Se queres ser universal começa  por pintar a tua aldeia

setembro 19, 2023
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Liev Tolstoi (1828-1910) 

Em tempos de discussões acaloradas de como a Inteligência Artificial pode substituir o médico aqui e acolá, da análise de dados e Big Data, deparo-me no meio de uma estrada vicinal, sem fim e irregular. Campos substituídos ora por milho ora por aveia.  Avisto áreas antes verdes, hoje amarronzadas pelo rigoroso inverno e suas geadas. Aqui a discussão é outra. O tempo é outro.

O Brasil rural, profundo, nos traz uma perspectiva mais real, digamos, pé no chão, do quão longe estamos em garantir oportunidades e gerar cuidados justos, sóbrios e respeitosos às pessoas. 

Os índices de analfabetismo ainda são muito altos em pleno 2023, o analfabetismo funcional é crescente e o grande problema não está se o robô vai operar sozinho e, sim, se podemos interpretar uma receita, um texto simples, um folheto de missa. 

Das promessas de substituição do homem em funções cada vez mais elaboradas, a foice sobre os ombros ainda é uma imagem comum por essas bandas. Não precisamos ser alienados e não sabermos para onde caminha o mundo: quarta, quinta revolução. Mas é preciso olhar o Brasil para além muros para perceber que ganhar o pão de cada dia ainda é o mais relevante para grande parte da população. 

Que o salário mínimo, de mínimo não há nada, pois não garante o básico a uma saúde boa. Que a educação ainda que universal, mata um leão ao dia para garantir a entrada, mas a qualidade esbarra em barreiras tão grandes que não saberia por onde começar.

Não consigo, como cidadão e médico, discutir o futuro sem os olhos no presente ainda bem demarcados. Não para gerar desesperança e fatalismo, mas para chamá-los a olhar o mundo com esperança e missões mais nobres.

As gerações anteriores tinham bandeiras que se perderam, mundos que se transformaram, inimigos reais tornaram-se páginas de livros e muitos já nos deixaram. Nossa geração perdeu o olhar para o todo e ensimesmou-se. Sem um grande tema para nos unir, nos isolamos.

A reflexão que gostaria de trazer ao andar pelos atendimentos rurais é a necessidade do médico, enquanto formador de opinião e facilitador de decisões, retornar a um papel central da luta por dignidade. Menos instagrams, mais estradas e veremos que ainda há um mundo a mudar, a construir. 

Ao médico que preza por cuidados mais justos e sóbrios, a mim me parece, que cabe o olhar atento ao que podemos contribuir. Não como heróis, que não somos, mas com a responsabilidade de provocar a sociedade à reflexão. 

O que eu posso fazer? O que eu posso contribuir? Dentro da minha rua, do meu bairro, da minha cidade. O que posso contribuir para uma educação, saúde, à vida dos menos privilegiados, hoje? Afinal, quer “ser universal pinte sua aldeia”, não é mesmo?

Nossa dor, nossa angústia não é se o homem vai fazer uma casa em Marte, se o médico será substituído por uma máquina, mas se vamos garantir que nossos filhos e netos ainda possam sonhar. Essa bandeira que nos parece tão démodé ainda é tão presente no meu dia a dia que insisto em descortiná-la. Espero encontrá-lo sensível a um mundo mais sóbrio, respeitoso e justo.

Régis R. Vieira

Sou natural de Aiuruoca ( aiuru = papagaio ; oca = casa) no Sul de Minas, terra linda, permeada pela Serra da Mantiqueira.

Médico de Família e Comunidade (RQE 54828), Mestre em Ensino na Saúde pela UFF. Atualmente estou médico de família em UBS Rural, leciono a diferentes cursos de Pós Graduação do Hospital Albert Einstein e sou Membro do Centro de Estudos, Pesquisa e Práticas em APS e REDES do Hospital Israelita Albert Einstein. Colaborador do Movimento Slow Medicine Brasil.

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Pessanha
Pessanha
1 ano atrás

Obrigado, Regis, pelas reflexões, que também me acompanham aqui no interior de São Paulo, onde me deparo com analfabetismo e falta de letramento. Gosto de um dizer imputado a Willian James, Filósofo americano do século XIX: “haja como se o que você faz fizesse a diferença”. E faz…

Priscilla
Priscilla
1 ano atrás

Regis, gratidão pelo seu texto. Bela reflexão. Atuo num hospital universitário e também sinto isso, toda a importância da tecnologia enquanto esbarramos em problemas tão basais no processo de cuidado.

Pedro Inacio Mezzomo
Pedro Inacio Mezzomo
1 ano atrás

Belo texto. Traz lembranças do meu início de vida médica, em uma cidade pequena, onde a tua descrição acima cabe bem!

Eliane Genciano Cruz
Eliane Genciano Cruz
1 ano atrás

Nossa, compartilho bastante da sua posição.
Sou médica de família há muito tempo e vivo me perguntando como seria uma forma melhor de iniciar essa pintura, já que eu não obtive interesse nos locais onde trabalhava.

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