Por Simone Mancini Castilho:
O cinema muitas vezes projeta situações de vida onde claramente nos vemos refletidos na tela e podemos mais facilmente pensar a respeito de nós mesmos e de nosso momento existencial.
O filme “The Straight Story” – Uma História Real – nos permite essa oportunidade de reflexão.
Esta bela obra cinematográfica transborda da humanidade proposta pela Slow Medicine sendo essa intersecção, o objetivo desse texto.
No filme, Alvin Straight de 73 anos fica sabendo que o irmão, com quem se desentendeu e não fala há 10 anos, teve um AVC e resolve fazer uma viagem de centenas de quilômetros para reencontrá-lo. Sem licença para dirigir, mas decidido a ir só, resolve trilhar a jornada guiando seu cortador de grama.
Pensando a respeito do título dado ao filme, “The Straight Story”, é imediato entendê-lo como referindo-se à história do protagonista Alvin Straight. No entanto, outra compreensão surge ao percebermos as características contrastantes desse filme frente a todos os outros do mesmo diretor, David Lynch, conhecido por seus roteiros obscuros, surreais e de muitas interpretações. Este, ao contrário, é um filme “straight”, sem dados absurdos ou dúbios, sem imagens oníricas ou metalinguagens. Trata-se de uma narrativa linear, explícita. Uma rica e sensível produção artística, que conta a “história real” do envelhecer do protagonista, indo “direto ao ponto” ao explicitar as perdas e limitações próprias de sua idade. Atenta ainda para a importância de se levar em conta expectativas, valores e desejos do idoso em sua senescência.
Já no início do filme vamos acompanhar o protagonista sendo levado, a contragosto, a uma consulta médica após ter sofrido uma queda. Alvin é um homem direto que dispensa rodeios. No diálogo com o médico, descobrimos sua recusa quanto às condutas sugeridas, que parecem incompatíveis com seus planos de vida. Enxergamos aqui o que a SM propõe em geriatria quando enfatiza a importância de se individualizar e valorizar o contexto e os desejos de cada pessoa, situação na qual o médico passa a ser, antes de tudo, um educador e conselheiro. Nos diferenciamos conforme envelhecemos e nossas singularidades devem ser levadas em conta, adquirindo papel essencial na tomada de decisões diante de uma crise.
Num julgamento apressado, Alvin poderia ser considerado um velho teimoso e não colaborativo, mas sua sinceridade consigo próprio nos contagia e nos faz enxergar uma alma sensível que busca viver segundo os valores e escolhas que lhe fazem sentido.
Os encontros e trocas de experiências pessoais que vão se dando pelo caminho são tão inspiradoras quanto a beleza das paisagens que se descortinam durante o trajeto.
O movimento designado “Slow Medicine” escolheu a palavra Slow para qualificar a prática médica objetivando trazer à tona e enfatizar a necessidade de se resgatar a arte de cuidar da medicina tradicional. Traduzido para o português como “Sem Pressa”, este termo abarca dez princípios, sendo que o primeiro deles diz respeito ao tempo.
Pensando na prática geriátrica, a questão do tempo é particularmente importante, uma vez que ao longo do envelhecimento temos uma lentificação dos processos vitais do indivíduo, como foi detalhadamente descrito por Sherwin B Nuland no capítulo 2 (Como envelhecemos: corpo e mente) de seu excelente livro “A Arte de Envelhecer”.
Torna-se fundamental que médicos, familiares e aqueles que convivem com o idoso aprendam a lidar e respeitar estes novos parâmetros.
O filme em questão é surpreendente nesse quesito porque se passa na velocidade das próprias limitações impostas pela idade do protagonista e seu cortador de grama. Um “road movie” onde as emoções brotam mais da reflexão do que da ação. Sem pressa, sem sobressaltos, mas, nem por isso sem intensidade, o longa nos permite francos e lentos mergulhos reflexivos e emocionais, onde cada coisa se insere a seu modo, em seu próprio tempo.
