Knocking on Heaven’s Door

maio 23, 2016
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Por José Carlos Campos Velho:

O livro de Katy Butler relata, de maneira corajosa, os últimos anos da vida de seus pais, que viveram duas situações bastante diversas em suas trajetórias de final de vida.

Seu pai, Jerry Butler, professor aposentado da Wesleyan University, Connecticut, sofreu um acidente vascular cerebral que modificou o curso de sua velhice, até então percorrida serenamente. Dois anos depois do derrame foi submetido ao implante de um marca-passo definitivo por ocasião de uma cirurgia de hérnia inguinal. Acometido por múltiplas isquemias cerebrais ao longo do tempo, Jerry desenvolveu um quadro de demência vascular. A autora descreve a trágica evolução da demência – e a presença do marca-passo talvez contribuindo para uma longa sobrevida – com a paulatina deterioração de sua qualidade de vida e progressivo comprometimento de sua dignidade. A descrição do impacto deste evento na vida da família é despido de romantismo. As vidas da mãe e da filha vão sendo lentamente corroídas pelo agravamento da doença, culminando com o delicado momento que a mãe cogita o desligamento do aparelho.

Katy Butler interroga-se profundamente sobre a tecnologia médica e os caminhos tortuosos e sofridos que a “fast medicine” pode representar para as pessoas em seu final de vida. Aprofunda-se particularmente na questão do marca-passo, revisando desde a história de seu desenvolvimento, o avanço de sua utilização nos EUA e no mundo, a relação conflituosa dos médicos com a indústria de alta tecnologia médica e os potenciais conflitos econômicos daí advindos. Explora a polêmica questão do desligamento do marca-passo em situações de final de vida.

Propositalmente mais curta e ágil é a narrativa do processo de adoecer de sua mãe, Valerie, que tomou decisões sobre sua vida – e sua morte – após ter testemunhado o longo sofrimento do marido. Constrói-se uma outra maneira de lidar com a morte, elaborando-se um final de vida não determinado por intervenções de consequências imprevisíveis. Portadora de um grave problema cardíaco, com indicação de uma cirurgia de grande porte, que poderia vir a comprometer sua cognição, Valerie decide por uma conduta conservadora, não aceitando a intervenção. Viveu lúcida e tomou suas decisões até o último dia de sua vida. “A característica principal da boa morte não é a ausência de sofrimento, mas a habilidade de enfrentá-la com fé, coragem e aceitação”.

O final de vida implica no envolvimento da família, de cuidadores e de profissionais de saúde. Em um determinado momento, Butler cita a Teia de Indra, um mito hinduísta que revela a interrrelação e interdependência permanente da vida humana. “Muito além na abóbada celeste do grande deus Indra existe uma maravilhosa teia, pendurada por algum habilidoso artesão de tal forma que se estende infinitamente em todas as direções. De acordo com o gosto extravagante das divindades, o artesão pendurou uma jóia reluzente em cada “olho” da teia, e, assim como a teia é infinita em sua dimensão, as jóias são infinitas em número. Assim ficam penduradas, reluzindo como “estrelas” de primeira magnitude, uma visão deslumbrante para se admirar. Se agora selecionarmos qualquer uma dessas jóias e a examinarmos de perto, descobriremos que em sua face polida estão refletidas “todas” as outras jóias da rede, infinitas em número. E não só isso, mas cada uma das jóias refletidas nesta jóia também reflete todas as outras jóias, de maneira que existe um processo infinito de reflexos.”

O livro tem uma bibliografia muito rica e cita um grande número de recursos que podem ser utilizados pelas famílias ao se defrontarem com situações de manejo complexo – particularmente nos EUA.

Além de relatar detalhadamente as vivências de Katy com seus pais em seus últimos anos de vida, o livro é também autobiográfico, mostrando a sua própria transformação pessoal. O encontro com a espiritualidade através do budismo, pinceladas do programa dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos e da sabedoria de seus princípios espirituais, lhe permitiram adquirir equilíbrio emocional necessário para manejar situações difíceis e complexas.

No último capítulo do livro, “Notas sobre uma nova arte de morrer”, a autora identifica 6 estágios relativos à elaboração da processo de morte. Sugere algumas tarefas, uma vez confrontados com a inevitabilidade da morte:  “….reduzir as expectativas quanto ao alcance da medicina e retardar o surgimento de incapacidades; lidar de maneira prática com a dependência; preparar-se para o momento da morte; estar próximo do leito de morte e preparar a vivência do luto”, onde ela toma o cuidado de incluir os rituais, sejam religiosos ou não, para que a vivência da morte de um ente querido possa adquirir todo seu pleno significado e riqueza.

A medicina geriátrica e os cuidados paliativos compartilham trajetórias com a Medicina sem Pressa e são áreas de atuação que beneficiam-se enormemente de sua filosofia.

A Slow Medicine é uma referência constante no livro, apontada como uma linha condutora para o enfrentamento da velhice e da doença, na busca de um final de vida mais sereno, menos traumático e menos sofrido, para nossos entes queridos que partem. E para nós que seguimos nosso caminho, honrando e reverenciando a vida.

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