Por Marco Bobbio
Vivemos em um mundo hiperconectado, desmaterializado e ultraveloz que visa crescer infinitamente, consome recursos naturais produzidos e acumulados ao longo de centenas de séculos em poucas décadas, reduz as comunicações à extensão de um tuíte, espera ter tudo imediatamente, não tem tempo para refletir, para saborear, para esperar. Até a medicina é dominada por essa corrida rumo ao tudo e ao agora. É assim que o pronto‑socorro é utilizado para cada mínima necessidade, pacientes ainda instáveis recebem alta precocemente para dar lugar aos que estão em macas, compram‑se produtos “naturais” na esperança de reduzir o risco de doenças, realizam‑se exames desnecessários para confirmar um diagnóstico, realizam‑se cirurgias para retirar algo que não vai criar problemas, prescrevem‑se antibióticos na ilusão de que uma virose se cure mais rápido. Estamos assoberbados por uma bulimia médica que produz uma demanda exponencial de serviços, especialistas, exames e medicamentos, colocando em crise os sistemas de saúde, os planos de saúde e os orçamentos familiares. Acredita‑se que fazer mais levará a uma vida melhor e mais longa. Mas nem sempre é esse o caso.
Na última década, temos assistido a um aumento de profissionais de saúde e cidadãos insatisfeitos com essa medicina cara que, em nome da eficácia, negligencia as demandas dos pacientes, suas necessidades, seus anseios, suas expectativas, aplicando indiscriminadamente os mesmos protocolos a jovens, idosos, homens, mulheres, pessoas sem instrução ou com ensino superior, sozinhas ou assistidas por familiares, e prescrevendo exames e medicamentos sem uma avaliação criteriosa do paciente. Emblemática é a história de Cândido, contada neste livro: um rapaz de 30 anos que vai ao pronto‑socorro com dores abdominais e, após uma série de exames, mais úteis para que os médicos evitem disputas judiciais do que para o paciente, recebe alta com a mesma dor e sem saber o que a causou. Para se contrapor a uma medicina cada vez mais desumanizada, orientada para o lucro de quem produz medicamentos, equipamentos, dispositivos médicos e serviços, transformando pacientes em consumidores e pessoas saudáveis em indivíduos preocupados e necessitados de avaliações e tratamentos “preventivos”, em 2011 um grupo se uniu com o intuito de fundar um movimento para frear essa tendência e demonstrar que uma medicina que trata de pessoas doentes pode ser praticada e é vantajosa. Como está bem explicitado no texto, por afinidades eletivas e proximidade geográfica, foi imediata a referência ao movimento Slow Food, que há anos luta por uma alimentação boa, limpa e justa. Decidiu‑se definir esse movimento de opinião como Slow Medicine e identificar três adjetivos que o caracterizam: por uma medicina sóbria, respeitosa e justa.
A associação dos termos slow e medicine pode ser mal interpretada. Parece redundante, porque é óbvio que a medicina deve ser sóbria, respeitosa e justa; na verdade, é improvável que alguém defenda uma medicina exagerada, desrespeitosa e arbitrária. Mas a necessidade de acrescentar o termo slow se fez presente, uma vez que a medicina moderna está enveredando para uma prática agressiva, condicionada pelo uso da tecnologia.
Às vezes, erroneamente, o termo slow é associado à tradução literal de “lento”, prefigurando uma medicina relaxada, indolente, preguiçosa, inativa, que demora muito para tomar uma decisão e iniciar uma intervenção. Em várias circunstâncias, quando se trata de reanimar um paciente, estancar uma hemorragia, lidar com um politraumatismo, a medicina deve ser rápida, muito rápida mesmo. Muitas vezes, o médico tem de intervir com automatismos aprendidos com treino e experiência para não perder segundos preciosos. No caso da Slow Medicine, no entanto, o termo slow significa prevenção e atendimento personalizado. Trata-se de saber refletir sobre como lidar com uma doença, saber avaliar criticamente os resultados da pesquisa clínica, saber adaptar as recomendações das diretrizes para o paciente individual1. O conceito slow que inspira a Slow Medicine deriva do termo em latim festina lenta (apresse‑se lentamente): pense antes de agir.
É um conceito que expressa a necessidade de raciocínio e avaliação ponderada na tomada de decisões, evitando ser condicionado por modismos, propagandas e interesses secundários2. Como explicam Ana Coradazzi e André Islabão, os antigos gregos distinguiam o tempo quantitativo, objetivo e cronológico (chronos) — que é determinado pelo ciclo diurno, pelas estações do ano, pelos relógios — do tempo qualitativo e subjetivo (kairós), que muda de acordo com as circunstâncias, as pessoas, os contextos. O termo slow associado à medicina indica, portanto, o momento certo para aquela situação, que também pode ser tratada com muita rapidez.
