Reflexões sobre Slow Nursing – a Enfermagem sem Pressa

fevereiro 5, 2018
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Por Maria Júlia Paes da Silva:

Alguns estudiosos derivam a palavra “cuidado” do latim cura. Na sua forma mais antiga, cura em latim era usada num contexto de relações de amor e amizade. Era expressão de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estima (Fernandes, Silva; 2006).

Outros estudiosos derivam “cuidado” de cogitare – cogitatus, cujo sentido é o mesmo que cura: cogitar, colocar atenção, mostrar interesse e preocupação. Cuidado significando solicitude, zelo, atenção, bom trato (Pessini; 2004).

Parece que consciente ou subconscientemente, sempre foi claro que “curar” nem sempre é possível, mas cuidar, sim. Cuidar, mais do que um ato isolado, é uma atitude constante de ocupação, preocupação, de responsabilização e de afetamento com o semelhante.

A Enfermagem moderna, reconhecida profissionalmente, vem dessa compreensão: é necessário, nos momentos em que as pessoas não estão firmes, que estão fragilizadas, que outra(s)  vele(m) por ela, se ocupe dela, se responsabilize por manter ou auxiliá-la a manter suas necessidades básicas atendidas; é preciso de Enfermagem.

Nos momentos em que as pessoas não estão firmes, podem contar com outras que, partilhando os fatos diários e corriqueiros, as ajudam a passar por essa fase da melhor maneira possível, observando o outro como ele se mostra, nos seus gestos e falas, em sua dor e limitação. Atenta a tudo isso, a Enfermagem pode estabelecer um plano de cuidados que é um conjunto dinâmico de fatos, ideias e ações. Entendendo-se por fatos o que é observado e analisado no outro; ideias, os recursos do nosso conhecimento e da nossa criatividade; e ações, como a intervenção conjunta que desencadeia transformação (Fernandes, Silva; 2006; Silva, Gimenes; 2000).

A Enfermagem, enquanto profissão, vem resgatando, assim como outras profissões, valores que fundamentam sua própria essência: promover a saúde – não apenas eliminar a doença; perceber o paciente como parceiro nessa jornada – não como alguém dependente e afônico; utilizar estratégias e métodos mais holísticos no cuidar, não apenas focado na dimensão física do desequilíbrio (Salles, Silva; 2011).

Os princípios da Slow Medicine, parecem caminhar junto com a Enfermagem nessa compreensão do cuidar/tratar da saúde humana.

Ao ouvir, aprendemos, ampliamos nosso mundo; ao respeitar os valores próprios de cada indivíduo cuidado, crescemos na compaixão; ao respeitar a autonomia do outro, agregamos e acolhemos; ao focar na saúde e na qualidade de vida, não na doença, preservamos nossa esperança e fé, mantendo a ligação com a força vital; ao focar na prevenção, na atenção à alimentação saudável, atividade física regular, pensamento positivo e flexibilidade mental, nos ligamos à vida; ao perceber que mais tempo de vida não significa, necessariamente, mais qualidade de vida, alegria e bem-estar, reconhecemos a finitude física do ser humano e a respeitamos qualificando o próprio viver, assim como reconhecemos ser necessário o uso da tecnologia com bastante parcimônia; ao buscar cuidar de todas as dimensões do ser humano (físico, mental, emocional e espiritual), agregamos diferentes práticas integrativas de saúde; ao colocar a segurança do paciente em primeiro lugar, desenvolvemos nossa atenção e intenção; ao desenvolver nossa compaixão…. aprendemos o verdadeiro sentido do amor e do servir.

Florence Nightingale, no seu clássico “Notas sobre Enfermagem: o que é e o que não é”, já esclarecia:

“utilizo a palavra Enfermagem por falta de outra melhor. Tem-se limitado a significar pouco mais do que administração de medicação e aplicação de cataplasma. Deveria significar a utilização correta de ar puro, iluminação, aquecimento, limpeza, silêncio e a seleção adequada tanto de dieta como da forma de administrar – tudo com o mínimo de dispêndio de energia vital do doente” (Nightingale; 2005, p.21-22).

