Slow Medicine na Amazônia

julho 25, 2016
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Por José Carlos Campos Velho:

Os Expedicionários da Saúde são uma organização não-governamental que desde 2004 vem prestando atendimento médico a populações indígenas em áreas isoladas da Amazônia. O foco principal do atendimento é cirúrgico. São tratadas hérnias de parede abdominal, doença muito prevalente na região e que tem grande impacto social, na medida em que implica em sofrimento para o doente e incapacidade laboral. A maior parte dos indígenas trabalha em agricultura de subsistência e necessita carregar peso na sua vida cotidiana, buscando lenha na selva, construindo sua moradia e exercendo outras atividades, todas elas comprometidas pela presença desta doença. Além da cirurgia de hérnias, é oferecida a cirurgia de catarata, doença incapacitante de alta prevalência pela exposição à ação dos raios ultravioleta, com surgimento de casos graves e precoces que, a semelhança das hérnias, tem grande impacto na vida cotidiana destas populações.  A possibilidade de acesso a tal tipo de procedimentos é muito pequena, pois as distâncias a serem percorridas são enormes, os recursos são restritos e o sistema de hierarquização de cuidados é precário. Os EDS montaram um centro cirúrgico com tecnologia de ponta em área indígena, levando a estas populações os melhores cuidados tanto do ponto de vista da assistência, que é prestada por médicos qualificados, como das técnicas e dos materiais utilizados nos procedimentos.

As expedições em geral são realizadas três vezes por ano. Uma grande infraestrutura é necessária para a organização de uma expedição, que vai desde aspectos logísticos da montagem da estrutura de atendimento até aspectos organizacionais, com a participação de várias instituições públicas e privadas e a colaboração de uma equipe multiprofissional, integrada, em sua imensa maioria, por voluntários. A expedição é apenas o corolário de um trabalho que se estrutura muito antes, através do contato dos coordenadores da ONG com as lideranças indígenas e com as equipes de saúde local, para um longo trabalho de capacitação dos agentes de saúde para triagem de casos nas aldeias e seu encaminhamento ao local da expedição, o que significa a organização de transporte, alojamento e alimentação destas pessoas. Um trabalho hercúleo.

Tivemos a oportunidade de participar pela terceira vez deste trabalho, junto à etnia Saterê-Mawés, no Baixo Amazonas, região indígena demarcada nas proximidades da bacia dos rios Andirá e Marau, na 35* Expedição dos EDS. Os Saterê-Mawés são uma etnia com uma enorme riqueza cultural e histórica. De fato, o contato com a civilização branca já se estende por mais de três séculos, o que determina vários aspectos positivos e outros tantos negativos. Eles foram responsáveis pela “domesticação” do guaraná e se reconhecem como “os filhos do guaraná”. São hábeis artesãos, bem-humorados, exímios negociadores e versados em atividades comerciais. Sua cultura é muito rica, existindo uma organização política, determinada por uma hierarquia de tuchauas, que são os chefes tribais, aos quais compete a liderança clânica, política e ética e a transmissão da sabedoria e da história da etnia. O ritual da Tucandeira, cerimônia de iniciação dos jovens índios à idade madura e o Porantim, código simbólico pré-escrita que contém a história e a ética do povo saterê-mawé, são algumas manifestações da riqueza cultural deste povo.

A região de Maués já foi objeto de estudos pela longevidade da população que nela habita. O livro “Dieta Amazônica – Saúde e Longevidade”, de Euler Esteves Ribeiro e Ivana Beatrice Mânica da Cruz , debruça-se sobre  as possíveis causas da expectativa de vida incomum da população que vive nesta região da Amazônia, incluindo também a população urbana dos municípios de Maués e os ribeirinhos. Conclui que a dieta da região, rica em peixes de águas profundas, farinhas e frutos amazônicos, o consumo regular do guaraná em pó, um estilo de vida fisicamente ativo e com baixos níveis de estresse psíquico possam estar relacionados à longevidade observada nesta região amazônica.

Pela grande afluência de indígenas acompanhando seus familiares ao local da expedição, é oferecido, além do atendimento cirúrgico e oftalmológico, atendimento clínico, pediátrico, ginecológico, ortopédico assim como exames básicos de laboratório, eletrocardiograma e ultrassonografia. Um grande número de profissionais de saúde da região também desloca-se para o local para ajudar no atendimento. À noite são realizadas reuniões educativas com os médicos e enfermeiros presentes na expedição, nas quais são abordados assuntos de relevância, em particular para os Agentes de Saúde Indígena que são indígenas que vivem nas aldeias e que são responsáveis pelas ações de saúde no local.

Em que ponto poderiam confluir as questões essenciais da Slow Medicine com uma expedição a áreas remotas da Amazônia?

