Por Vera Bifulco:
O século XX testemunhou o extraordinário crescimento das populações idosas em todo o mundo, tendência que deve se manter no século XXI. Em contrapartida, o processo de morrer está isolado da vida cotidiana numa medida maior que antigamente. Efetivamente, a experiência de envelhecer e morrer que era organizada e vivida como uma tradição e entendida como fato natural pelas pessoas, veio sofrendo uma progressiva desvalorização e passou a ser vista com indiferença nas sociedades que se sucederam. Essa indiferença, no entanto, nem de longe é compatível com as necessidades naturais humanas. O que assistimos hoje nos hospitais e consultórios são pacientes e familiares ávidos por compreender o processo e participar dele mais ativamente, e que muitas vezes encontram profissionais ainda pouco preparados para lidar com isso. Conversar com os pacientes, escutar as suas necessidades, acompanhá-los no processo de morrer tem sido uma preocupação constante nos dias atuais. Mais que isso: a revisão de conceitos e práticas e o aprofundamento da reflexão envolvendo o tema da morte no processo vital, das situações-limite desencadeadas pelas doenças e da vivência do processo ativo de morte e do luto, tornou-se uma necessidade vital.
A tecnologia médica moderna, desenhada para recuperar a saúde dos pacientes é importante, porém não exclusiva, dentro do contexto das terapêuticas disponíveis. Esta se torna incompleta se não houver um olhar compassivo, especialmente quando as chances de cura se mostram limitadas. E que aqui não se confunda compaixão com caridade: enquanto a segunda é uma atitude bondosa pela qual podemos optar ou não, a primeira é uma poderosa ferramenta de trabalho para os profissionais da saúde que permite maior acurácia em seus diagnósticos, maior eficiência em suas estratégias terapêuticas e, consequentemente, resultados mais satisfatórios. Ignorar o potencial dos olhares mais compassivos é um erro que pode custar o desmantelamento das relações profissionais.
A supremacia da tecnologia sobre o humanismo na medicina atual, dissipa a separação entre “o que se pode fazer” e “o que se deve fazer”. Somente o diálogo franco entre o profissional de saúde, pacientes e familiares, respeitando e compreendendo suas singularidades, pode reparar essa separação entre o que se “pode” e o que se “deve”, colocando em seu lugar o “melhor” a ser feito.
Os avanços da medicina tornaram possível a detecção precoce de várias doenças, aumentando a chance de cura de patologias outrora fatais. A sobrevida de pacientes com enfermidades crônicas alargou-se consideravelmente e o resultado é inquestionável: vive-se mais, mesmo na presença de doenças potencialmente graves. Com a maior expectativa média de vida, é preciso gerenciar as doenças crônicas com maior destreza, tentando oferecer e não subtrair qualidade de vida ao paciente. A doença, o envelhecimento e a morte não são acidentes, são características de nossa condição de seres vivos e estão intrínsecas em nossa biologia.
Até o século XIX, a medicina paliativa era a única que se tinha conhecimento. Os médicos não tinham recursos e as drogas existentes eram quase todas extraídas de ervas medicinais, cujos resultados eram muito mais intuitivos do que científicos. O tratamento era dirigido ao controle dos sintomas. As causas das doenças eram pouco conhecidas e a cura muito rara, mas o relacionamento médico/paciente/família era profundo e intenso. A Medicina Paliativa pode, portanto, ser considerada uma prática bem antiga. O significado da palavra pallium, de origem romana, está relacionado com o casaco de lã que era usado pelos pastores para enfrentar o clima adverso. Portanto, está relacionado com cuidado e proteção; trata-se de evitar a distanásia e o prolongamento da vida a qualquer custo, favorecendo-se todo e qualquer tratamento que promova qualidade de vida e alívio do sofrimento até o momento da morte.
