Quem quer viver para sempre?

fevereiro 5, 2025
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Por José Renato Amaral

“A mim só a cruel imortalidade

Consome: murcho lentamente em teus braços,

Aqui no limite quieto do mundo,

Uma sombra grisalha vagando como um sonho…”

(Alfred Tennyson, Tithonus)*

Desde o final de novembro passado, o cearense João Marinho Neto é o homem mais velho do mundo, com 112 anos. Cerca de um mês depois, com o falecimento da japonesa Tomiko Itooka, a gaúcha Inah Canabarro Lucas, 16 dias mais nova que Itooka, tornou-se a mulher mais velha do mundo, com 116 anos. De acordo com o que se lê na imprensa sobre eles, ambos atualmente apresentam dificuldades com a visão e audição, vivem em instituições (João em uma instituição de longa permanência para idosos, Inah em um convento, pois é freira), e atribuem a excepcional longevidade a fatores como bom humor, otimismo e convívio com pessoas boas e amadas. (1)

Ou seja, no momento em que escrevo este texto a mulher e o homem mais velhos do mundo são brasileiros. É até surpreendente a pouca repercussão que esse fato está tendo, sobretudo em um momento em que está tão na moda se falar em longevidade e saúde no envelhecimento.

Blue Zones e o prêmio Ig-Nobel

Uns meses atrás, o assunto esteve em bastante em alta após o demógrafo Saul Newman, da Universidade de Oxford, ser laureado com o Ig-Nobel, prêmio satírico promovido por uma revista de humor científico, por contestar a veracidade da longevidade excepcional em seletos recantos felizes do planeta, as “Blue Zones”. A tese de Newman, em suma, é que os dados sobre a idade das pessoas nesses locais estão superestimados, seja por erro ou por fraude mesmo, visando à obtenção de benefícios previdenciários. O artigo ainda é um “preprint”, ainda não foi publicado, e o autor, ao comentar seus resultados, usa ironia numa dose não habitual para um artigo acadêmico. (2) Por outro lado, se formos pesquisar por “blue zones”, logo seremos direcionados ao site bluezones.com, no qual a extensão do nome de domínio do site adequa-se muito bem, posto que há ali vários produtos à venda. Torna-se então difícil localizar a verdade sobre redutos de longevidade excepcional quando, de um lado, a informação vem carregada com tintas de sensacionalismo e, do outro, com interesses claramente comerciais.(3)

De acordo com o relatório Expectativa de vida e carga de doença nas pessoas idosas da Região das Américas, elaborado pela OMS em 2023, após os 60 anos, as mulheres têm uma expectativa de vida de mais 23,51 anos, 26% deles com incapacidade e os homens, mais 20,1 anos, 24% deles com incapacidade.

Extremos etários e incapacidade

Em dezembro de 2024, enquanto o Brasil se firmava como a pátria dos exemplares mais longevos da humanidade, saiu um artigo interessante no JAMA, justamente sobre a disparidade entre o aumento global da longevidade e o aumento da longevidade saudável. Os dados são os seguintes: nas últimas duas décadas, a expectativa de vida global aumentou em 6,5 anos, e a expectativa de vida saudável aumentou apenas 5,4 anos. O intervalo entre a expectativa de vida livre de doenças ou incapacidades aumentou, nas últimas décadas, de 8,5 anos para 9,6 anos (13%). A meu ver, podemos sim comemorar o ganho na longevidade, mas não sem alguma reflexão. (5)

Outro artigo interessante e recente sobre o assunto saiu em outubro de 2024, sobre a implausibilidade de uma extensão radical da expectativa máxima de vida neste século. Os autores pontuam que desde a década de 1990 o aumento na expectativa de vida vem desacelerando, e que a sobrevida acima dos 100 anos segue improvável para mais que 15% das mulheres e para mais que 5% dos homens. A conclusão subjacente à análise dos dados é que superamos a mortalidade neonatal, a mortalidade materna, por doenças infectocontagiosas e, finalmente, temos tido avanços no controle de doenças crônicas não-transmissíveis, mas, por ora, não se consegue ir muito além disso: para haver ganhos adicionais na expectativa de vida, precisaríamos ter controle agora não apenas sobre as doenças, mas também sobre o próprio processo de envelhecimento. (6) E aí chegamos a esse “probleminha” que os antigos gregos, que nem tinham muito controle sobre mortalidade materno-infantil, infecções, etc. já haviam colocado sob a forma do mito de Titono.

