Por Herbert Kajiura:
As crianças costumam ter um pensamento mágico e ver o mundo de uma forma peculiar. Eu me lembro muito pouco de como era o meu pensamento quando criança, mas uma das mais marcantes curiosidades que eu tive na minha infância era a de como o médico conseguia descobrir que doença a gente tinha. Lembro-me da minha mãe me dizendo, ao me preparar para uma consulta médica com nosso médico de família, que eu deveria responder às suas perguntas da forma mais fiel possível: o que e como eu me sentia, se a garganta ou a barriga doíam, se as manchas na pele coçavam ou não, e tudo que ele me perguntasse. Aí, me lembro dele puxando meus olhos para baixo com os polegares para ver se estavam corados ou amarelados, colocando aquele palito de sorvete sem sorvete na minha garganta a ponto de eu quase vomitar, dele percutindo minhas costas e abdome como se fossem tambores, auscultando com o estetoscópio gelado enquanto me dizia para falar “trinta e três” e apalpando pescoço, axilas, virilhas e abdome. Minha mãe dizia que era a combinação desses sinais e sintomas obtidos na anamnese e exame físico (claro que não era com esses nomes), que ele “descobria” o que estava de errado comigo. Raramente foi necessário que eu me submetesse a algum exame laboratorial e se fiz algum não me lembro como algo essencial ao diagnóstico e tratamento médicos. Só com o interrogatório e o exame físico, meu médico sabia que remédio – geralmente um xarope muito ruim ou umas injeções doídas – me deixariam novamente bem de saúde. Havia também uma série de recomendações quanto à alimentação, controle da temperatura, hidratação, proteção contra o frio, cuidados com repouso ou atividade física, que eram dadas à minha mãe.
Quando decidi ser médico e entrei na faculdade, o desafio de me tornar um profissional com um mínimo de competência trouxe de volta esse fantasma: como era possível obter as informações necessárias para diagnosticar e tratar doenças e memorizar todas as apresentações clínicas, alterações no corpo, sintomas e sinais das inúmeras doenças capazes de acometer o ser humano? A diferença, em relação à atuação do meu médico de família, é que eu poderia contar com vários exames laboratoriais, radiografias e tomografias. Porém, a ênfase ainda era dada na anamnese e exame físico. A partir daí, eram levantadas hipóteses diagnósticas e só então podíamos contar com os exames complementares para confirmar ou descartar hipóteses, tornando mais fácil o diagnóstico.
Nessa época, eu era fã de contos policiais como os de Sherlock Holmes / Dr. Watson e de Hercule Poirot. A analogia entre a atuação do clínico com a de um detetive policial, que buscava provas, interrogava testemunhas, descartava falsas pistas, dentro de uma lógica, de um modus operandi, até chegar ao assassino, foi o que me levou à reumatologia. Mesmo assim, quando abordei um velho reumatologista, assistente do HC, perguntando-lhe o que precisaria fazer para fazer uma boa residência em reumatologia, ele me disse, sem hesitar: “primeiro, aprenda a ser um bom clínico”.
Os transtornos reumáticos, as afecções músculo-esqueléticas são muitas vezes um desafio para o clínico, porque as apresentações das doenças nem sempre são típicas, fogem da descrição clássica, às vezes tem apresentação bastante polimórfica: dois pacientes podem apresentar quadro clínico totalmente diferente e ambos receberem o diagnóstico de Lupus Eritematoso Sistêmico. A presença de um FAN+, embora ocorra em mais de 99% dos paciente com Lúpus Eritematosos Sistêmico, pode ocorrer em várias outras doenças e numa parcela considerável de pessoas normais, sem nenhuma colagenose. O Fator Reumatóide, uma pista para a Artrite Reumatóide, pode estar presente em outras doenças crônicas, em outras colagenoses como a Síndrome de Sjögren e até na Crioglobulinemia Mista associada à infecção pelo vírus C da hepatite. Os exames complementares com frequência são pistas falsas, que o médico-detetive precisa saber descartar. O problema é que essas pistas falsas chegam ao conhecimento do paciente antes de serem descartadas, criando muita ansiedade e apreensão. Ainda mais, com a facilidade de se perguntar ao Dr. Google.
Hoje em dia, talvez como consequência de uma Medicina centrada nos exames laboratoriais e na alta tecnologia relacionada aos métodos de imagem, atendo pacientes que não sabem direito se estão procurando o especialista certo, e outros encaminhados com uma sacola de exames, muitas vezes sem que tenha sido feita uma anamnese, um exame físico ou levantada uma hipótese diagnóstica, mesmo que sindrômica.
Pensando nisso, ainda mais agora que a filosofia da Slow Medicine tenta resgatar a Medicina centrada no paciente, a individualização da abordagem e do tratamento, a valorização da anamnese e do exame físico com uso racional dos recursos diagnósticos complementares, resolvi lembrar aos colegas médicos que a prática médica, particularmente a reumatologia, pode ser um excitante exercício detetivesco de investigação, desde que feito com a metodologia adequada. Por isso, antes de encaminharem ao reumatologista ou pedirem qualquer exame, façam uma boa anamnese e exame físico, levantem uma ou mais hipóteses diagnósticas e só então peçam exames para confirmar ou descartar sua hipótese. Citando uma recomendação do Dr. Sterling G. West: “Não peça um exame laboratorial a menos que você saiba por que você o está pedindo e o que você vai fazer caso ele venha anormal”. Se não souber como e o que pedir, encaminhe com as informações obtidas na história e exame físico que possam ser relevantes.
Aos pacientes, sugiro o que sugeria minha mãe: tentem descrever seus sintomas o mais fidedignamente possível. Tentem colocar seu aparecimento numa ordem cronológica. Se estiverem usando alguma medicação, anote o nome, a dose e o tempo de uso num papel ou leve as receitas no dia da consulta. Anote também os medicamentos “caseiros” e suplementos que você estiver tomando. Concentrem-se nos sinais e sintomas e deixe o diagnóstico por conta do médico: tentar chegar ao diagnóstico pelos resultados da pesquisa no Google geralmente (ainda) não dá certo.
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Herbert Kajiura, então fale um pouco do seu currículo…. Currículo?
Bem, sou médico reumatologista, formado pela Faculdade de Medicina da U.S.P., turma de 1984, e Reumatologista pelo H.C. da FMUSP. Trabalhei como clínico e reumatologista na BP de 1988 a 2014, e desde então só em consultório privado…
Para mim, recontaram minha infância. Aos 87 anos recordo-me e bem dos fatos ocorridos com os médicos, com a medicina, com minha mãe e com minha própria ignorância e por que não com os remédios, caseiros ou não! (Óleo de fígado de bacalhau e outros…). Que o “slow medicine” venha em boa hora.