Slow Medical Education: a leitura e a escrita como forma de despertar para a prática médica mais reflexiva

maio 28, 2018
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Por Jaqueline Doring Rodrigues:

Certa vez ouvi a frase “ensinar é sempre ensinar a viver”, ou seja, instruir e educar enquanto houver o que se aprender. Partindo do pressuposto que estamos em constante crescimento e que o processo de educação não se limita apenas ao ensino básico, entende-se que durante a graduação o ensinar a viver deve-se manter ativo e altivo.  Sendo assim, todos aqueles que participam do processo educacional necessitam, no mínimo, compartilhar da responsabilidade de agir com coerência e princípios.

A graduação médica no Brasil tem duração de 6 anos, se acrescentarmos o período de residência médica atribuiremos em média mais 4 anos, ou seja, são 10 anos de um processo educacional em que reduzimos a grade curricular em matérias estritamente voltadas às ciências básicas e às especialidades clínicas.  Um tempo precioso que poderíamos destinar para uma formação integral também voltada para a estruturação de valores e base moral, os quais sustentariam com mais solidez os ensinamentos.

Na antiguidade, a medicina não era uma ciência separada das outras. Para entenderem desta arte usavam de expertises da astronomia, da química, da matemática e pautavam-se, principalmente, nos valores éticos e morais. Um médico era antes de tudo um filósofo, sendo assim, estavam despertos às leis da natureza e conheciam mais profundamente o ser humano. Estavam atentos às queixas, às alterações corporais, aos fenômenos naturais, às propriedades curativas das plantas e principalmente, utilizavam da contemplação para obter os ensinamentos.  A falta de pressa nunca foi motivo para não haver ânimo para o aperfeiçoamento. O pensamento reflexivo sempre esteve presente e considerado matéria prima para os grandes feitos e o avanço tecnológico e surpreendeu-nos com a rapidez e o volume de informações que temos acesso hoje. Essa mudança gerou uma ciência unificada – distante da visão antiga em que o ser humano estava intimamente ligado à natureza- em que o homem tornou-se soberano e mecanizado.

Nesse contexto, o currículo médico da graduação na maioria das universidades possui pouco espaço para questões filosóficas ou que exijam um pouco de tempo para uma discussão mais profunda. E foi partindo dessa necessidade que Wear et al publicou na Academic Medicine Journal em novembro de 2015 o artigo intitulado “Slow Medical Education”.  Traz as bases do fundamento do movimento da Medicina Sem Pressa (Slow Medicine) para orientar e complementar a educação, enfatizando o valor da reflexão nos cuidados clínicos. Ainda, aborda a importância de estruturar o currículo da Medicina de forma com que contemple o processo de reflexão, diálogo, apreciação e compreensão humana. Para que assim possamos ter a possibilidade de que o alunos incorporem estas práticas nas suas vivências médicas.

Segundo o artigo, a educação médica não foi poupada da tentativa de racionalização, tentativas essas que valorizam e recompensam a velocidade, a economia, a eficiência e os resultados. Levando em consideração que o esforço é somente  recompensado, verdadeiramente, através da conexão com o paciente, das virtudes da compaixão e do respeito, a educação médica oferece breves espaços para os alunos com profundas considerações nesses valores. Segue argumentando que essa tendência racionalizada é impulsionada pelo volume de trabalho destinado aos residentes e pelas crescentes restrições sobre o tempo que eles tem que realizar o trabalho, valorizando a eficiência pelo custo de ensinar e aprender.  Ainda, o atual foco em competências exacerba essa tendência, sendo necessário mudanças no treinamento e na educação para se obter resultados.  No formato que temos, a reflexão sobre a prática clínica não possui espaço e fica destinada a ser realizada após o término do trabalho diário, enquanto se sabe que o ideal é utilizarmos de curtos intervalos de tempo na prática diária no ensejo destas construções filosóficas.

A palavra educação provém do latim Educare que deriva do prefixo ex que significa “fora” e  ducere que tem o significado de “guiar”.  Ou seja, “conduzir para fora”. O educador precisa usar de si próprio como um laboratório daquilo que irá ensinar.  Senão bastaria ler a teoria em livros ao invés de vivenciar as experiências. O aluno precisa estar aberto para as sutis percepções que se consolidam as virtudes. Para isso, precisa absorver os ensinamentos e desenvolver competências através de um processo profundo e lento.

Há uma preocupação cada vez maior com o mundo da leitura atual em que diversos chamados rápidos – tweets, e-mails, mensagens, alertas –  fragmentam o conteúdo ao invés do engajamento total que almejamos na leitura.  Isso nos torna muito bons em coletar uma ampla variedade de informações factuais, porém gradualmente esquecemos de sentar, contemplar e associar os fatos uns com os outros. Os autores chamam isso de qualidade de staccato, ou seja, uma forma de nos informarmos pulando de um assunto ao outro sem dar continuidade a nenhum deles.

