Right Care: O Cuidado Apropriado e o Movimento Slow Medicine

janeiro 30, 2017
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Por Andrea Gardini:

Os profissionais de saúde são influenciados atualmente por várias forças, pelo mercado, por governos, pelas sociedades de classe, etc, que afetam as nossas condutas, os nossos objetivos de cuidado e a nossa interação com nossos pacientes. Pressões estas que fazem com que o objetivo da iniciativa Slow Medicine, de oferecer cuidados de saúde sóbrios, justos e de forma respeitosa, sejam cada vez mais caros frente aos acontecimentos que nos desumanizam, que nos individualizam e que nos fazem perder a capacidade de nos colocar no lugar do próximo. A cada dia, chegamos mais perto de um colapso global em termos de saúde, onde os recursos finitos precisam ser utilizados com responsabilidade cada vez maior, evitando-se a subutilização ou o sobreuso. Avaliando esses problemas crescentes, o Dr. Andrea Gardini procura neste texto, traduzido de um comentário feito no Kings College em Londres no dia 09/01/2017, por ocasião do lançamento da série de artigos Right Care pela revista The Lancet, em uma cooperação com o Lown Institute de Boston,  tecer posicionamentos sobre como esse movimento deve trabalhar de forma interdependente com a Slow Medicine e a Campanha Choosing Wisely.

(Introdução e tradução do inglês: Daniel Felgueiras Rolo)

“Eu represento a Slow Medicine, a rede italiana de ideias sobre saúde e qualidade dos cuidados em saúde.

Essa rede nasceu em 2010, como uma livre associação de cidadãos, pacientes, profissionais de saúde. No começo de 2011, chegamos em um consenso de 3 palavras chave para a nossa filosofia: “sobria”, “rispettosa” e “giusta”, em português “sóbria”, “respeitosa” e “justa”. Sóbria, pois nem sempre fazer mais, significa fazer melhor. Respeitosa, pois as relações entre pacientes, médicos e profissionais de saúde deve ser baseada no respeito (sem respeito, sem relações; sem relações, sem alianças; sem alianças, sem o cuidado adequado). Justa, porque trabalhamos para desenvolver um sistema público e universal de saúde, pautado no cuidado adequado que os pacientes e cidadãos solicitam e necessitam.

Essas três palavras são semelhantes as escolhidas pela filosofia Slow Food, o movimento internacional em prol de um alimento bom, limpo e justo, com o qual temos um acordo de colaboração. Dessa forma, somos autorizados a utilizar a palavra “Slow”, assim como a figura do caracol. Nosso logotipo, criado por Jorge Frascara (professor emérito de Design da Comunicação, da Universidade de Alberta) que é formado por dois caracóis, um de frente para o outro, conversando, se comunicando, como todos os profissionais de saúde e pacientes deveriam fazer. Comunicação é um dos nossos pilares.

Por que um Caracol para representar os movimentos Slow Food e Slow Medicine? Porque o caracol tem um senso de limite. Um caracol não cresce mais do que o seu corpo consegue sustentar. Assim deveria ser a medicina na nossa opinião, assim como as sociedades humanas; nosso planeta já vive desse modo, como um sistema vivo.

O movimento Slow Food foi criado como uma reação ao movimento Fast Food e, no momento, também está promovendo os devidos cuidados com o nosso planeta e seus habitantes. Dessa mesma forma, o movimento Slow Medicine nasceu de uma reação à Fast Medicine que, entre outras perversões, produz sobreutilização, assim como, subutilização de recursos e valores.

Existem muitas histórias, culturas e experiências dentro da Slow Medicine. A primeira é a evolução da Associação Italiana de Qualidade em Cuidados de Saúde, nascida em 1984. Ela foi inspirada por alguns dos líderes em qualidade mais importantes da América do Norte e da Europa. Durante os últimos 30 anos, passamos de Willian Deming e seu modelo de organização mecânico, com o seu PDCA (Plan, Do, Check, Act), paralelamente e conjuntamente com o modelo biomédico baseado em evidência, para um modelo sistêmico de organização do sistema de saúde, com um modelo ecológico de medicina científica que considera também a influência da biosfera na saúde dos homens. Sentimos a necessidade de não mais considerar saúde e doença como dois domínios diferentes, mas a pensar nesses conceitos como um continuum entre o bem-estar máximo (físico, espiritual, social e ecológico) e o processo de adoecimento. Esse é para a gente, uma nova relação conceitual que considera saúde e cuidado com saúde, salutogênese e cuidado com saúde, como conceitos que não competem entre si. Nas palavras de Henry Mintzberg, na relação desses conceitos, saúde e cuidado com saúde, é necessária colaboração e não competição.

