Por Lívia Callegari
“Se errar é humano, reconhecer o erro é ser justo. Corrigir esse erro é ser sábio.”
(Manuel O. Guimarães Junior)
O documento citado – verdadeiro divisor de águas para o entendimento da cadeia de atos existentes em uma assistência de saúde – escancara as possíveis falhas no sistema, que são circunscritas, em boa parte dos casos, por erros evitáveis. Por esse motivo, traz reflexões e delineia estratégias de como tornar a assistência em saúde uma prática mais segura para os pacientes. Com efeito, é uma abordagem necessária, pois é sabido que qualquer ser humano, independente da linha de trabalho em que atue, pode cometer erros.
Apesar do marco inaugural trazido pela “Segurança do Paciente” visar maior atenção no cuidado do paciente e mitigação de prejuízos da Instituição, ainda existem alguns serviços que insistem em continuar no ostracismo, e nada fazem para uma efetiva tomada de medidas para tornar o ambiente de trabalho seguro. Permanecem, assim, negligentes e escorados numa concepção limitada de referenciais. Alinham-se numa lógica cômoda e defasada, segundo a qual se pretende a busca incessante e sanguinária de apenas um único culpado pelo desfecho desastroso, como se isso fosse a solução integral para restaurar a imagem de um sistema inescusavelmente falho.
Ainda assim, para alguns dirigentes/gestores, no afã de mitigar qualquer possível repercussão negativa para a Instituição, a via mais célere é tão somente a de livrar-se do “problema”. Para tanto, adotam a postura autoritária e desprovida de empatia semelhante à da Rainha do conto “Alice no país das Maravilhas”, que determina, açodadamente, o ato de “cortar a cabeça” de quem falha, o que ao menos avisado poderá soar como ato heroico e um sentimento de justiça atingido. Para essa realidade enviesada, as teorias jurídicas, por estarem desatualizadas para esse novo paradigma, também em nada ajudam, pois ainda estão acompanhando o fato social por meio de uma carroça lenta e despedaçada, sem que haja alguma quebra de paradigma para se atrelar a uma visão mais sensível e realista dos processos da atualidade.
Todavia, o que deveria se esperar era justamente um caminho diferenciado, em que se aprofunda os fatos e os esclarece, por meio de um processo de investigação, que descortine os reais motivos que desencadearam a falha na prestação do atendimento. Falamos aqui de uma forma de aprender, de rever a cadeia de atos e, ao final, propor meios para barrar a perpetuação de possíveis falhas no atendimento e prejuízos de toda ordem, que acabam por repercutir fundamentalmente no paciente.
Fato é que, quando tratamos de vidas humanas e, mais precisamente, do trabalho humano, a perspectiva deve ser a mais abrangente possível, pois não é dada a nenhum indivíduo a capacidade de agir com a precisão de uma máquina bem calibrada, ainda mais quando o ambiente de trabalho é precário e favorece a concretização de erros.
Com efeito, se um sistema se desenvolve por meio de atos encadeados para o efetivo funcionamento, fatores externos podem afetar diretamente a conduta do profissional. Por isso que, quando o profissional recebe o veredito de único responsável por um dano ocorrido influenciado por um sistema absorto que não leva em consideração uma necessária cultura de segurança , em realidade, deveria passar a revestir a indumentária de segunda vítima , e não de algoz.
Porém, no mundo real, pela falta absoluta de amparo e retaliações que lhe são impostas, ao final, amarga o profissional com a experiência de distúrbios emocionais das mais variadas formas que abrangem, além de vergonha, a insegurança nos atos, o desenvolvimento de Burnout e, em não raras vezes, a triste ideação suicida pelo erro que lhe fora atribuído. Nessas circunstâncias arrastadas, segundo as quais não são cicatrizadas as feridas e sanadas as dores emocionais, a continuidade na prestação de serviço pelo profissional poderá proporcionar aumento de risco ao paciente e familiares. Enfim, nesse sistema tóxico, não é apenas o paciente adoecido, mas também o profissional, que precisa se reerguer, custe o que custar, para cuidar de outro doente.
Por esse motivo, diante dessa perspectiva e dos exemplos concretos apontados, é injusto e irracional culpar moralmente quem comete erro na tentativa de fazer o melhor, principalmente quando a consequência se deriva de um contexto muito maior e complexo, que envolve toda uma engrenagem delineada para produzir e correr riscos de produzir os seus próprios resultados.
Importante frisar que toda a atividade de assistência ao paciente guarda um risco intrínseco – e não absoluto – e por isso é necessário estabelecer estratégias e meios hábeis para reduzir a um mínimo aceitável a probabilidade de dano desnecessário associado ao cuidado em saúde . Nessa vertente, pode ser necessária a contínua reelaboração e aprimoramento racional do processos, por meio estabelecimento de anteparos e barreiras na cadeia de eventos, a se impedir a concretização de possíveis falhas na assistência. É de bom alvitre que sejam projetados sistemas que concebam anteparos de proteção, manutenção de vigilância nos processos de trabalho, protocolos de segurança, além de constantes treinamentos dos colaboradores com metodologia que preveja estratégias de aprendizagem adequadas para esse fim.
