: Francisco Bruni. Itália. Série Netflix em 7 capítulos. 2022.

Referências:

  1. Filme: Nise – o coração da loucura. 2015. Brasil. Direção de Roberto Berliner.

2. https://andreislabao.com.br/2022/08/21/ascensao-e-queda-da-serotonina/

[1] https://www.nature.com/articles/s41380-022-01661-0

[2] https://www.karger.com/Article/Fulltext/486696

[3] https://www.bmj.com/content/378/bmj-2021-067606

3.https://andreislabao.com.br/2021/11/20/a-pororoca-dos-cuidados-de-saude/


CARLA ROSANE OURIQUES COUTO. Especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Colaboradora Slow Medicine. Sempre se reconhecendo nos loucos e no cinema. CINEMA & TERAPIA: @carlarosanecouto 

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