Tentamos entender a complexidade dos conceitos de saúde e cuidados de saúde ao explorar as suas relações, dessa forma, evitando uma grande armadilha: a arrogância humana para controlar a complexidade, reduzindo esses conceitos as suas partes. Reducionismo poderia ser algo interessante há alguns anos atrás para a saúde dos pacientes. Esse reducionismo pode funcionar para condições de saúde mais simples, mas na maioria das situações, esse modelo pode ser potencialmente perigoso. Algo que pode danificar os sistemas de cuidado em saúde e essa série evidencia esse fato.

No nosso processo de formação da Slow Medicine encontramos uma organização cultural italiana importante, chamada “Change”. Importantes por terem introduzido, na Itália, dois pilares da Slow Medicine: a medicina narrativa e aconselhamento sistêmico, ambos derivados do conceito de “pensamento sistêmico” que tomamos como base comum.

Há 4 anos, lançamos um projeto, chamado Choosing Wisely. Entre os nossos parceiros nesse projeto temos, Altroconsumo (movimento de proteção aos consumidores, com 450.000 associados), a Federação Nacional de Colégios de Medicina e Odontologia, Federação Nacional dos Colégios de Enfermagem e o Instituto Mario Negri, com sua seção de informação aos pacientes, “informasalute”.  Nesse projeto, totalmente voluntário e sem fins lucrativos, conseguimos envolver 40 sociedades científicas médicas e de enfermagem que produziram cerca de 170 recomendações sobre as condutas com alta probabilidade de serem consideradas inapropriadas que, antes de serem praticadas, devem ser discutidas com os pacientes. Em maio de 2016, reunimos, em Roma, com a iniciativa internacional da Choosing Wisely, que também compreende outros 18 países.

Não queremos apenas mudar, ou tentar consertar processos administrativos, organizacionais ou regulatórios. Os sistemas de saúde precisam de uma mudança de paradigmas. Para nós, a relação paciente-médico/equipe de saúde é central; as necessidades populacionais precisam ser conhecidas, promoção de saúde e prevenção de doenças deveriam ser as principais abordagens em saúde; as escolhas em saúde deveriam ser baseadas em evidências; os cuidados deveriam ser centrados no paciente, em um continuum entre diferentes níveis de complexidade e especialização; a efetividade deveria ser mais importante que a eficiência, assim como a adequação e integração desses cuidados; a cobertura do sistema de saúde deve ser universal e compulsória para todos os países; assim como a saúde dos cidadãos deveria ser prioridade para os governantes. Enfim, existe muito a ser feito ainda.

Então, vocês me perguntam sobre as “consequências de falhar em não reduzir o uso inadequado dos recursos de saúde em países desenvolvidos e subdesenvolvidos, sobre as consequências para profissionais de saúde, políticos e ativistas no assunto”. Acredito que estou aqui como um ativista e agradeço muito pelo convite. Nós, como Slow Medicine, não podemos nos dar o luxo de falhar nessa tarefa. Ela é compulsória. O uso inadequado dos recursos de saúde é antiético. Se médicos, em conjunto com a equipe de saúde, não se aliarem com os cidadãos, pacientes e políticos para essa mudança de paradigma que mencionei, esse será o fim da medicina como nós a conhecemos.

Há uma necessidade de uma estratégia global para que ocorram essas mudanças. Vários cientistas eminentes concordam que se deve dar uma voz à pessoas e comunidades danificadas pelos efeitos colaterais da globalização. Aqui, posso dar alguns exemplos, mas acredito que vocês entendem do que quero dizer. Nós, como médicos, enfermeiros e assim por diante, temos em nossas mãos, o poder de agir na relação com os pacientes e de prescrever, ou não, tratamentos úteis para eles. Temos nossa ética pessoal, moral e o nosso Juramento de Hipócrates que é universal. No nosso código profissional, somos considerados como os protetores de pacientes frágeis. Temos que continuar protegendo-os com todo o respeito e juntar nossas forças, para trabalhar e planejar juntos, o melhor sistema de saúde já conhecido pela humanidade possível hoje, para assim oferecer os melhores cuidados de saúde população. Dificuldades ocorrerão e devemos estar a frente delas, não devemos esperar passivamente. Podemos começar hoje a reavaliar o que fazemos com nossos pacientes em nossa prática médica. Lembrem-se de ouvi-los, seguindo com inteligência e senso de dever as poucas diretrizes emitidas por órgãos realmente independentes (essa é uma de nossas preocupações).

