Por: Ana Célia Rodrigues de Souza
“Para cuidar de si mesmo, use a cabeça. Para cuidar dos outros, use seu coração.”
(Eleonor Roosevelt)
No início, na vida de cada ser, a primeira condição necessária e suficiente para estarmos aqui é a casa e junto com ela, para promover o desenvolvimento da nova vida, são as trocas. Em condições normais, numa gestação saudável e desejada, nossa primeira acolhida ocorre na ‘casa-útero’ materna, onde a vida se inicia. Esse começo se dá com a doação materna de tudo que é necessário para a existência, sobrevivência, crescimento e desenvolvimento do novo ser.
Todos nós habitamos esse espaço por volta de quarenta semanas. No início, hipoteticamente, no silêncio e no escuro, protegidos por uma bolsa cheia de líquido, que nos acolchoa nos atritos desse primordial mundo interno. Após o parto, nossa sobrevivência e desenvolvimento só ocorrem se formos cuidados. E é aí, penso eu, que se inicia de forma mais concreta e objetiva a relação de troca com o outro. Troca com o ar, troca com a mãe (ou qualquer cuidador) para a alimentação, proteção, carinho e amor. E por que digo troca? Já que enquanto bebês, recebemos tudo isso. O que damos de volta? Prazer, amor, completude, sentido de pertinência à vida e noção de continuidade, eternidade. Estas foram as vivências que me preencheram quando dos meus dois partos e que só foram possíveis porque o bebê que eu tinha para cuidar estava lá. Por isso, troca!
Na psicologia usamos uma metáfora para vivências afetivas, cognitivas, imaginais: a casa interna (psique). Como uma tartaruga que se recolhe dentro do próprio casco para se proteger, dizemos que ela é a própria casa, carrega em si a própria casa, está na própria casa. E, talvez, não à toa, a tartaruga associa-se à deusa do lar na mitologia grega: Héstia. Com a Pandemia, ouvimos muitas e muitas vezes: “Fique em casa!” Medida sanitária necessária para tentar diminuir tanto o contágio como o aumento de pessoas necessitadas de um leito hospitalar ao mesmo tempo. Esta medida gera duas atitudes: ficar ou não ficar em casa. Na dimensão concreta da vida, alguns podem escolher e muitos não podem escolher ficar em casa. Entretanto, na dimensão metafórica, o ficar em casa, idealmente, deveria ser mais predominante, pois estou me referindo à casa interna.
E o que é isso da casa interna, afinal?
A metáfora me remete ao aconchego, à proteção, paciência, calma, tranquilidade, solitude (e não, solidão). Poder estar acompanhada de si-mesmo, olhando-se por dentro, para se saber melhor, refletir, compreender e agir de modo menos ‘piloto automático’, e assim, mais consciente de si e do entorno. Para as pessoas mais extrovertidas, um grande desafio! Já, os mais introvertidos, talvez, se saiam melhor, porém a oportunidade está posta para todos. Entendo que a saúde mental tem tudo a ver com a nossa casa interna, que pode ser espaçosa, confortável, hospitaleira, sem preconceitos, sabendo receber a si-mesmo em toda sua singularidade, com seus medos, dores e angústias, oferecendo uma bebida quente, como diria Sheldon (personagem da série The Big Bang Theory), nestes difíceis momentos.
No entanto, a casa interna também pode ser apertada, precária, confusa, inóspita e até miserável, trazendo muita dificuldade para seu anfitrião lidar com sua singularidade, seus medos, dores e angústias, trazendo até o pânico! Aqui, cabe um pequeno parêntese: pânico vem do deus grego Pan, que significa: tudo, todo. Uma criatura muito singular: metade do corpo acima da cintura é humana e a metade inferior é animal, com pernas de bode e dois chifres. Ao nascer, sua mãe, assustada com sua aparência, dá um grito e o deixa cair no chão, abandonando-o. Já imaginaram começar a vida assim? Que medo!!
Se por acaso adoecermos de COVID-19 e precisarmos ser internados, nossa nova habitação será o hospital, a nossa nova casa concreta. Se nossa casa interna estiver em ordem, essa mudança para o hospital e todas as posteriores trocas tendem a ser mais tranquilas, caso contrário, tudo se complica. Com mais de um ano de duração, a pandemia despedaçou muitas casas e lares, em todas as dimensões. Profissionais da saúde e demais, na linha de frente, encontram-se exaustos e combalidos.
Com esse cenário, nada mais importante que os valores do movimento Slow Medicine estarem presentes em todas as casas. Destacaria entre eles, o foco no estabelecimento de uma relação ‘médico-paciente-família’ digna e central no cuidado com os doentes, com trocas saudáveis, respeitosas, justas e honestas, contribuindo assim, com a saúde mental de todos. Ao falar ‘médico’, quero dizer toda a equipe de saúde, incluindo todos os profissionais.
E para finalizar, parece que peço a UTOPIA! Sei que nada está fácil na linha de frente, para nenhum dos lados nessa troca tão fundamental!
Ana Célia Rodrigues de Souza: médica psiquiatra, além de mãe de duas pessoas muito legais, aproveita o “fique em casa” (como uma das poucas privilegiadas que pode escolher), para potencializar a maternidade de mim mesma, na minha casa interna, tentando, assim, estar bem, para ajudar a quem precisa botar ordem na casa! Autora do livro: Morte e Luto: a psiquiatria sem drogas e as enfermidades míticas no cinema (publicado em 2018).