John Miedema, citado no artigo, propõe a leitura de livros de não ficção para melhor entender os fatos e livros de ficção como forma de ativar a imaginação lúdica desenvolvendo a visão de novos caminhos, novas maneiras de solucionar os problemas. As leituras sem pressa exercitam nossa imaginação para um desenvolvimento interior,  que caracterizam nossas estruturas psicológicas.

Uma bela explicação sobre a relevância das leituras no processo educacional médico foi retratada no texto por Christine Rosen: “Nos livros você aceita a condição do autor ter autoridade para contar a história, entra no mundo dos termos dele e assim, afasta-se de si mesmo, tornando-se mais aberto às experiências dos outros e aberto à noção de que nem sempre se está no controle. No processo você cria empatia com os personagens e, muitas vezes, pode ver de forma clara as verdades duradouras da natureza humana.”

Nesse contexto, a literatura e os métodos literários podem ensinar os estudantes médicos como ouvirem mais profundamente as histórias dos pacientes. Alguns dos mais consagrados teóricos do campo da literatura e da medicina defendem que uma das fontes mais ricas de conhecimento sobre a experiência humana na doença é a literatura.

O artigo aborda o fato de que tais leituras na educação médica são um meio de aprofundar e ampliar a qualidade de atenção dos alunos aos pacientes, bem como enriquecer suas percepções frente as realidades, como o mistério inerente nas questões do viver e do morrer.

Importante ressaltar que não se trata de enaltecer a Medicina Sem Pressa como forma de reflexões individualizadas em detrimento das condutas rápidas e protocoladas. Para doenças que surgem repentinamente, como apendicite, infarto agudo do miocárdio, acidentes de carro, são bem vindas as ações rápidas e assertivas. Porém, doenças crônicas são melhor abordadas com condutas mais profundamente discutidas e muitas vezes necessitando de mais tempo.

Devido ao imenso arsenal de informações que temos dos pacientes através dos sistemas de informação, despende-se uma boa parte do tempo alimentando-se essas plataformas. Ainda, as discussões médicas muitas vezes realizadas através dos “rounds” em uma sala, ou corredor, fizeram com que se utilizasse um tempo significativo discutindo o quadro clínico do paciente enquanto apenas um membro da equipe pode examiná-lo à beira do leito.

Conforme os autores, a Escola de Medicina e a Residência Médica são centros educacionais que representam alguns dos anos mais exigentes ao que diz respeito ao intelecto, físico e emocional das vidas destes estudantes. Correspondem a um dos períodos de maior desenvolvimento pessoal e de formação de identidade profissional. Muito do aprendizado  que ocorre neste período não é formal, e sim, ocorre através da interação com os pacientes, colegas e supervisores. Lições e percepções derivados desse período tocam o nosso “eu” interior, tornam-se parte do conhecimento tácito e faz com que “habitemos dentro de nós” novamente. É essa “interiorização” que confere poder ao que está oculto no currículo e fornece base pessoal para as memórias ao longo da vida, pontos de vista sobre si mesmo, sobre os pacientes e sobre a medicina.

Uma atividade relacionada a esta busca, sugerida pelo artigo, é exercer a escrita. Quando escrevemos iniciamos uma conexão pessoal com nossas intuições,  nossos valores, crenças, bem como treinamos nossa imaginação. Força-nos a ter idéias, pensamentos, sentimentos e relembra-nos de fatos passados, significando-os e ampliando nossa perspectiva com visões novas e diferentes caminhos. A escrita interrompe a automaticidade dos pensamentos, sensibiliza nosso pensamento crítico e sendo assim, torna-se uma ferramenta útil para também nos preparar para as adversidades diárias.

O interessante é que as discussões em pequenos grupos entre os alunos e seus mentores sirvam como um espaço para uma exploração reflexiva, com perguntas e sentimentos como desconforto e ambivalência. Estes momentos devem ser criados de uma forma muito intencional: mesmo na enfermaria lotada, breves períodos de tempo podem ser levados ao diálogo sobre incidentes críticos, encontros com pacientes, desafios éticos, e na apreciação de momentos que agregam o lado humano dos médicos e do ato de cuidar. Abigail Zuger citada no artigo, sabiamente lembra: “ – Quando você apressa, você tem exatamente os problemas que confundem todos nós: miséria do consumidor e erros médicos em abundância.”

Saber fazer uma ponte entre os conceitos teóricos e as situações concretas de vida com clareza e sensibilidade é o objetivo do movimento “slow” na medicina.  Nas palavras de Platão: ” O conhecimento não é mais que uma forma de recordação.” Ou seja, toda pessoa possui dentro de si a condição humana.  Portanto, a educação com bases morais filosóficas atrelada a Medicina Sem Pressa mais retira do que acrescenta. Retira-se do egoísmo, da estagnação, dos excessos de opiniões e da falta de raciocínio para que se possa aflorar os verdadeiros potenciais humanos, tão escassos quando agimos com excessiva racionalidade e pouca reflexão.

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Jaqueline Doring Rodrigues, médica geriatra que ensaia escritos e poesia como forma de manter a conexão interna e refletir a beleza do mundo.

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