Rastreamento do câncer de mama: uma decisão a ser compartilhada

setembro 17, 2018
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Por Ana Lúcia Coradazzi:

“Crer na fatalidade, é criá-la em nós mesmos.”

George Sand

               Em geral começa assim: a paciente, na faixa dos 40 anos de idade, agenda uma consulta de rotina com seu ginecologista porque já está na época de começar a fazer mamografias anuais. O ginecologista, prestativo, concorda com ela, pois com câncer não se brinca. Ele pede o exame e, alguns dias depois, a paciente deixa o laudo da mamografia no consultório para que seu médico dê uma olhada. Mais alguns dias e a paciente recebe um telefonema da secretária do médico, dizendo que está tudo bem, que o exame deu “apenas um BIRADS 2”. Tranquila e feliz por ter feito seu papel na prevenção do câncer de mama, essa paciente retorna somente um ano depois, para nova mamografia. A história se repete por anos a fio. Às vezes, algum nódulo (benigno) é detectado à mamografia e prontamente retirado, “para evitar dúvidas ou problemas futuros”, resultando em cicatrizes, estresse e possíveis complicações do procedimento. Outras vezes, o tal nódulo retirado revela-se um carcinoma in situ, que possivelmente não causaria dano à paciente no caso de não ser detectado, mas que acaba levando o médico a operar a paciente e até mesmo submetê-la a radioterapia. Ou pode ser ainda que, poucos meses após a mamografia “BIRADS 2”, a paciente perceba um nódulo esquisito na mama, que não será investigado porque a mamografia (recente) era normal. E o diagnóstico de câncer acaba sendo retardado em meses… Em todas as situações, a mamografia não cumpriu seu papel de proteger a mulher. Nas duas primeiras, levou a sequelas desnecessárias para uma alteração que jamais lhe causaria dano. Na última, postergou o diagnóstico de uma doença grave que poderia levá-la à morte.

                Histórias assim são rotineiras nos consultórios de mastologistas e oncologistas, em geral contadas pelas pacientes com grande pesar… A questão é: onde estamos errando em relação à detecção precoce do câncer de mama? Por que ainda submetemos grande número de pacientes a exames que resultarão em “overdiagnosis” e “overtreatment”, sem que haja evidências de benefício real para elas? Pior: por que nossas estratégias de rastreamento do câncer se mostram ineficazes em um número considerável de casos? A resposta não é simples, mas o caminho para ela é claro: precisamos ajustar as estratégias de detecção precoce e identificar quem são as mulheres que realmente se beneficiam delas (ou seja, aquelas cuja morte por câncer poderá ser evitada através dessa estratégia).

            Na última década, buscando evitar os potenciais danos causados pelas mamografias rotineiras, a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) revisou a recomendação de exames anuais, propondo mamografias a cada 2 anos para mulheres entre 50 e 74 anos, e discussões individualizadas sobre o risco e o benefício do rastreamento para mulheres de 40 a 49 anos. Em 2015, a recomendação de reduzir o número de mamografias foi corroborada pela American Cancer Society. Apesar disso, na prática nada mudou. Isso se deve principalmente aos estudos de algumas décadas atrás, evidenciando uma redução em torno de 19% no número de mortes por câncer de mama através dos programas de rastreamento. Essa redução pode variar conforme a idade (8% em mulheres entre 39 e 49 anos e 33% naquelas entre 60 e 69 anos) [1]. A principal questão é que a análise isolada desses números não leva em conta os riscos do rastreamento, em especial o número de resultados falsos positivos, biopsias desnecessárias e “overdiagnosis” (quando detectamos ao rastreamento um câncer que não se tornaria clinicamente significativo se não tivesse sido diagnosticado, ou seja, jamais traria qualquer dano à mulher). Diante de um exame positivo, a conduta médica é sempre muito objetiva: tratar. Nem nós, médicos, e nem nossas pacientes costumamos pensar na possibilidade de estarmos sendo agressivos com uma alteração que causaria menos danos que seu tratamento.

            Também não costumamos pensar que o número de mortes por câncer de mama que pode ser evitado através do rastreamento é, na realidade, baixo. Estima-se que, para cada 10.000 mulheres submetidas a mamografias periódicas, evitaremos a morte de apenas 3 entre 40 e 49 anos e 10 entre 50 e 59 anos. A questão aqui não é a discussão sobre se o rastreamento pode ou não auxiliar na redução da mortalidade pelo câncer. Sabemos que ele pode. Mas erramos ao não colocar seus riscos na balança, e erramos ainda mais em não discutir esses riscos com nossas pacientes. O que é considerado benefício por uma pode não ser para outra. O mesmo vale para os malefícios.

            Infelizmente, ainda não dispomos de uma estratégia ideal de rastreamento que identifique com acurácia as pacientes que realmente têm alto risco de desenvolver câncer de mama. Para essas, provavelmente os benefícios do rastreamento superam (com folga) os danos potencialmente associados a ele. Recentemente foi publicado um grande estudo no Reino Unido avaliando custo-efetividade do rastreamento considerando a estratificação de risco através do perfil genético das mulheres [2]. A conclusão do estudo mostrou que, nas mulheres consideradas de baixo risco pelo perfil genômico, a não realização do rastreamento foi custo-efetiva, reduziu o risco de “overdiagnosis” e não comprometeu os benefícios do programa de rastreamento. Esses resultados são animadores, mostrando que podemos, sim, ser mais inteligentes na indicação dos exames, mas obviamente o viés financeiro e logístico é uma grande barreira: a realização de testes de perfil genômico rotineiros não é uma realidade na maioria dos países.

            O que temos à nossa disposição são as decisões compartilhadas entre médicos e pacientes, cuja estratégia para rastrear (ou não) o câncer são baseadas em fatores de risco individuais da paciente, bem como em suas preferências e valores. Decisões compartilhadas são, é claro, mais trabalhosas que solicitar uma mamografia anual a partir dos 40 anos. Elas exigem tempo (do médico e da paciente) e acesso fácil aos dados referentes aos potenciais riscos e benefícios de cada estratégia. Embora já existam ferramentas que as próprias pacientes podem utilizar para ajudá-las a tomar essas decisões, suas conversas com o médico permanecem como a pedra angular do processo. No Brasil, onde temos uma ansiedade “cultural” a respeito do câncer, e onde muitas vezes precisamos nos basear em dados estatísticos referentes a populações americanas ou europeias (as quais possivelmente são diferentes da população brasileira), esse processo decisório pode ser ainda mais difícil. Mas o fato do compartilhamento de decisões ser difícil não o torna inviável, e muito menos nos autoriza a baní-lo da nossa prática médica. Uma estratégia é trabalharmos balizados pelos princípios da Slow Medicine, em particular no que se refere ao compartilhamento das decisões. Incluir as pacientes no processo, desde a decisão sobre quando (e se) iniciar os exames de rastreamento, qual a frequência de realização deles e o que fazer no caso de um resultado alterado é uma prática que deve ser considerada padrão-ouro em termos de conduta médica, e portanto deve ser (no mínimo) almejada, seja ela trabalhosa ou não. Prevenir, obviamente, é melhor que remediar, mas ninguém disse que é mais fácil.  

1.         Keating, N. and L. Pace, Breast cancer screening in 2018: time for shared decision making.JAMA, 2018. 319(17): p. 1814-1815.

2.         Pashayan, N., et al., Cost-effectiveness and benefit-to-harm ratio of risk-stratified screening for breast cancer: a life-table model, in JAMA Oncology. 2018.

___________________

Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.

 

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