A primeira questão que salientamos é de uma utilização racional de tecnologia avançada existente em duas grandes áreas da medicina, levando a uma alta capacidade resolutiva dos EDS em relação aos problemas que eles se propõem a enfrentar. Não existem estudos epidemiológicos ou estatísticos que possam confirmar tais assertivas, de maneira que não podemos mensurar o impacto que tais ações têm na coletividade, mas certamente em um nível individual podemos identificar um claro impacto. Pessoas que praticamente já não enxergavam voltam a ver, pais de família recuperam sua capacidade de trabalhar, uma mulher  tem seu câncer de colo de útero diagnosticado precocemente.

A segunda questão que observamos é a grande prevalência de doenças da civilização, em particular o diabetes e a hipertensão, nesta população. A música Machu Picchu, de Hermes Aquino,  esteve presente em meus pensamentos em vários momentos, enquanto atendia – “vou para Machu Pichu ouvir as flautas de muito além… Fotos, chicletes, coca, uma maçaroca prá lá e pra cá… Nem um Deus, uma prece, era o progresso chegando lá”. Talvez a letra da música não faça jus à riqueza cultural e espiritual dos Saterê-mawés, mas observamos um número exagerado de diabéticos e hipertensos entre as pessoas atendidas. Durante a expedição, tivemos quatro casos de internações clínicas por descompensação diabética, em pacientes obesos e com níveis pressóricos muito elevados.

É sabido que a incidência de diabetes e hipertensão é rara entre indígenas mais isolados e que o consumo de sal e de dietas ricas em carboidratos são hábitos por eles adquiridos através do contato com a civilização. Parece que os indígenas estão perdendo suas raízes no que tange aos hábitos alimentares e consumindo cada vez mais alimentos industrializados. Sabemos que é uma questão de tempo para que as consequências mais severas da presença destas doenças sejam observadas – cegueira por retinopatia diabética, uma miríade de graves condições  cardiovasculares e cerebrovasculares, doença renal, enfim, todas as complicações crônicas desta duas terríveis doenças. Além disso, uma boa parte dos indígenas estava recebendo tratamento medicamentoso com anti-hipertensivos e hipoglicemiantes orais, muitas vezes de maneira errônea ou irregular, em que pese o esforço das equipes de saúde em contrário. O uso descabido de ácido acetilsalicílico como estratégia de prevenção primária atinge proporções alarmantes.

A terceira questão é sobre a incidência de alcoolismo e o uso de drogas ilícitas entre os indígenas, particularmente entre os mais jovens, hábitos vinculados à violência, à desagregação familiar, à desestruturação social e à prostituição.

Parece-nos que a estratégia de combate aos problemas acima referidos erra o alvo. O resgate da produção alimentar, a redução do consumo de sal, o retorno à dieta saudável característica desta região e que contribuiu para uma maior longevidade destas populações como previamente observamos, parecem-no estratégias de muito maior impacto e de custo extremamente menor. 

Tais considerações nos alertam para uma questão delicada e controversa acerca do papel de benefícios sociais e estratégias de inclusão social na modificação dos hábitos da população, que passou a comprar e consumir produtos industrializados, tornando-se também mais sedentária. Aliás, a maior facilidade de acesso à aquisição de  bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas insere-se também nesta situação.

O investimento sistemático e persistente em educação em saúde em relação ao consumo de sal e de produtos industrializados, tanto nas escolas como por meio do sistema organizado de atenção à saúde, através da orientação dos agentes de saúde, e um incansável estímulo à volta aos hábitos alimentares tradicionais, parece-nos que poderiam surtir melhores efeitos do que inundar a população de medicamentos. 

A experiência profissional e humana de participar de uma expedição desta magnitude é ímpar. A vivência de uma medicina mais humana e solidária, o espírito comunitário que irmana todos os participantes, sejam os expedicionários, sejam os colaboradores locais, é algo incomum se lembramos do individualismo e tecnicismo que muitas vezes caracteriza a prática  médica atual. Boa vontade é o princípio que predomina. A longa jornada de barco pelas águas negras  do rio Andirá, o encontro com as lideranças indígenas, a visita ao tuchaua Donato, testemunha viva da história recente dos Saterê-mawés na comunidade do Simão, onde fomos recebidos com o çapó*, a felicidade que sentimos quando ele aceitou operar a catarata, a missa proferida pelo Padre Henrique, no último dia da expedição, embalada pelo coro das crianças na língua sateré e a emoção dos expedicionários ao se desejarem a paz, são imagens que ficarão marcadas em nossa memória. Uma experiência transformadora.

A lição que fica, conforme escreveu em seu site a médica oncologista Ana Coradazzi, numa matéria sobre a Slow Medicine,  que “o futuro da medicina pode estar no passado” , também a sobrevivência dos Saterê-Mawés pode estar no resgate de seu passado.

(*) çapó: guaraná em bastão ralado na água, bebida cotidiana, ritual e religiosa dos Saterê-mawés

Obs: O Dr. Dario Birolini participou da expedição e revisou o texto. A foto que ilustra a matéria é de Rafael Sanchez Neto, cirurgião geral e expedicionário.

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