Por Kazusei Akiyama:
Os pontos que se intercalam.
A primeira vez que um periódico da área médica de língua inglesa chamou a atenção para a Slow Medicine foi em 2008, no Editorial do The Journal of Alternative and Complementary Medicine. Então a Slow Medicine é uma Medicina Complementar e Alternativa (MCA)? A resposta é “não”! Esse editorial apresenta a resenha do livro My Mother, Your Mother; (…) de Dennis McCullough e os princípios da Slow Medicine. Mas não se trata de uma tentativa de incorporar essa modalidade de pensamento entre as MCAs; o que o artigo mostra é que várias idéias advogadas pelo autor do livro são caras às práticas e aos provedores das MCAs. Por exemplo, o investimento de tempo suficiente como instrumento importante do trabalho médico, a validação da relação médico-paciente como aspecto essencial do exercício profissional, o uso racional dos recursos diagnósticos e terapêuticos, a necessidade de se ponderar qual a melhor alternativa de tratamento, levando em consideração sua eficiência, seus custos, e particularmente os possíveis riscos decorrentes de procedimentos terapêuticos mais agressivos e invasivos.
O surgimento da Slow Medicine, bem como o crescente interesse nas MCAs, parecem estar relacionados com o processo de erosão da chamada “biomedicina ocidental” (Western biomedicine). O clamor proposto pela Slow Medicine para a revisão de procedimentos médicos e o advento das MCAs provavelmente se enraízam no distanciamento da medicina convencional dos interesses dos pacientes. Estes buscam um profissional que cuide de sua saúde de forma integral e não somente um médico que trate suas doenças. Quando essa demanda não é atendida pelo médico, ocorre a procura por outra abordagem. Chegou-se a festejar o nascimento de alternativas à medicina, o que, ao meu ver, é um equívoco, pois a medicina é única, é a ciência e a arte de cultivar a saúde das pessoas e de corrigir as causas das doenças. Existem várias maneiras de se chegar a isso, tanto convencionais como alternativas.
Conforme pontua a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), hoje existe uma versão de assistência à saúde denominada Medicina Complementar e Alternativa (MCA). Ela chama a atenção a variadas maneiras de cuidados de saúde que são vinculadas a diferentes povos, havendo tanta diversidade dessas maneiras quanto de etnias e culturas. A OMS a denomina “Medicina Tradicional”; em muitos casos, a MCA é a Medicina Tradicional praticada em seu meio não original. Na literatura médica utiliza-se também o termo medicina não-convencional (unconventional medicine), como contraponto à medicina convencional.
A confusão
Mas, o que vêm a ser as “medicinas alternativas”? Trata-se de diferentes práticas de diagnóstico e de cuidados à saúde que são adotadas em nosso meio, ainda que, em sua maioria, não sejam regulamentadas. Neste texto, vou aplicar o conceito de “medicinas alternativas” àquelas modalidades de assistências que não são ensinadas nas faculdades de medicina. Nesta definição, incluem-se, entre as MCAs, a acupuntura e a homeopatia, ambas reconhecidas como especialidades médicas no Brasil.
A palavra confusão significa equívoco, discórdia, bagunça, falta de clareza, deficiência de método. E a melhor caracterização que podemos atribuir à “medicina alternativa” é, exatamente, “confusão”.
Em termo de denominação, não existe uma definição precisa. Ora é chamada alternativa, ora complementar, ora alternativa e complementar. Em termos de utilidade, não existe um consenso sobre sua eficácia, em quais situações ela pode ser útil e quais são seus mecanismos de ação. Em termos de método, não existe padronização. Em relação a sua efetividade, existem poucas evidências demonstrando ou documentando de forma isenta sua possível ação, seja ela positiva ou negativa. Em termo de prática, não existe uma delimitação clara de quem a aplica e quem a usa; Na verdade conhecemos muito pouco sobre como ela é praticada. Em termos de regulamentação, não existe uma legislação clara e abrangente a respeito. Algumas modalidades têm embasamento racional, outras se colocam no território da curiosidade e da magia.
A despeito desse quadro confuso, a MCA vem recebendo grande atenção por parte dos usuários. Provavelmente um dos maiores motivos é a mudança de paradigmas com relação a própria saúde que vem ocorrendo nos últimos trinta anos. De uma posição mais passiva, de receber um cuidado paternalista, passou-se a ter uma atitude mais ativa, interessada, de compartilhar conhecimento e responsabilidade com o profissional de saúde. O “paciente” tornou-se “cliente”, não raramente “impaciente”. A decisão de um tratamento não é mais exclusiva do médico. Ouvem-se segundas opiniões, e os pacientes procuram alternativas diagnósticas e terapêuticas que façam sentido para si mesmos.
Um pouco de história e denominações ao longo do tempo
Até os anos 60, nos países industrializados ocidentais, a MCA era considerada uma prática restrita a certos grupos sociais. Por exemplo, a pajelança entre os índios e a medicina oriental na comunidade asiática. A sociedade ocidental em geral pouco conhecia ou tinha acesso a tais práticas, que eram, portanto, “desconhecidas”.