Florence Nightingale

Jean Watson (*1940 – ), outra teórica da Enfermagem, ex-reitora da School of Nursing na University of Colorado, fundadora do Center for Human Caring at the Healther Sciences Center, em Denver (EUA), afirma que, muitas vezes, nos referimos ao cuidar como se cuidar de alguém fosse uma questão de boas intenções ou atenção calorosa. Lembra que para cuidar adequadamente de alguém, temos que saber, por exemplo, quem é o outro (que necessita de cuidados), quais são os seus poderes e limitações, quais as suas necessidades e o que é que contribui para o seu crescimento. Temos que saber responder às suas necessidades reais e quais são os seus apoios e rede de ajuda (Watson; 2009).

A produção de artigos com a terminologia Slow Nursing, ainda é pouca, mas parecem estar totalmente de acordo com os princípios nightingerianos e da Enfermagem atual. Lillekroken (2014) aborda o movimento Slow Medicine e Slow Nursing de maneira positiva por entender que há, justamente, o resgate de forma clara e atual dos princípios, muitas vezes perdidos ou esquecidos, da Enfermagem profissional, na sua própria essência.

Kerrigan (2017), em artigo recente sobre as barreiras para um adequado cuidado gerontológico, discute um dos princípios da Slow Medicine, tempo para ouvir/tempo para entender, afirmando ser essa a base para que o outro cresça em seu próprio ritmo e na sua própria maneira de ser.

Nessa mesma linha de gerontologia, pesquisa feita junto a enfermeiras que trabalham com pacientes em processo demencial identificou três temas básicos na fala dessas enfermeiras (estar no momento presente; fazendo cada coisa no seu tempo; criando brincadeiras e contentamento) que reforçam os princípios 1º (tempo de ouvir/entender) e 2º (individualização/valorização dos valores de cada um) do movimento Slow Medicine (Lillekroken et al; 2017).

O conceito positivo de saúde (colocarmos o foco na saúde, na prevenção de doenças e na manutenção da qualidade de vida) e as implicações de trabalharmos com a prevenção na saúde (alimentação saudável, atividade física regular, pensamento positivo e flexibilidade mental), são dois dos princípios da Slow Nursing, ressaltados no trabalho com a comunidade e atenção primária de saúde, desenvolvidos por Bachmann (2011). Ela também afirma que o tempo de falar e o tempo de ouvir são fundamentais na construção de um verdadeiro trabalho comunitário.

Outro aspecto já lembrado por enfermeiros, parte desse movimento Slow Nursing, é que os currículos sendo voltados para questões técnicas ou para a valorização da tecnologia, podem afastar o aluno do que é cuidar de um ser humano, em toda a sua grandeza e diversidade. Sellman (2014) afirma ser “o triunfo da racionalidade técnica”.

É claro que o desenvolvimento das técnicas pressupõe a existência de ações de cuidado, no entanto, não são as técnicas em si que podemos chamar de cuidar, apesar da sua relevância e real necessidade em muitos momentos. O cuidar, sendo mais do que ações técnicas, é desenvolvido com atitudes que, em distintas circunstâncias, podem ser desvalorizadas por falta de consciência profissional, como por exemplo, o ouvir/escutar, o tocar, o apoiar/auxiliar o paciente na deambulação, o ajudar o outro a alimentar-se, a tomar banho, a trocar fralda de um senhor de 70 anos de idade que, durante décadas de vida foi ativo, independente e num dado momento da vida perde sua autonomia, suas forças vitais para cuidar de si (Silva, Silva; 2013). Cuidar, na nossa compreensão, é auxiliar o outro a recordar a vida que existe ainda dentro de si, e que por alguma condição, seja ela consequência de um processo patológico ou não (fase do desenvolvimento humano, má formação congênita), necessita do restabelecimento das suas forças vitais.