A determinação de Alvin em rever o irmão é algo que habita sua individualidade e história de vida e serve de exemplo da importância em valorizarmos a singularidade de cada um no que tange a valores, desejos e expectativas. Ouvir e compreender aquilo que é particular e significativo ao indivíduo e, em especial ao idoso, também compõe um dos preceitos da Medicina Sem Pressa, belamente retratado no filme.
Nunca é demais lembrar da importância dos laços afetivos e compromissos familiares na prática geriátrica como foi ressaltada pela Slow Medicine. A presença de um cuidador acompanhando aquele que envelhece somada à sua escuta atenta, confiança e lealdade são fundamentais no enfrentamento das esperadas dificuldades desta etapa da vida.
Fruto de sua extensa prática clínica com idosos, os conceitos da Slow Medicine na geriatria foram brilhante e extensamente elaborados e expostos pelo Dr. Dennis McCullough em seu livro My Mother, Your Mother. O autor discorre sobre a maneira como profissionais e serviços de saúde, familiares e cuidadores podem caminhar ao longo das “oito etapas da vida tardia”, apresentadas e descritas na obra.
O protagonista Alvin também toca neste ponto quando tenta transmitir sua experiência àqueles que cruzam seu caminho, enfatizando o lugar ímpar da família na vida humana.
Uma cena tocante é o encontro de Alvin com uma garota que está na estrada sozinha, grávida e, por este motivo, fugindo da família.
Tentando ensinar a ela o que aprendeu com a vida, Alvin lhe conforta e sugere que se reaproxime da família, mostrando que é nela que encontramos a força que muitas vezes necessitamos em momentos difíceis. Nos conduzindo a uma bela imagem, o idoso nos lembra como é fácil partir um único graveto, mas não um feixe deles, comparando este último à resistência protetora que a família oferece.
Sem deixar de apresentar as perdas e dificuldades inerentes à senilidade, é curioso notar que a doçura, o brilho nos olhos de Alvin e sua determinação conseguem inverter o sentido do “road movie”, onde o ‘habitual aprendizado com a jornada’ fica superado pelo ensinamento e pela possibilidade de esparramar no caminho restante a sabedoria que a velhice oferece.
Mas na última cena, Alvin também nos lembra que aprender com a vida não tem idade. Apesar de “um duro golpe em seu orgulho”, ele o transforma em força e determinação para corrigir erros do passado, reencontrar o irmão e com ele voltar a olhar as estrelas; recuperando, assim, a fraternidade das antigas noites de verão.
Enfim, como a tinta que tinge a água, a Slow Medicine e o filme se confundem e seriam presunção e ingenuidade minhas insistir em descrever o que o longa tão prontamente nos leva a sentir. Um filme que vale a pena conferir.
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Simone Mancini Castilho: Nasci em São Paulo, em 1965. Formada em medicina na FMUSP em 1990, no quinto ano fui fisgada pela psiquiatria que dirigiu meu olhar para as dores psíquicas. Terminei meu mestrado na área de Transtornos Alimentares em 1999, trabalhei em alguns serviços públicos e privados de saúde mental e dei aula para estudantes de psicologia. Escrevi alguns capítulos de livros, artigos e dois livros: “A Imagem Corporal” e “Psyche, Matter ande Crop Circles”. O tempo de profissão foi me mostrando que a clínica psiquiátrica deixava em mim uma lacuna que preenchi com um curso de formação em psicologia analítica, mergulhando no universo simbólico que alimenta a alma.
Adoro filmes e cinema, de refletir sobre eles e perceber como são belíssimos espelhos psíquicos.
Sempre atendendo em consultório particular, acredito na medicina humana acima de tudo.
Casada há 25 anos, sou mãe de três filhos maravilhosos, gosto de correr, viajar de moto e me surpreender com a tecnologia. Vibro com novidades, paisagens novas, sou das mudanças, do movimento e dos novos ares.