Na década de 1960, ocorreram várias movimentos culturais no mundo ocidental, para que fossem adotadas mudanças, em busca de liberdade individual, familiar e social. Seu expoente mais visível foi o movimento “hippie”, comportamento coletivo de contracultura. Em decorrência destes movimentos, ocorreu uma maior aproximação entre diferentes crenças e hábitos de vida, incluindo as religiões, os hábitos alimentares e, também, as práticas de saúde. A sociedade passa, então, a denominá-las como “curiosas”, “exóticas”, “estranhas”.
A década de 70 consolidou esses valores surgidos na década anterior. Houve uma mudança evidente nos costumes, com intensidade maior nas áreas urbanizadas e menor nas áreas rurais.
A situação alterou-se consideravelmente na década de 80, com a aproximação do novo século, da “nova era” (New Age), do “fim do mundo”. As mudanças sociais, incubadas nas décadas anteriores, floresceram. Houve então uma explosão da procura por terapias “alternativas”, quaisquer fossem elas, sérias ou não. Mas de maneira geral, continuavam pouco conhecidas. A denominação mais usada na sociedade era “alternativas”, mas podia se encontrado termos como “naturais”, “contemporâneas”, “energéticas”, “culturais”, “tradicionais”, “terapias da nova era”.
A década de 90 pode ser caracterizada pela difusão desse tipo de prática, com aumento também no número de praticantes. A mídia passou a estimular o interesse pelo assunto que passou a fazer parte do cotidiano das pessoas. Os médicos começaram a estudar com mais profundidade o fenômeno, havendo aumento substancial de trabalhos relacionados à área. O termo mais neutro adotado para esse tipo de prática era o “não-convencional”. Foi também nessa época que surgiu a denominação “complementar”, baseada na noção de uso concomitante, aditivo e não excludente, como poderia insinuar o termo “alternativo”.
Da primeira década do século XXI em diante, pode ser caracterizada pelo crescente interesse da classe médica pelo assunto. Hoje em dia médicos e pacientes veem alguma utilidade na MCA. Surge então a denominação “integrativa”, com propostas de incorporação à medicina convencional.
A integração
No entanto a confusão persiste. Afinal, se é consenso que a utilidade existe, quais das modalidades de MCA proporcionam, de fato, benefício? Como se deve utilizá-las para conseguir estes benefícios? Esta confusão também existe mesmo em práticas mais amplamente aceitas como a acupuntura, existindo várias associações de classe que brigam pela sua regulamentação, sendo um dos temas de maior conflito a definição do perfil do profissional efetivamente habilitado para a sua prática.
Os médicos, como não têm educação formal no assunto, ficam em posição embaraçosa, pois a despeito de serem os profissionais legalmente habilitados e socialmente aceitos para cuidar da saúde das pessoas, em geral têm pouca familiaridade com a “medicina alternativa”. Pela pouca informação confiável de que dispõem, eles tem dificuldade para discriminar qual modalidade de MCA é a mais indicada para aquela situação em particular e quais os possíveis benefícios e eventuais riscos podem proporcionar para a saúde do paciente.
Não faz parte, portanto, da prática médica cotidiana questionar o paciente se ele se utiliza de alguma forma de MCA. E frequentemente o paciente não vê como relevante alertar médico de que a utiliza.
Existem dois grandes grupos de pessoas que tendem a procurar a MCA. O primeiro é integrado por aqueles “que querem” a MCA e o segundo, por aqueles “que dela precisam”. Os primeiros fazem uma opção filosófica. Acreditam que a abordagem convencional não traz benefícios emocionais ou espirituais, e procuram a promoção da saúde de acordo com suas crenças. Os segundos nem sempre possuem uma sinergia emocional ou conhecimentos mais aprofundados. Sua busca se dá por necessidade: nenhum tratamento convencional conhecido aliviou sua condição; as terapias convencionais disponíveis foram exauridas ou não tiveram o efeito desejado e podem, ainda, apresentar efeitos colaterais e riscos significativos.
O usuário mais comum da MCA tem acesso à informação e mantém uma atitude ativa em busca da saúde. Como o médico não é capaz de dar uma orientação com relação ao assunto, o paciente busca outras fontes de informação e passa a fazer uso de várias modalidades de “medicina alternativa”, um cenário onde pouco se conhece sobre a sinergia dessas modalidades. Ao assumir uma posição pessoal e decidida para a sua saúde, o indivíduo passa a arcar com esta responsabilidade. Como nem sempre uma modalidade de MCA é inócua, ele pode estar correndo riscos.
Deve-se citar também os provedores/terapeutas “entusiasmados” ou mesmo “deslumbrados” com a MCA. Estes enxergam na MCA uma panacéia e frequentemente passam a fazer associações arbitrárias e de impacto desconhecido. Partem da premissa de que se A é bom e B também, então A+B é melhor ainda.