Exemplos? Poderíamos começar hoje, reduzindo a pressão na população e no meio ambiente pela realização de radiografias sem necessidade, poderíamos evitar prescrição de antibióticos para infecções claramente virais, poderíamos como pediatras evitar a prescrição de fórmulas para crianças cujas mães são capazes de produzir o próprio leite, poderíamos evitar a polifarmácia em idosos, evitando medicamentos que na melhor das hipóteses são ineficazes e até mesmo danosos a essa população e assim por diante. Podemos começar agora a utilizar as ferramentas para compartilhar com os pacientes as tomadas de decisões, como Angela Coulter sugere, permitir que os pacientes façam as 5 perguntas que devem ser perguntadas aos seus médicos no ato da prescrição médica e fazer com que os médicos as respondam.

Finalmente, as campanhas “Choosing Wisely”, “Right Care”e “Slow Medicine” podem prevenir erros médicos estimulados por forças relacionadas ao mercado. Existe apenas uma forma de não cometer esses erros clínicos, evitando-se aqueles diretamente influenciados pelo mercado.

Por um cuidado adequado a responsabilidade da decisão médica não pode ser renunciada. A campanha Right Care pode ser uma forma bem-sucedida de uma aliança entre médicos e pacientes, sustentada pelas respectivas organizações e, se possível, governos com responsabilidades diferentes e reconhecidas de cada esfera de atuação.

Esse é o momento de agirmos pelo Right Care (traduzido como cuidado apropriado e alusão à campanha Right Care) e pela Slow Medicine. Estamos juntos com o Choosing Wisely nessa luta em comum.”

Andrea Gardini. (Médico pediatra, membro fundador e atual conselheiro da Associação Italiana de Slow Medicine. O Dr. Andrea é co-autor do livro “Slow Medicine”, e co-fundador da Associação Italiana de Qualidade em Cuidados de  Saúde e membro da Sociedade Internacional pela Qualidade no Cuidado em Saúde).  Email: [email protected]

________________

Daniel Felgueiras Rolo é natural de Belém do Pará, graduado em Medicina pela Universidade Federal do Pará, Clínico Geral pela Santa Casa de São Paulo e Geriatra pelo Hospital das Clínicas da Univesidade de São Paulo. Título de especialista em Geriatria pela SBGG/AMB. Atualmente, responsável pelos cuidados dos pacientes clínicos, em sua maioria idosos, internados no Hospital Nossa Senhora das Neves em João Pessoa-PB e Médico voluntário, responsável pelo Ambulatório de Cuidados Paliativos do Hospital Universitário Lauro Wanderley da UFPB.

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José Carlos Campos Velho

O dr. Vikas Saini, presidente do Lown Institute, comenta em carta aberta sobre a necessidade do prosseguimento das ações da Alliance for Right Care, na “Era Trump”.

https://medium.com/@LownInstitute/right-care-for-all-in-the-trump-era-485b91526d0d#.tue4b2mlc

Alexsandro Neto
Alexsandro Neto
7 anos atrás

São ótimas as ideias da Slow Medicine, porém é preciso ter o cuidado para que o SUS brasileiro não a desvirtue.

José Carlos Aquino de Campos Velho
José Carlos Aquino de Campos Velho
7 anos atrás
Responder para  Alexsandro Neto

Creio que as proposições da Slow Medicine transcendem a fronteira da atenção à Saúde Pública, pois, em se tratando de uma filosofia de trabalho com implicações na prática médica, não acredito que o desvirtuamento de seus princípios possa ocorrer por sua adoção dentro do horizonte do SUS. A “Fast Medicine” é muito prevalente no sistema privado, onde a maior disponibilidade de recursos diagnósticos e terapêuticos torna mais provável o sobreuso e, em decorrência disso, diagnósticos e tratamentos em excesso. Como a Slow Medicine não é estritamente um “programa” a ser implantado, e sim uma proposta de reflexão sobre a prática médica, acho que balizar ações de saúde no Sistema Único de Saúde por seus princípios só poderá trazer benefícios para as pessoas que trabalham nele ou se utilizam de seus serviços. A filosofia da Medicina sem Pressa não corre o risco de ser desvirtuada. As pessoas e instituições podem se utilizar deste nome de maneira inadequada e com intenções não tão louváveis. Mas isso não implica em sua descaracterização.

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