Saber Cuidar

janeiro 10, 2017
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Por Sylvia Mello Silva Baptista:

Leonardo Boff é uma daquelas pessoas que não necessita de maiores apresentações. Podemos identificá-lo como ex-frei e ainda expoente da Teologia da Libertação, como professor, como escritor, pesquisador, editor, como pensador. Escreveu uma enormidade de livros –mais de 70!- mostrando uma incansável energia para fazer chegar ao leitor suas reflexões que sempre foram para muito além do âmbito religioso em que está inserido, a saber a igreja católica (apesar do seu desligamento da ordem franciscana e dispensa do sacerdócio). Seu pensamento não conhece amarras e sua sinceridade ao tocar temas como a Ética e a Ecologia, bem como a Espiritualidade, provocam de imediato um sentimento de respeito profundo.

Já no título de seu livro parece fazer uma delicada provocação: Saber Cuidar. Haveria naquelas páginas uma receita ou uma orientação para algo que todos, e cada um, sabem do que se trata a seu modo e desejam exercitar? A curiosidade nos faz tirar o livro da estante, abri-lo e espiar para descobrir por que caminhos esse simpático e enfático senhor irá nos conduzir.

Na abertura, Boff demonstra que sua reflexão está fincada no hoje. É pelo mundo virtual on-line que ele inicia esse passeio, e planta ali uma semente que fará florescer por todos os capítulos seguintes. Diz ele: “O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade”. Ao meu ver, tudo está condensado nesta frase que ele fará desenrolar, com cuidado, para nos chamar atenção para uma mudança iminente e mandatória.

A falta de cuidado é o estigma de nosso tempo, afirma no capítulo 1. Chama o homem de adolescente, praticante de um descaso com a Terra, como se fora um Deus. E declara: “Uma ética nova pressupõe uma ótica nova”. Através dos seus olhos, vamos visitar o realismo materialista que alimenta a modernidade científico-técnica e atentar para o fato de que “o visível é parte do invisível”. À medida que caminhamos a seu lado entendendo a falta de cuidado que nós, habitantes do planeta Terra, praticamos diariamente, às vezes inconsciente, e muitas vezes conscientemente, vamos nos dando conta das consequências da ausência de conexão com o todo, nós, parcela do universo. Os movimentos ecológicos, a meditação e a espiritualidade apontariam, a seu ver, para uma filosofia preocupada em fundar um novo ethos, em “reconstruir a casa humana comum num planeta unificado”.

Em seguida ele discorre sobre o cuidado enquanto atitude, trazendo Heidegger (1889-1976) como representante dessa concepção. Fala também da importância da sabedoria dos mitos e da polivalência do sagrado. “Espiritual e psiquicamente não somos monoteístas, mas plurais”, afirma, abrindo espaço para o terceiro capítulo, onde trará a pedra de toque na qual se fiará para fazer valer sua tese.

É através da fábula-mito do cuidado, de origem latina, mas de base grega, atribuída a Gaius Julius Hyginus (64 a.C.-17 a.C.), também conhecida como fábula de Higino, que Boff tentará nos sensibilizar para o cuidado enquanto essência do humano. Conta o mito que Cuidado tomou de um pedaço de barro e lhe deu forma. Pediu a Júpiter para lhe soprar espírito. Quando Cuidado quis nomear a criatura, Júpiter exigiu que o nome fosse seu, e Terra reclamou também por ter sido do material de seu corpo que a criatura surgira afinal. Pediram então a Saturno que decidisse, e este o fez: Júpiter teria de volta o espírito quando da morte da criatura; Terra, que lhe dera o corpo, o teria de volta, da mesma forma, e a Cuidado caberia cuidar dela enquanto vivesse. Saturno foi quem, ao final, deu-lhe o nome de Homem, por ter sido feito de húmus, terra fértil.