De todos os seres vivos o homem é o mais complexo, pois é formado por uma tríade, o corpo, a mente e o espírito e é condicionado pelo ambiente em que vive. O inter-relacionamento desses fatores é de tal ordem que o mau funcionamento de qualquer uma destas instâncias gera uma perturbação, alterando em menor ou maior grau as outras esferas da vida humana. Se prestarmos excessiva atenção à doença e negligenciarmos o doente e seu universo biopsicossocial, corremos o risco de ignorar a pessoa doente e tratar somente resultados de exames. O desenlace final pode ser discutível, pois quando a medicina “curativa” esgota seus recursos, esse mesmo doente tende a ser relegado, uma vez que sua doença já não é tão instigante, e o médico sente-se impotente frente a uma situação para a qual ele não foi treinado a manejar. A angústia para os médicos é grande: não sabemos mais o que fazer com aquele corpo tão doente, mas a pessoa que o habita insiste em não morrer…
É neste momento que os cuidados paliativos se impõem; é justamente quando as perspectivas de cura são restritas que muito se pode fazer em termos de cuidado, criando um verdadeiro ambiente de acolhimento, onde a figura principal deixa de ser a doença e passa a ser o doente. Todas as doenças crônicas que tendem a evoluir para uma situação de terminalidade podem se beneficiar do olhar da Medicina Paliativa, desde momentos bem anteriores à cessação dos esforços terapêuticos voltados ao prolongamento da vida. A premissa essencial aqui é que não existe fracasso na morte: ela é e sempre foi o resultado inevitável do nascer, e chega a todos, cedo ou tarde, independente do tratamento médico oferecido. Há um momento na evolução de algumas doenças no qual os tratamentos que visam sua cura ou reversão se mostram fúteis. De fato, uma vez atingido este limite, os médicos e demais profissionais de saúde terão que reconhecer no paciente uma limitação inerente à ciência médica: nossa condição de seres finitos e mortais. Uma das principais atividades da Medicina Paliativa é prestar assistência aos pacientes e familiares quando essa limitação se materializa diante de seus olhos, mas sua eficácia aumenta exponencialmente quando sua atuação junto ao paciente se inicia bem antes do esgotamento das opções terapêuticas. Trata-se de criar (e cultivar) os vínculos para que a compreensão do processo final da vida possa ocorrer de forma individualizada, transfixada pelos valores e expectativas daquela pessoa, e não em protocolos médicos técnicos e generalistas.
Quanto melhor conhecemos nossos pacientes, mais sólidos são nossos vínculos com eles, culminando em uma melhor qualidade de cuidados. Os Cuidados Paliativos investem na melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares, sem esquecer que qualidade de vida é aquilo que o paciente diz que é. O vínculo é a ferramenta que facilita a busca por alternativas que minimizem os sintomas de desconforto, sejam eles causados pela doença ou pelo tratamento. Esta abordagem possibilita que duas dimensões da prática médica – o conhecimento profundo do paciente e a habilidade técnica – sejam colocadas a serviço da pessoa como um todo, com empatia e calor humano.
O antigo aforisma hipocrático mantém sua atualidade: curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre.
Não estamos falando de privar pacientes dos recursos diagnósticos e terapêuticos que a medicina pode oferecer, e a própria definição de Cuidados Paliativos não condiz com esse conceito. Trata-se, isso sim, de utilizar a Ciência de forma ponderada e particularizada, de acordo com a singularidade de cada paciente.
A reflexão que surge frente a esses conceitos é acerca da maneira como a equipe de saúde que atende o paciente lidará com a realidade de uma morte anunciada, mas sem data para acontecer. O ambiente onde se dão os cuidados paliativos é marcado pela diversidade. Seja no consultório privado, no ambulatório público, à beira do leito hospitalar, numa instituição de longa permanência, na casa do paciente ou no hospice, o que chama a atenção é que, paralelamente à corrente majoritária que enaltece os avanços tecnológicos da medicina, avoluma-se o interesse pela humanização dos cuidados à saúde. Cada vez mais a perspectiva dos cuidados paliativos ganha o interesse da mídia, espaços nas redes sociais e penetra nas instituições de assistência médica e no ambiente acadêmico. A formação em cuidados paliativos, cursos e eventos científicos são cada vez mais freqüentes e tem suas vagas preenchidas rapidamente. A lacuna que se formou vai sendo gradualmente preenchida, e os resultados dessas mudanças nos paradigmas médicos provavelmente serão revolucionários em termos de satisfação dos pacientes, de suas famílias e, inclusive, dos profissionais da saúde. A Slow Medicine busca alinhar-se a este esforço, como mais uma vertente da preocupação humanística na prática médica, do cuidado centrado no paciente.
