Slow Medicine & Fast Medicine: de mãos dadas

janeiro 13, 2019
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Por Ana Lucia Coradazzi:

            Quando JCV, 61 anos, hipertenso mal controlado e obeso, chegou ao Pronto-Socorro queixando-se de dor “queimada” e intensa no tórax, há cerca de 50 minutos, irradiada para seu braço esquerdo e associada a sudorese fria, mal teve tempo de raciocinar. Em poucos minutos, o médico de plantão já tinha solicitado exames de sangue e um eletrocardiograma, que mostrou um supra-desnivelamento no segmento ST, confirmando a suspeita de um infarto agudo do miocárdio. Em menos de uma hora desde sua chegada ao hospital, JCV iniciou a terapia fibrinolítica que permitiria a restauração da circulação coronariana e minimizaria as sequelas miocárdicas do infarto, permitindo uma vida plena e produtiva após um evento que poderia ter lhe tirado a vida.

            Situações como a de JCV permitem que todos – pacientes, familiares e equipes de saúde – assistam, assombrados, aos resultados quase que miraculosos da moderna Fast Medicine. A tecnologia e a implantação rigorosa de diretrizes para o manejo desses casos vêm salvando milhares de vidas, permitindo que os pacientes não apenas retornem para casa vivos, como também vivam plenamente após tais eventos graves. Os ganhos foram tamanhos que passou a ser difícil – para não dizer impossível – que alguém defenda a ideia de usar menos exames, procedimentos e tratamentos em nossa prática médica, como o movimento Slow Medicine propõe. Em meio a tantos avanços e a resultados tão surpreendentes, chega a ser uma heresia falar em “desacelerar”, em usar melhor o tempo junto aos pacientes, em abrir mão de exames e procedimentos em favor de uma história clínica e exame físico primorosos. Pode parecer uma ideia um tanto romântica ou até irresponsável, e realmente é, caso o contexto seja como o de JCV no Pronto-Socorro, com seus sinais clínicos típicos de infarto agudo e a infinidade de dados comprovando os benefícios de se agir rápido nesse contexto. A questão aqui é justamente essa: o tal do contexto.

            A ideia de que adotar uma postura “slow” implica em ser contrário à medicina moderna, infelizmente, é uma deturpação comum de seus princípios. A Slow Medicine nada tem de retrógrada e apoia firmemente a utilização das novas tecnologias. O desafio proposto é utilizá-las em quem realmente se beneficiará delas, em vez de distribuir agentes fibrinolíticos, ventiladores mecânicos, antibióticos de amplo espectro ou quimioterápicos de última geração a qualquer paciente que, por azar, nos caia nas mãos com algum sintoma que possa se enquadrar em alguma diretriz de conduta. A proposta é sermos mais criteriosos e responsáveis com nossos diagnósticos e com nossas estratégias de tratamento, evitando o terrível círculo vicioso que se inicia com a solicitação de exames que nada têm a ver com os sintomas que levaram o paciente a nos procurar, e termina com a avaliação de 8 especialistas, com 12 diagnósticos diferentes, e com a prescrição de 22 medicações distintas (cujas possíveis interações medicamentosas ninguém viu). O paciente? Não, não melhorou do seu sintoma inicial…

            O alerta da Slow Medicine não é contra os avanços da medicina, e sim contra os obstáculos a uma medicina de boa qualidade: a preguiça, o descuido, o medo de processos judiciais, a falta de tempo, a negligência e, claro, a falta de bom senso. O alerta é para nos relembrar de que utilizar “tudo” para “todos” é, no mínimo, ingênuo. O pior: pode ser deletério e até cruel.

            Primeiro ponto: nenhuma tecnologia de ponta resolve um problema se o diagnóstico do problema estiver errado (e, pode acreditar, as chances de um erro diagnóstico aumentam exponencialmente com a diminuição do tempo dedicado à história médica e ao exame físico). Minimizar a importância do processo que nos leva a um diagnóstico acurado é desperdiçar um tempo valioso (nosso e dos pacientes) e desvalorizar os nossos muitos anos dedicados à formação médica. É o caminho mais curto para prescrevermos apenas um protetor gástrico para aquele paciente que está infartando, um anti-espasmódico para a moça com apendicite aguda ou um antialérgico para a criança com escabiose. Segundo ponto: solicitar um número infinito de exames e avaliações de especialistas, acumular receitas de medicações e colecionar indicações de procedimentos pode aliviar nossa consciência, mas não nos transforma em médicos melhores. Isso faz apenas com que nossos pacientes sejam reduzidos a “usuários do sistema de saúde”, e que nós médicos restrinjamos (muito) nossa capacidade de ajudá-los. Já há literatura mais que suficiente comprovando os resultados inferiores da medicina praticada sem bom senso e sem individualização dos pacientes. Terceiro ponto: sim, devemos lançar mão de toda a tecnologia que tivermos disponível (por favor, se eu estiver no Pronto-Socorro tendo um infarto agudo do miocárdio, não hesitem em começar a trombólise!). Mas sempre há tempo (mesmo que sejam segundos) para nos fazermos as “perguntas de ouro” da boa medicina: “O que mais pode ser?” e “Esse paciente pode realmente se beneficiar do que estou fazendo?”. Essas simples perguntas exigem que nos esforcemos mais para confirmarmos nossos diagnósticos, e evita a armadilha de tomarmos decisões apressadas baseadas nas nossas próprias crenças e experiências pessoais. Elas nos obrigam a dar um passinho atrás. Mesmo em situações de urgência, as “perguntas de ouro” podem fazer uma diferença brutal, e levam apenas poucos segundos (o tempo em que a enfermeira está providenciando aquele eletrocardiograma é mais que suficiente para fazê-las).

            Enfim, nosso maior desafio, enquanto médicos, não está em escolher se seremos “fast” ou “slow”. O desafio é dispor, dentro de nossos cérebros, de ambas a formas de exercer a medicina, e saber reconhecer com acurácia de qual delas o paciente à nossa frente precisa. É adotar o bom senso, a parcimônia e o discernimento como fios-guia de todas as nossas condutas, em qualquer situação. Ser FAST quando é preciso ser FAST, ser SLOW quando é preciso ser SLOW. É essa a fórmula – nada mágica – para atingirmos a excelência nessa profissão que tem tanto a oferecer, não somente aos pacientes, mas também (e talvez principalmente) a nós mesmos.

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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.

 

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