Por todas estas razões, creio que a importância de integrar a MCA à convencional, vem dos cenários descritos acima. Lembro que quando se fala em “medicina integrativa” pensa-se mais na incorporação de métodos terapêuticos. Desejo chamar a atenção, entretanto, para a importância da integração de conhecimentos e de métodos que podem auxiliar no processo diagnóstico. Outrossim, ao estudarmos melhor as diferentes opções existentes, poderemos oferecer informações seguras, avaliação de efetividade e mesmo alternativas de abordagem terapêutica, lembrando sempre o impacto positivo da adoção de uma medicina individualizada.
A Slow Medicine, pelas suas características, pode ser um meio de integração entre a medicina convencional e MCA, permitindo que o usuário-paciente passe a dispor de informações mais fidedignas para decidir com mais segurança qual o melhor caminho a tomar. Para os médicos pode representar uma forma de exercer uma medicina melhor, voltada a sua principal razão de ser: o cuidado integral da saúde do paciente.
Bibliografia
1. Ladd Bauer, J. Slow Medicine. Editorial. J Altern Complement Med. 2008; 8:891-2.
2. Kenneth Jones, R. Schism and heresy in the development of orthodox medicine: The threat to medical hegemony. Soc Sci Med. 2004; 58:703-12.
3. Medicina Complementar / Ministério da Saúde (Portaria nº 971, de 03 de maio de 2006)
4. WHO. Traditional medicine strategy 2002-2005. Geneva: WHO; 2002.
Kazusei, gostei muito da sua abordagem à MCA. Sempre pergunto aos meus pacientes, ou eles me perguntam, sobre homeopatia, acupuntura, fitoterapia. Sempre falo que homeopatia é uma especialidade médica, que pode e deve ser utilizada muitas vezes associada à alopatia, sem problemas. Recomendo acupuntura para tratamento de dores agudas e crônicas. Sei que funciona também para sintomas como náuseas causadas por quimioterapia. Quanto a fitoterapia, falo que não tenho amplo conhecimento, mas que o fato de um remédio ser a base de plantas não significa que não tenha efeitos colaterais e tóxicos, vide os casos amplamente relatados na literatura médica de pacientes que apresentam insuficiência hepática e renal após ingestão de chás e medicamentos herbais. Mas eu mesmo prescrevo xarope de guaco e sprays de mel e romã para pacientes com quadros de infecções respiratórias altas, de provável etiologia viral e para os quais não há terapia específica. Mas receio que a classe médica tem tido uma atitude corporativista e de reserva de mercado com relação a acupuntura, por exemplo. Mas também penso que deva haver regulamentação e fiscalização para essas práticas, para evitar que ocorra charlatanismo, ou mesmo que pessoas não habilitadas e sem formação a pratiquem. Por que profissionais de saúde como fisioterapeutas, enfermeiros e outros deveriam ser vedados à prática de acupuntura, como quer regulamentar a Lei do Ato Médico? Qual sua opinião?
Abraços, Marcelo Pedro (cardiologista e clínico geral)
Prezado Marcelo Pedro, muito obrigado pela sua leitura e pelo comentário. Como você colocou, o fato de um produto ser “natural” ou “de plantas” não significa que não tenha efeitos danosos e é um bom exemplo de que o uso de MCA deve ser feito de forma cautelosa. Em particular naquelas práticas pouco estudadas. Existem atos que podem ser prejudiciais ou perigosos para a saúde das pessoas se não forem realizados por médicos, e o diagnóstico nosológico foi regulamentado na Lei do Ato Médico como atividade privativa do médico. A acupuntura é uma técnica e instrumento terapêutico de medicinas tradicionais do oriente. Sua incorporação e regulamentação no Ocidente não tem sido feita de uma maneira uniforme. A Slow Medicine salienta a importância da abordagem multidisciplinar na assistência à saúde, sempre que possível fundamentada em evidências científicas e buscando constantemente o cuidado de qualidade e individualizado.
O comentário que se segue é o conteúdo de um email que recebi do Dr. Ladd Bauer, organizador do site http://www.slowmedicine.info, acerca do texto do Dr. Kazusei. Ele me autorizou que o publicasse como um comentário ao texto, traduzido por mim do inglês. “Dennis (McCullough, autor de My mother Your mother) começava a ver este editorial como uma pequena caixa de jóias recheada de idéias, algumas delas nunca comentadas em outros lugares. Eu o vejo como o começo imperfeito de um meme* se que se enraíza para transcender a erosão do sentido de termos como medicina “alternativa”, “complementar” e “integrativa”, hoje por vezes usados pejorativamente, em relação à “velha e boa medicina alternativa” . Talvez isso possa acontecer com a Slow Medicine com o passar do tempo, mas devemos fazer o nosso melhor para mantê-la como um conceito aberto, como um grande guarda-chuvas que cobre todas as formas de medicina permeadas de boas ideias de como cuidar dos pacientes. Um meme, não um plano ou um conjunto de técnicas. Uma reconstrução cultural de valores. Dennis fez um excelente trabalho de plantar esta semente na medicina geriátrica padrão. Nós dois realmente víamos apenas uma única medicina – a medicina que funciona da maneira mais saudável.” (*) a expressão memes de internet é utilizada para caracterizar uma ideia ou conceito, que se difunde através da rede rapidamente.