Uma infinidade de perguntas e pensamentos se desdobram do mito e dão origem aos capítulos subsequentes. O que é o Céu? O que é a Terra? De que dualidades falamos? Sujeito-objeto? Feminino-masculino? O pessoal e o coletivo? Com Saturno identificado com o âmbito da utopia – enquanto fonte de razões por o que lutar-, percorre trilhas que esmiúçam a etimologia da palavra cuidado e desembocam em mais uma dualidade: o modo-de-ser-trabalho e o modo-de-ser-cuidado, duas formas de ser no mundo que lançam um dos maiores desafios do humano, a combinação de trabalho e cuidado. Tais colocações levam a refletir sobre a voracidade produtivista ancorada na ditadura do modo-de-ser-trabalho e sua filosofia antropocêntrica, patriarcal e machista. Desse embate se desprende que o sentimento profundo, o pathos, chama-se cuidado. Este é um princípio que acompanha o ser humano em cada passo. “Sempre é possível crescer na prática do cuidado em cada circunstância, no tempo e no contratempo”.

Boff elenca várias personagens históricas que representam o cuidado para o qual quer chamar atenção: Jesus, Buda, São Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, o profeta Gentileza –José da Trino-, e conclui, quase num chamado para o ladearmos, que “somente buscando o impossível, consegue-se realizar o possível”.

Seria impossível fazer do cuidado uma atitude paradigmática no mundo atual? Ou tarefa utópica? Devemos pedir auxílio à sabedoria de Saturno? Sempre! O que Boff faz é nos instigar ao compromisso pessoal nessa empreitada de mudança de atitude mais que necessária nos tempos hodiernos. Carl Gustav Jung já afirmou no século XX, depois de muito viver e lançar alguma luz nos mistérios da psique humana, que se você quer salvar a humanidade, comece transformando um único homem.

“Saber cuidar” é um livro que nos remete a uma outra imagem que sempre carrego comigo, e que escrevendo esta resenha me ocorre, como o invisível que visita as palavras visíveis do texto na tela: Uma ressaca terrível acometeu uma praia numa pequena cidade litorânea. Depois de passada a turbulência, um senhor foi caminhar na orla e viu uma quantidade assustadora de estrelas-do-mar cuspidas na areia. Certamente morreriam em poucos minutos. Entristeceu-se, balançou a cabeça olhando o chão e prosseguiu. A poucos metros dali viu uma criança agachada com uma estrela-do-mar na mão; em seguida ela levantou-se e arremessou com delicadeza a criatura de volta ao mar. Fez este gesto inúmeras vezes até o senhor se aproximar da criança e dizer categórico, do alto da sua maturidade: “meu filho, você viu a quantidade de estrelas espalhadas na areia? Fazer isso que você está fazendo não irá fazer a menor diferença”, ao que a criança respondeu, olhar atento para o pequenino animal que segurava nas mãos: “para esta, vai; e para esta, e esta, e esta”. Ao fim de alguns minutos, eram dois a lançar estrelas-do-mar ao mar. E em pouco tempo, esse número se multiplicou.

Falar sobre o cuidado neste local, o site da Slow Medicine, também não é por acaso. A mudança de atitude que esse movimento pede está totalmente consonante com as ideias que Leonardo Boff prega em “Saber cuidar”. Para cuidar é preciso desacelerar o passo, reparar no outro que está próximo, abrir a escuta, con-siderar, inaugurar uma nova ótica que implique numa nova ética. Tenho certeza que os adeptos e simpatizantes da Slow Medicine, a Medicina sem pressa, irão aproveitar muito os pensamentos e imagens que Boff nos oferece, fazendo valer a diferença no gesto pequeno, mas cuidadoso e poderoso, que podemos ter a todo momento em nossas vidas. Boa leitura!

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Sylvia Mello Silva Baptista formou-se em Psicologia pela PUC-SP. É analista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, professora de cursos abertos e de formação da SBPA, coordenadora do MiPA, Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica da Clínica da SBPA. Como escritora, publicou “Maternidade e Profissão: Oportunidades de Desenvolvimento”, “Arquétipo do Caminho – Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas”, “Mitologia Simbólica – Estruturas da Psique e Regências Míticas” e “Ulisses, o herói da astúcia”, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.

Lançou seu primeiro romance – “Segunda Pedra” – em novembro de 2012 pelo selo Edith.

Email: [email protected]

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