Quando menos é… menos mesmo

julho 28, 2021
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Por Ana Lucia Coradazzi

“Menos é mais apenas quando o mais é demais”

Frank Lloyd Wright

Nos últimos anos temos vivido o imenso desafio de reavaliar nossos critérios e posicionamentos no sentido de não exagerar. “Menos é mais” tornou-se uma espécie de mantra, seja na beleza, na arte, no estilo de vida, nos relacionamentos e, claro, na medicina. A própria filosofia da Slow Medicine preconiza a parcimônia nas condutas, lembrando que fazer mais não significa fazer melhor. E, por um desses paradoxos da vida médica, eu cada vez tenho me deparado mais com situações em que fazer menos pode ser fazer menos do que deveria ser feito.

Não que isso seja uma surpresa, porque não é difícil imaginar o quanto é complexo e desafiador prevermos o que pode acontecer com o paciente à nossa frente. Faz parte da “arte” médica lidar com a incerteza e com o desconhecido, como faz parte da nossa rotina prever desfechos com pouca (ou nenhuma) precisão. Erramos para mais, e erramos para menos. A questão é que, nas últimas décadas, vínhamos consistentemente errando para mais, e isso se tornou o padrão Fast Medicine: mais exames do que o necessário, mais medicamentos que o imprescindível, mais procedimentos do que o aceitável. Em resposta aos exageros, começamos a buscar por “menos”, preconizando ferramentas que nos ajudem a frear nossa ânsia de atuar: cuidados paliativos, diretivas antecipadas de vontade, medicina baseada em evidências, e compartilhamento de decisões são bons exemplos de estratégias anti-excesso. E eis que nos vemos, com uma frequência que me parece um tanto assustadora, diante de outro enorme desafio: será que o que estamos fazendo é, além de menos, insuficiente?

Os movimentos por uma medicina mais individualizada e sensata, é claro, são mais que benvindos, e emergiram da necessidade de encontrarmos um caminho do meio. O problema não está no que esses movimentos preconizam, e sim em quem os interpreta. Há alguns anos, era comum que um paciente que chegasse com um câncer metastático muito avançado, já sem nenhuma perspectiva de controle de sua doença, fosse capturado por uma espiral irrefreável de procedimentos com o objetivo de prolongar sua vida a todo custo. Víamos esses pacientes internados em UTIs por semanas, sendo submetidos a diálises, reanimações cardiorrespiratórias, cirurgias, ventilação artificial e inúmeras outras condutas que, na melhor das hipóteses, adiavam um pouco o momento de sua morte, às custas de grande sofrimento (para eles e para as famílias). Aos poucos fomos sentindo um grande desconforto com esse tipo de situação, e o desconforto é o que nos faz procurar outros caminhos. Passamos a aceitar melhor a morte como um processo natural (em especial em doenças crônicas e envelhecimento), aprendemos a importância de priorizar o conforto e respeitar a dignidade das pessoas. Trouxemos esse pensamento mais cauteloso para outras áreas, fora do cenário da terminalidade, e isso é muito bom. Mas, da mesma forma como nos empolgamos demais com as tecnologias e ficamos décadas vivendo uma era de exageros e desproporcionalidades, talvez hoje estejamos vivenciando um momento de encantamento excessivo com o “fazer menos”. Temos visto pacientes oncológicos com intercorrências agudas (infecções, insuficiência renal ou outras) para os quais não são instituídas medidas mais agressivas pelo motivo exclusivo de se tratar de um diagnóstico de câncer. Cabe um aparte: alguns deles nem mesmo têm atividade da neoplasia no momento da intercorrência (!). Pior: em alguns casos, se alguém propuser que uma conduta mais agressiva seja instituída, pode ser “acusado” de estar se iludindo e promovendo distanásia. São, é claro, situações difíceis. É sempre muito complexo avaliar todo o contexto do paciente, seja sua história médica, suas condições sociais, seus valores, suas expectativas. É complexo e dá (muito) trabalho. É preciso tempo para entender onde estamos pisando com clareza. Acostumados que estamos com a pressa das décadas passadas, o que temos feito é apenas mudar o discurso, declarando precipitadamente (e às vezes imprudentemente) que “fazer mais não trará benefício neste caso”. A pressa, como se vê, é a mesma. Só mudamos a direção.

            Antes que alguém me acuse de declarações anti-paliativistas ou pró-distanásicas, cabe esclarecer que sou, eu mesma, paliativista, e venho enfrentando bravamente o desafio de manter a serenidade e a sensatez na prática médica diária. E é justamente desse lugar que eu falo: o lugar de quem se sente muitas vezes tentada a não agir em nome do respeito à dignidade, mas que muitas vezes já presenciou pessoas se recuperando plenamente após serem submetidas a procedimentos/tratamentos que eu teria contra-indicado. Muitas delas só estão por aqui hoje porque alguém decidiu me ignorar. Muitas acabaram falecendo, sim, mas meses ou até anos depois de terem “sobrevivido” a intercorrências que, no meu julgamento, seriam seu desfecho final. Para minha surpresa (e também para hipertrofiar minha humildade), boa parte delas viveu esses dias a mais com uma qualidade de vida que considerava digna e com uma grande gratidão no coração.

            Praticar a medicina em sua forma slow não é necessariamente não agir, não tratar, não interferir. É, acima de tudo, pensar antes de agir, pensar antes de tratar, e pensar antes de interferir. Não há fórmulas mágicas nem caminhos pré-definidos, nem para mais e nem para menos. Em nossa ânsia de nos livrarmos da incerteza, tendemos a encurtar os caminhos e a negligenciar a (imensa) importância de nos permitir raciocinar com calma. Não oferecer as ferramentas de que dispomos hoje para quem precisa delas é tão repulsivo quanto oferecê-las a quem delas não poderá se beneficiar. Fazer menos é ótimo, desde que não seja pouco demais.

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Ana Lucia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. Sou autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, e editora do blog  www.nofinaldocorredor.com, nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos. Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

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