Slow Medicine e Cuidados Paliativos: uma confluência de valores
Marco Bobbio, em seu livro O Doente Imaginado, cita Sir William Osler, considerado um dos pais da medicina moderna. Este afirmou que “é mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu um paciente”. Essa afirmação sublinha tudo o que se apregoa em cuidados paliativos, onde o foco não é a doença a ser curada mas o doente a ser cuidado. Bobbio adverte que “às vezes, desejamos que nossa própria vida não dependa de uma luta desenfreada até o fim, mesmo quando as cartas são perdedoras. Mesmo quando ao doente é atribuída a horrível designação “paciente terminal” (terminais todos nós somos), ele não deve ser abandonado somente porque não estão disponíveis tratamentos com intenção curativa. Os médicos e toda a equipe que o assiste devem empenhar-se a recorrer a todos os meios capazes de reduzir seu sofrimento e evitar tratamentos inúteis”. Transcendemos a tecnologia médica para ascendermos em direção à uma medicina mais humanista, que questiona a obstinação terapêutica e coloca a bioética como o marco filosófico a ser perseguido.
As interseções entre os cuidados paliativos e a Medicina sem Pressa são múltiplas, como podemos observar em alguns dos livros referenciais do Movimento. My mother Your mother, de Dennis McCullough, segundo as palavras do próprio autor, não é um livro sobre cuidados paliativos, pois abarca os últimos anos de vida da pessoa e esmiúça o envelhecimento e o quase inexorável surgimento e progressão da dependência. Mas 3 capítulos do livro abordam especificamente o final da vida, a morte e o luto. Knocking on heaven’s door, de Katy Butler, aprofunda a reflexão sobre a importância de abordagens alternativas aos cuidados usuais, onde prepondera o imperativo tecnológico. Discute a necessidade premente da oferta de informações confiáveis para os familiares de pacientes portadores de doenças em situação de terminalidade, para que possam ponderar suas decisões e buscar os recursos adequados que permitam a melhor qualidade de vida possível para pacientes e familiares, além de segurança e conforto espiritual. E certamente, dignificando e (re) sacralizando o processo de morte. Bernard Lown, em a A Arte Perdida de Curar, no capítulo “Mortos e moribundos”, faz uma reflexão realista sobre o processo de morrer, lamentando o prolongamento da vida eivado de sofrimento, determinado pela processo de tecnologização do combate à morte que caracterizava o trabalho médico na época da publicação do livro. E afirma que “os médicos, todavia, são experimentados na observação do processo de morte e, na verdade, muitas vezes moldam o ritmo do desenlace final, sejam como principais perpetradores de alguma obscenidade tecnológica, sejam como orquestradores de uma serena partida”.
Portanto, a Medicina Paliativa e a Slow Medicine, percebendo como essenciais o estabelecimento de vínculos sólidos, o tempo para o diálogo e para a comunicação, o uso adequado dos recursos tecnológicos, a importância do delicado instrumento de decisão que é a reflexão, a individualização do cuidado e o trabalho em equipe, palmilham o mesmo caminho.
Dr. Derek Doyle, fundador e primeiro presidente da International Association for Hospice & Palliative Care escreveu em seu ensaio Até logo: “Eu quero que as pessoas vejam que o que nós fazemos em cuidados paliativos é mais que o controle da dor e sintomas, por si só de extrema importância. Eu quero que eles reconheçam, e suspeito que todos também o queiram, que o cuidado paliativo se preocupe também com três coisas: a qualidade de vida, o valor da vida e o significado da vida”.
Finalizamos com as palavras de Gustavo de Simone, diretor do Instituto Pallium, em Buenos Aires e discípulo de Cicely Saunders: “cuidados paliativos não são, nada mais, nada menos, que a medicina bem praticada, resgate que todo profissional de saúde procura fazer de sua vocação inicial. Tanto médicos, como psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e quaisquer outros profissionais de saúde, geralmente, escolheram suas profissões imbuídos pela missão de cuidar.” Nada mais coerente com a pretensão filosófica fundamental da Medicina sem Pressa.
A elaboração deste texto contou com a contribuição da Dra. Ana Lucia Coradazzi, oncologista e do Dr. José Carlos Aquino de Campos Velho, geriatra.
Sou psicóloga e coordeno o serviço de Psico-oncologia do Instituto Paulista de Cancerologia (IPC). Acompanhei o declínio e a morte de minha mãe, experiência que trouxe um profundo impacto na minha vida. Especialista em Gerontologia e Psico-oncologia, fiz mestrado em Cuidados Paliativos na Unifesp, onde tive oportunidade de conviver com o Professor Marco Tullio de Assis Figueiredo no ambulatório de Cuidados Paliativos, fato marcante em minha trajetória profissional. Sou coautora de 2 livros, Câncer Uma Visão Multiprofissional e Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde. Tenho 3 filhas e um neto maravilhoso, gosto de viajar, de música, cinema e livros. Como legado, gostaria de deixar o meu sorriso e meu amor pela vida.