Por Ana Lúcia Coradazzi:
Não faz muito tempo, assisti a uma palestra do colega José Carlos A. C. Velho com o inusitado título “Slow Medicine e Espiritualidade”. Estávamos numa reunião de um grupo de estudos sobre a espiritualidade, formado por profissionais da saúde de várias áreas, e chamava a atenção o interesse das pessoas sobre um aspecto humano pouco explorado dentro da área da saúde: o sagrado em cada um de nós. Durante a palestra, comecei a pensar em pontos básicos do tema, como o que vem a ser a espiritualidade em si, por que profissionais da saúde deveriam se preocupar mais com ela e, claro, o que a Slow Medicine tem a ver com isso tudo. Surpreendentemente, as respostas surgiram quase que de imediato.
A espiritualidade, ao contrário do que muitos pensam, não está necessariamente ligada à religião, embora ambas caminhem com frequência de mãos dadas. A primeira, a meu ver, engloba a segunda, não se restringindo a ela. A espiritualidade trata do que há de mais importante e sagrado em cada um de nós: o significado que atribuímos às nossas existências. É a crença de que existe um significado nobre que nos mobiliza, nos impele a agirmos da melhor forma possível e insere em nossos dias o desejo de nos tornarmos pessoas melhores. A espiritualidade nos permite lidar com a adversidade (a nossa e a do outro) de forma mais resiliente e sensata, porque parte da compreensão de que há um motivo maior (seja ele qual for) para isso tudo. As religiões nos descrevem esses motivos de forma muito clara e objetiva: desígnios dos deuses, imortalidade da alma, karmas, e tantas outras crenças que determinam quais os passos a seguir para nos tornarmos seres mais evoluídos e, quem sabe, ganharmos o Reino dos Céus. As religiões nos transformam de fora para dentro, tornando nossas vidas mais dignas e significativas. Mas a espiritualidade vai mais além: ela nos transforma de dentro para fora, num processo absolutamente individual e heterogêneo.
É justamente essa característica que torna a espiritualidade tão encantadora: mesmo sem nenhuma regra registrada em livros ou manuscritos antigos, cada um de nós consegue encontrar seu caminho. A religião é um deles, na qual a espiritualidade é vista de forma “vertical”, associada a algo divino que está acima de nós. Mas há outros caminhos, menos “verticais”, que nos levam à plenitude enquanto seres humanos. A espiritualidade “horizontal” pode ser desenvolvida no nosso dia-a-dia, nos relacionamentos que temos, nas atitudes que praticamos, na nossa forma de contribuir com o mundo e com as pessoas que nele habitam. Quando enxergamos significado no que fazemos, nossos atos se tornam sagrados para nós.
É esse o ponto em que espiritualidade e Slow Medicine se encontram. O exercício da Medicina é, em sua essência, uma oportunidade valiosa para nossa evolução como seres humanos. Ela nos permite entrar em contato com o sofrimento extremo, assim como com a imensa capacidade de superação humana. Enxergamos o que há de melhor (e de pior) nos seres humanos, enquanto os auxiliamos a lidar com as situações desafiadoras que envolvem sua saúde. Caminhamos lado a lado com a dor, com a limitação, com o desequilíbrio, com a perda. Aprendemos a enxergar significado onde parece só haver escuridão. Mas, para extrair o que a Medicina pode nos trazer de melhor, é preciso exercê-la em seu formato Slow. É preciso tempo para detectar a beleza por trás do sofrimento, e ainda mais tempo para alcançarmos nosso objetivo principal: auxiliar os pacientes a encontrar o melhor caminho através do conhecimento que temos sobre suas condições de saúde. É preciso, ainda, exercer nossa profissão com sensatez e parcimônia, evitando a armadilha de impor aos outros estratégias que não os beneficiem, e roubando deles a possibilidade de viverem de forma mais compatível com suas próprias crenças e valores.
Os princípios slow não são benéficos apenas para os pacientes, que são ouvidos, compreendidos, respeitados e tratados como parceiros por seus médicos. A Slow Medicine proporciona ao médico uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento da sua própria espiritualidade. Ela permite que enxerguemos significado em todo o sacrifício que a formação médica e a rotina diária nos impõem, e nos proporciona a sensação de conexão a algo maior: a Humanidade. É assim que a profissão, tanto quanto a religião ou outros caminhos de busca espiritual, pode nos levar ao nosso objetivo maior na vida: sermos a melhor versão de nós mesmos.
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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.