Por: Lívia Callegari
“Não se é livre quando se ignora; não se tem autonomia quando não se tem liberdade.” (Fabriz)
A Slow Medicine tem como principal objetivo resgatar um cuidado amplo e individualizado, aliando o melhor da ciência com as expectativas e convicções do paciente. Para tanto, é valorizada a qualidade do processo de comunicação, a escuta ativa, atenta, compassiva e empática para que haja uma efetiva construção da relação com o paciente e compartilhamento das decisões, após informação plena para entendimento e tempo para avaliar.
Porém, como em toda relação profissional, que não deixa de ser humana, por mais estreita que possa se constituir, dilemas podem acontecer diante da própria formação recebida na graduação e incerteza jurídica que possa advir, tendo em vista que todo ato tem uma repercussão jurídica, e nem sempre o sistema de saúde está preparado para as peculiaridades que cada caso concreto possa apresentar.
Há tempos existe demanda sobre pacientes Testemunhas de Jeová, que dentro dos valores e liberdade de crença não aceitam transfusões de sangue total ou de seus quatro componentes primários: glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma. Então, para exercerem a autonomia de acordo com o que não os agrida do ponto de vista existencial, a proposta é a utilização de meio alternativos de tratamento, o que nem sempre é alcançado em fácil acesso, seja pela segurança da adoção em qualquer condição clínica, ou mesmo diante da escassez de disponibilização no âmbito público ou privado.
Sensível a essa demanda, diante do clamor da sociedade, o STF trouxe linha de pensamento sobre a recusa a tratamento de saúde por razões religiosas. Foi criado importante direcionamento, para a necessária segurança jurídica das relações, além de constituir paradigma para outras situações de semelhantes teor.
No posicionamento da Corte, foi enaltecido o poder do paciente na tomada de decisão por convicções religiosas, para consolidar entendimento da autodeterminação na escolha de tratamentos médicos eletivos de forma livre, informada e esclarecida. Basicamente, a decisão pautou-se na aplicação do fundamento a dignidade da pessoa humana, por se constituir no valor espiritual, moral e mais essencial inerente à pessoa, que se manifesta na autodeterminação consciente da própria vida. Por ser eixo norteador previsto na Constituição Federal, deve o Estado fornecer meios para a sua proteção, inclusive com a utilização da via judiciária, para que se resguarde e faça valer uma garantia de direito fundamental como o direito à vida.
O conceito do mencionado direito à vida, e não dever, guarda nuances que destoam uma singela acepção literal e limitada. No sentido mais apropriado conjuga elementos norteadores que caminham para além da vida meramente biológica, pois carrega a visão de uma vida existencial, digna, afetiva e com significado dentro das escolhas que cada um possa fazer sobre a sua saúde, algo que a mera da aplicação de uma tecnologia médica não é capaz de atingir. Contudo, mesmo essa concepção deve ser verificada com cautela, para que não haja subversão do conceito em si, diante da clara subjetividade que possa envolver, pois sempre haverá limites de acordo com as regras estabelecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Fato é que, na evolução do pensamento, a definição de Saúde adotada pela OMS, revisitado e reformulado ao longo do tempo, abriu margem para uma visão holística, ao colocar no centro do cuidado a pessoa com todas as suas singularidades, que não se limitam apenas ao aspecto da doença em si, mas também engloba o estado de completo bem-estar físico, mental e social. Isso traz uma perspectiva mais abrangente do paciente em um processo autônomo de tomada de decisão sobre os cuidados em saúde, dentro de outros valores que superam aspectos orgânicos.
Note-se que a autonomia aqui exposta, no mundo ideal, deveria ser extraída de uma reflexão autônoma. Nos ensinamentos do médico bioeticista Marco Segre, o processo da tomada de decisão deve conter do paciente a compreensão, avaliação, entendimento da informação, e intenção com ausência de influência ou qualquer pressão externa.No entanto, no mundo real, a total ausência de influência nem sempre é levada a cabo. Logo, quando nem sequer existem opções e escolhas conscientes, e o exercício da autonomia se torna enfraquecido.
A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos. (Fernando Pessoa)
Apesar do salutar entusiasmo de muitos sobre o direcionamento do STF que resultou no reconhecimento da autodeterminação do paciente dentro do que lhe é mais essencial, a aplicação prática para outros casos talvez apresente alguns obstáculos pelas próprias ponderações realistas trazidas no julgado. Isso se justifica pela imprescindibilidade de se adotar estratégias de tratamento não usuais, que permitam execução de procedimentos com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional sem riscos exacerbados ao paciente. Porém, em mapeamento inicial, verificou-se que são poucos os centros estabelecidos em regiões geográficas que disponibilizam essas alternativas.
Vale lembrar que, o direito social à saúde sob a perspectiva sanitária, a princípio, supera a esfera meramente individualista nas tomadas de decisões, por privilegiar a maioria. Os serviços nem sempre contemplarão o refinamento das vontades pessoais, o que pode trazer discriminação às percepções subjetivas sobre o que é ter e viver com saúde.
Assim, quando se vislumbra um pensamento amplo para critérios sociais, deve-se ponderar a cada caso concreto os limites de uma pretensão individual como um direito limitado, e não ilimitado, sob pena do Estado sofrer abalo e não assegurar prestações de saúde universais e igualitárias. Portanto, devem ser custeadas alternativas à transfusão, desde que o gasto não seja desproporcional. Nesse sentido, segundo o que foi debatido, por si só admitir que o exercício de convicção religiosa autoriza a alocação de recursos públicos escassos coloca em tensão a realização de outros princípios constitucionais ao sistema público, algo que impõe a difícil ponderação do direito à vida e à saúde de uns contra o direito à vida e à saúde de outros. (sic)
Com efeito, as políticas públicas quando constituídas, têm a essência de contemplar as minorias, a fim de proporcionar tratamento equânime. Contudo, até o presente momento, não existe nenhum regramento amplo direcionado a essa temática em especifico.