O mito de Títono

Titono era um belo jovem, por quem a deusa Eos, irmã do Sol e da Lua, e que corresponde à Aurora dos romanos, se apaixonou. O amor da deusa pelo jovem era tão grande que ela não o queria perder jamais, pelo que pediu a seu pai, Zeus, que lhe concedesse a imortalidade, no que foi atendida. Contudo, a imortalidade não veio acompanhada da eterna juventude, outro apanágio dos deuses, e as Horas seguiram fazendo seu trabalho, de modo que Titono seguiu envelhecendo e definhando até se transformar numa cigarra. A conclusão é evidente: a imortalidade, sem a vitalidade, é mais um castigo que um prêmio. Pouco antes de ser diagnosticado com a doença que o levaria à morte, Freddie Mercury (que pouco viveu) já perguntava, com sua voz inigualável: quem queria viver para sempre?

Como sou geriatra, de vez em quando alguém me pergunta o que eu sei sobre limites da longevidade ou sobre essas pessoas e estudos que se ocupam da imortalidade como uma proposta viável para humanidade, e tenho que exprimir meu ceticismo sobre o assunto sem perder a urbanidade. Afinal, os dados que discuti acima mostram que a longevidade que estamos alcançando parece-se mais com a sina de Titono que com a vida no Olimpo, morada dos deuses.

Geriatras também envelhecem

Como tenho um estilo de vida relativamente saudável, com alguma frequência alguém tece algum elogio a esse respeito e comenta algo como “você vai passar dos 100” ou “está se cuidando para viver bastante”; aí tenho que explicar que faço tudo o que faço muito mais preocupado com minha qualidade de vida presente e futura que com minha quantidade de vida futura, e que viver muito além do habitual, pessoalmente, não me parece uma perspectiva muito auspiciosa. Ou seja, é difícil ser geriatra, realista, ter um estilo de vida saudável e ser simpático com as pessoas ao mesmo tempo.

Eu me lembro que minha avó, ainda quando saudável e independente, falava que não queria passar dos oitenta anos, pois achava “muita idade”. Assim como Zeus atendeu Eos, os céus a atenderam, e ela faleceu aos 79 anos, deixando em mim saudades, aprendizado e atiçando o meu gosto em conversar com os mais velhos. À época eu era garoto, não entendia muito bem o motivo de ela não querer viver além de determinada idade; agora acho que entendo perfeitamente, até porque, trinta anos atrás, viver bem após os oitenta anos era menos comum que hoje em dia. Mas ainda muita coisa da vida dos muito velhos me permanece distante e difícil de imaginar. Eu não sei, por exemplo, como é viver cercado apenas por gente mais nova que eu. Eu não sei como é estar muito melhor que meus amigos. Eu não sei como é não conseguir ouvir ou enxergar ou andar e achar que está tudo bem, ou não, e seguir vivendo. Eu não sei como é experimentar um certo cansaço existencial, uma certa indiferença ao mundo que vejo em alguns pacientes muito idosos que, de resto, nem parecem ter nenhum outro grande problema; eu só sei que isso não é depressão. Eu sei que a longevidade, um assunto tão atual e urgente, não deve ser mistificada, nem servida à sociedade com sensacionalismo ou como item de consumo, mas deve ser tratada de forma sóbria, justa e respeitosa.

José Renato Amaral é médico (clínico e geriatra) e professor.

*tradução do autor

1 – https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sul/rs/freira-brasileira-se-torna-a-mulher-mais-velha-do-mundo-com-116-anos/

2 –  Saul Justin Newman: Supercentenarian and remarkable age records exhibit patterns indicative of clerical errors and pension fraud https://www.biorxiv.org/content/10.1101/704080v3.full

3 – https://www.bluezones.com/

4 – https://www.paho.org/pt/documentos/expectativa-vida-e-carga-doenca-nas-pessoas-idosas-da-regiao-das-americas

5 – Garmany A, Terzic A. Global Healthspan-Lifespan Gaps Among 183 World Health Organization Member States. JAMA Netw Open. 2024;7(12):e2450241. doi:10.1001/jamanetworkopen.2024.50241

6 – Olshansky, S.J., Willcox, B.J., Demetrius, L. et al. Implausibility of radical life extension in humans in the twenty-first century. Nat Aging 4, 1635–1642 (2024). https://doi.org/10.1038/s43587-024-00702-3

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Andresa Lima
Andresa Lima
1 hora atrás

Sensacional!

Mayara Vieira
Mayara Vieira
1 minuto atrás

Linda reflexão!

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