Diz-se que um professor ou mentor conduz seus alunos só e até onde seu preparo alcança. Podemos considerar essa afirmação como ponto de partida para os enfermeiros e para qualquer outro profissional da área de saúde. Ao cuidar-se (equilibrando-se física, mental, emocional e espiritualmente), o enfermeiro presta serviço a si próprio; ao tornar-se praticante do autocuidado, mantendo elevados os indicadores de sua própria saúde e bem-estar, recebe como recompensa a capacidade de conduzir seus clientes/pacientes a níveis mais profundos de transformação e cura. Isso porque ao ampliarmos os recursos internos que sustentam nossa prática profissional, ampliamos não só os limites da nossa ação como enfermeiros cuidadores, mas a ação que sustenta nossa individualidade.

A área da saúde progrediu muito, sem dúvida. E a Slow Nursing, assim como a Slow Medicine, parecem resgatar princípios do cuidar e do tratar que ancoram uma evolução mais consciente. Nos seus princípios fica exposto a dialética entre “ser” e “não ser”, tudo adquire foco na aceitação da liberdade do ser humano, com suas constantes escolhas e autoafirmação de si; fica exposta a reflexão do que considera “bem” ou de valor. Parece que essa dialética sempre existiu, mas à medida que precisamos limitar o “excesso de poder” do profissional da saúde, podemos assumir nosso querer e dizer sim para princípios que recordam nossa responsabilidade e antecipam nossas ações, numa reflexão do que é “ser humano”. Faz com que o aspecto objetivo (racional) e o subjetivo (sentimento) tenham importância para a responsabilidade profissional e pessoal.

No livro “Qual o tempo do cuidado? Humanizando os cuidados de Enfermagem” (2004), afirmo que não tenho a pretensão de definir a grandeza “Tempo”. Mas talvez esteja na hora (falando em chronos!) de repensarmos nossas prioridades. Definir prioridades entendendo que algumas tarefas que temos de realizar não são selecionadas por nós, mas nos são impostas por escolhas feitas anteriormente. Não somos donos de todo o nosso tempo. O problema, ou desafio, é que talvez estejamos usando mal o tempo que é nosso. Refletir sobre os princípios que movem nossas ações não é prioridade?

 

Referências

Bachmann T. Slow nursing. Am J Nurs. 2011; 11(3):12.

Fernandes M, Silva MJP. Cuidar em Enfermagem é assim…. São Caetano do Sul (SP): Difusão; 2006.

Kerrigan Jr CG. Slow medicine: the barrier on the bridge. J Gerontol Nurs. 2017; 43(5): 49-50.

Lillekrokren D, Hauge S, Slettebo A.The meaning of slow nursing in dementia care. Dementia. 2017; 16(7): 930-47.

Lillekrokren D. Slow nursing – the concept inventing process. Int J for Hum Caring; 2014; 18(4): 40-4.

Nightingale F. Notas sobre enfermagem: o que é e o que não é. Loures (Pt): Lusociência; 2005.

Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo (SP): Loyola; 2004.

Salles LF, Silva MJP (Org). Enfermagem e as Práticas Complementares em saúde. São Caetano do Sul (SP): Yendis; 2011.

Sellman D. Does the slow movement have anything to offer nursing education? Nurse Educ Today; 2014; 34: 1414-1416.

Silva MJP, Gimenes OMPV. Eu – o cuidador. O Mundo da Saúde. 2000; 24(4): 306-9.

Silva MJP (Org). Qual o tempo do cuidado? Humanizando os cuidados de Enfermagem. São Paulo (SP): Loyola; 2004.

Silva RS, Silva MJP. Enfermagem e os cuidados paliativos. In: Silva RS, Amaral JB, Malagutti W. Enfermagem em Cuidados Paliativos: cuidando para uma boa morte. São Paulo (SP): Martinari; 2013. Cap.1, p.3-35.

Watson J. Enfermagem: ciência humana e cuidar. Lusociência (Pt): Ordem dos Enfermeiros; 2009.

 

Autoria:

Maria Júlia Paes da Silva

Praticante de meditação e de Tai Chi Chuan. Mãe Waldorf. Profa. Titular pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Gosto de escrever. Último livro escrito: No caminho – fragmentos para ser o melhor (2016, ed. Loyola).

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