Somente assim, será estabelecida a cultura e um clima de segurança, que deverão confluir para um conjunto de valores, competências e padrões de comportamentos individuais e das equipes, e que congreguem a responsabilidade pela proteção dos pacientes e familiares, além dos demais envolvidos no conjunto de atos relacionados à prática na Saúde. Nesse sentido, devem ser encorajadas a identificação, notificação e resolução dos problemas relacionados à segurança, promovendo-se, a partir dos eventos, o aprendizado conjunto da organização para a manutenção efetiva da incolumidade do atendimento.
Um processo efetivamente direcionado para a prevenção de erros – e não um mero faz de conta – deve partir de uma perspectiva multidimensional e se moldar com uma infraestrutura adequada de informações para embasar um modelo efetivo de gerenciamento de riscos. É indispensável o espaço para a participação ativa do paciente que, por ser o centro do cuidado, deve constantemente receber informações sobre os procedimentos realizados, medicamentos ministrados e consequências dos atos como forma de contribuir para a prevenção das possíveis falhas da assistência. “Nada sobre mim sem mim.”
Dentro espectro da Segurança do Paciente, a concepção da Slow Medicine não se limita apenas à atuação precípua do profissional para com o paciente, mas também trata da interação com o sistema de saúde. Considera que o serviço pode e deve ser estruturado com os valores trazidos pela filosofia, que dispõe no oitavo princípio “Segurança em primeiro lugar”.
A partir do momento em que se internaliza a cultura da segurança e não uma simplista cultura punitiva, agregam-se todos os atores da rede de atendimento de forma harmônica. Consequentemente, são reduzidos os riscos e, automaticamente, é mitigada a possibilidade de erro, chegando-se efetivamente a um serviço concretamente harmônico e humanizado, que abraça sem distinção a todos os envolvidos, além de ser sustentável, com o uso parcimonioso da tecnologia e sem o desperdício de recursos.
Deixaria, então, o Dia Nacional da Segurança do Paciente – data destinada para conscientizar profissionais de saúde, gestores, órgãos governamentais, pacientes sobre a importância da adoção de práticas de segurança dentro dos serviços de saúde – de ser uma ideação de um 1º de abril, para se tornar uma efetiva realidade.
Lívia Callegari: Sou advogada inscrita no Brasil e em Portugal, com atuação na área do Direito Médico. Fiz especialização em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP. Sou pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Sempre busco reavaliar os meus valores e tomar contato com outras perspectivas. Gosto de viajar e tomar contato com outras culturas e filosofias de vida. Tenho como base a minha família, amigos, livros e artes. Aprecio o cair da tarde. Gosto do silêncio da noite, pela inspiração e a reconexão que me proporciona.
Referências Bibliográficas
2. Holden, J., & Card, A. J. (2019). Patient safety professionals as the third victims of adverse events. Journal of Patient Safety and Risk Management, 251604351985091. doi:10.1177/2516043519850914
3. Wu AW. Medical error: the second victim. The doctor who makes the mistake needs help too. BMJ. 2000;320(7237):726-7.
4. Pedreira MLG, Harada MJCS. Aprendendo com os erros in Harada MJCS et al O erro Humano e a Segurança do Paciente, São Paulo: Editora Atheneu, 2006
5. Callegari, LA. Errar É Humano: Mais Humano Ainda É Atribuir O Erro Aos Outros https://slowmedicine.com.br/errar-e-humano-mais-humano-ainda-e-atribuir-o-erro-aos-outros/
6. World Health Organization: World Alliance for Patient Safety, Taxonomy: The Conceptual Framework for the International Classification for Patient Safety: final technical report. Genebra; 2009.
7. Pedreira MLG, Harada MJCS. Aprendendo com os erros in Harada MJCS et al O erro Humano e a Segurança do Paciente, São Paulo: Editora Atheneu, 2006
8. Gerteis M, Edgman-Levitan S, Daley J, Delbanco T. Through the Patient’s Eyes: Understanding and Promoting Patient-Centered Care. San Francisco: Jossey-Bass, 1993.
9. 1 de abril: Dia Nacional da Segurança do Paciente, Poqualis, disponível em https://proqualis.net/noticias/1-de-abril-dia-nacional-da-seguran%C3%A7a-do-paciente#:~:text=Para%20conscientizar%20profissionais%20de%20sa%C3%BAde,Nacional%20da%20Seguran%C3%A7a%20do%20Paciente.
Que belo passeio pela Segurança do Paciente e a nossa história equivocadamente punitiva no trato deste tema tão sensível quanto frequente.
Sem mudanças nessa cultura pouco avanço teremos em evitar danos e perdas para pacientes e profissionais.
Excelente, profundo, tocante e bem escrito texto. “Nada sobre mim sem mim”!
Parabéns` a autora e a Slowmedicine!
Excelente!
A Cultura da Segurança é algo a ser construída por todos nós, com processos bem desenhados, profissionais bem treinados e responsabilidade com os erros que, devem ser admitidos sem o viés de culpabilidade que normalmente atribuímos aos profissionais. A cultura da segurança enxerga no erro declarado uma oportunidade de rever e melhorar os processos, todos eles.