Não bastasse isso, outro ponto que merece ser alinhado é a lúcida ponderação sobre a necessidade da comprovação da viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica, e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, para que haja a execução do procedimento médico, pelo sistema público de saúde. Esse cenário, intrinsecamente, não permitiria margem para ruídos de comunicação ou intrusão de terceiros.
Fato é que o cotejamento entre a vontade do paciente e a proposta de um médico ou sua equipe, não é uma situação tão fácil para se dirimir, diante da própria formação do profissional que ainda é ensinado salvar vidas como propósito maior, ou oferecer a tecnologia mais segura, o que nem sempre é possível, por falha do próprio sistema, que se torna perverso a partir do momento que não guarnece as mínimas condições estruturais de trabalho e diretrizes para a conduta profissional. Além disso, como está na linha de frente da execução do cuidado, em não raras vezes fica desassistido de orientação a uma condição tão peculiar, por atravessamentos de interesses diversos.
Desse modo, para suprir tais demandas ou outras equivalentes, seria de bom alvitre, determinar às organizações proporcionarem aos profissionais espaços voltados ao compartilhamento de angústias e debates de casos clínicos, além de receber apoio e orientações administrativas, técnicas, emocionais e jurídicas ao profissional, que receberia ações conjuntas de aculturamento e sensibilização, para constituir perfeita harmonia e equilíbrio nas relações.
“Sabedoria nada tem a ver com grau de instrução ou títulos. Sabedoria está atrelada, sobretudo, à humildade e à retidão nas atitudes.” (Khadidja)
Determina o Código de Ética Médica que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional e que a profissão será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
Apesar disso, o que se verifica na prática, como mencionado, é que nem sequer há preparação na graduação para reflexões de dilemas ou situações complexas, eis que muitas instituições simplesmente excluem bioética clinica da grade de ensino. Logo, diante do arsenal tecnológico, ao aluno é incutido a utilizar-se de todos os meios disponíveis para salvar a vida biológica, sem se importar com o fato de que, por trás de um quadro clínico, existe uma pessoa com todas as suas qualidades e anseios.
Em realidade, o eixo do tema em questão extravasa a autonomia em virtude da liberdade religiosa, pois também guarda estreita ligação com o uso parcimonioso da tecnologia. Não é o fato da sua existência, não significa que ela deva ser utilizada a qualquer custo. Porém, deixar de utilizá-la pode causar grande desassossego ao profissional e receio de judicialização por omissão do dever de agir com as melhores práticas, diante da falta de amparo do próprio sistema de saúde.
Por isso que, toda problemática em questão, envolve a necessidade de estabelecer um processo de comunicação efetivo entre médico e paciente, baseado em ferramentas da medicina narrativa, levando-se em consideração a biografia, os valores, as singularidades e desejos, para se chegar a uma decisão compartilhada.
Em contexto geral, segundo o jurista João Monteiro de Castro, não se pode esquecer que, o dever atribuído ao médico é de aconselhar e informar o paciente, e, se o for caso, familiares ou próximos, da conduta a ser seguida e dos riscos de uma cirurgia e tratamento recomendados. A confiança do paciente no médico é dupla: de um leigo e um profissional; de um fraco e de um protetor. Mas o médico não é “dono” do doente. O paciente deve ser objeto de profundo respeito e consideração pelo profissional e tem direito de ser informado de seu estado, perspectivas e possibilidades, tratamentos existentes e riscos advindos de cada um, salvo quando a comunicação direta pudesse provocar-lhe dano, devendo, em nome da sua proteção, nesse caso, a comunicação ser feita ao responsável legal ou familiar.
Porém, apesar disso, e por todos os pontos apresentados, o entendimento do STF não retirou do profissional o direito de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, para não realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência por razões éticas ou técnicas.
A Resolução CFM nº 2.232/2019 estabeleceu regras específicas para o exercício dessa excepcional faculdade, que deve seguir passos específicos, como anunciar ao diretor técnico para providências necessárias, visando assegurar o tratamento escolhido, sendo necessário registrar o fato no prontuário e comunicação. Além disso, a recusa terapêutica preferencialmente, deve ser consumada por escrito e perante duas testemunhas ou gravado por meio da utilização de tecnologia como áudio e vídeo, que permitam sua preservação e inserção no prontuário. Quando a falta do tratamento recusado expuser o paciente a perigo de morte, ou risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade independentemente de estar representado ou assistido por terceiros.
Diante de todas as complexidades trazidas na relação humana entre médico e o paciente, é sempre necessário que o profissional, reconheça os seus limites para não prejudicar o elemento central do cuidado, que, invariavelmente, terá valores diferentes dos seus e esses não devem ser aviltados.
Nesse contexto, a Slow Medicine, antes de tudo, demonstra a humildade inerente à postura do profissional, que jamais será detentor da verdade universal, além da necessidade de se extrair aprendizados dos mais variados contextos que se apresentam na prática médica.
Lívia Abigail Callegari: Sou advogada inscrita no Brasil e em Portugal, com atuação na área do Direito Médico. Fiz especialização em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Sou pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Sempre busco reavaliar os meus valores e tomar contato com outras perspectivas. Gosto de viajar e tomar contato com outras culturas e filosofias de vida. Tenho como base a minha família, amigos, livros e artes. Aprecio o cair da tarde. Gosto do silêncio da noite, pela inspiração e a reconexão que me proporciona.
Obrigado, Lívia, por tantas informações. É muito bom tê-la por perto…
Obrigada, querido amigo