A filosofia do movimento Slow Medicine3 considera essencial basear a prática médica em evidências científicas, mas chama a atenção dos profissionais de saúde para uma leitura crítica da literatura e das diretrizes, a fim de oferecer a cada paciente um tratamento sóbrio, respeitoso e justo. Se tomarmos a definição de medicina baseada em evidências (MBE) dada por Sackett et al. no livro‑manifesto EBM is the integration of best research evidence with clinical expertise and patients’ values4 [MBE é a integração das melhores evidências científicas com a experiência clínica e os valores dos pacientes], percebemos que a Slow Medicine se encaixa plenamente na definição dada pelos fundadores dessa abordagem. Ao longo dos anos, o conceito de MBE focou indevidamente apenas no primeiro dos três pilares, reduzindo o conceito somente à necessidade de avaliar as evidências de eficácia, fora do contexto clínico e das preferências do paciente. A divulgação de diretrizes acentuou ainda mais esse fenômeno ao nos fazer acreditar que apenas dados científicos (quais? quão confiáveis? Como interpretá‑los? como transferi‑los?) devem orientar as escolhas clínicas. O exagero em tecnicismos e a obsessão pela atualização desvirtuaram o sentido primordial da MBE e negligenciaram a natureza humana e pessoal da relação entre médico e paciente. A Slow Medicine foi capaz de resgatar e desenvolver esses conceitos, dando substância aos princípios fundadores da MBE.
No centro do pensamento da Slow Medicine está a questão do tempo, que, como escrevem os autores, “mais do que algo que nos limita ou oprime […] é um grande aliado que pode expandir e potencializar as nossas capacidades” e se combina com reflexões interessantes “sobre o tempo da consulta, o tempo do diagnóstico, o tempo do tratamento, o tempo das doenças, o tempo da ciência, o tempo de cada um, o tempo de um relacionamento, o tempo para si mesmo, o tempo de uma vida”.
Outro elemento importante é o individualizar como “forma de reconhecer as características específicas de determinado indivíduo, de modo que ele possa ser identificado e compreendido como uma parte única dentro de um todo” — o que a medicina está transformando em um conceito científico vinculado às características genéticas de cada indivíduo, ignorando que “somos diferentes na forma de lidar com nossos males, no suporte social e familiar de que dispomos, nos nossos recursos financeiros, em nossa capacidade de compreensão, em nossas crenças religiosas ou espirituais, em nossos objetivos de vida, em nossa tolerância ao sofrimento”.
Aqui, Ana e André explicam e ilustram com maestria todos os conceitos fundamentais que foram desenvolvidos nesses anos de reflexão sobre o significado e a prática da Slow Medicine: conceito positivo de saúde, prevenção, práticas integrativas e complementares em saúde. Dizem os autores: “A Slow Medicine entende que conhecimentos milenares devem ser respeitados. Negligenciar sua utilidade baseando‑se em preconceitos pessoais é arrogância. Restringir seu uso às práticas analisadas em grandes estudos randomizados pode privar pacientes de benefícios importantes […]”.
Trazendo o leitor para o centro do problema, cada capítulo começa com a história de um paciente atendido às pressas e de modo pouco atento, seguida da descrição de como a consulta poderia ter ocorrido se ele tivesse sido acompanhado segundo a lógica da medicina sóbria, respeitosa e justa.
Nos últimos anos, a Sociedade Italiana de Slow Medicine coletou uma variada documentação de histórias clínicas que demonstram como se pode curar sem esperar resolver tudo imediatamente; depoimentos de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, pacientes e familiares que contam quais foram as vantagens de ter adiado uma operação, desistido de um exame, suspendido um tratamento. Essas histórias nos permitiram refletir sobre conceitos negligenciados pela medicina da pressa: a sobriedade dos tratamentos, o respeito pelos desejos e pelas expectativas do paciente, o tempo necessário para lidar adequadamente com seus problemas, a importância de acompanhar as pessoas até o final de sua jornada terrena. Muitos se perguntam se há espaço, na prática clínica, para uma medicina que não corre, que não depende de tecnologia, que dispensa alguns medicamentos. Ela existe e está se espalhando. Cada vez mais, os profissionais de saúde de um lado e os pacientes de outro percebem que uma medicina slow pode ser eficaz e reduzir as tensões entre ambos ao limitar relações fugazes e anônimas. A medicina slow não faz barulho, não atrai artigos de jornal, não oferece honorários generosos, não promete milagres, não ilude, não cria fascínio, mas em muitas circunstâncias, como você lerá nos próximos capítulos, é útil e eficaz.
Você tem em mãos um livro culto, estimulante, cheio de reflexões e histórias verdadeiras de pacientes que deparam com uma medicina agressiva ou distraída, incapaz de cuidar da pessoa, dedicada apenas àquele pedaço do organismo doente. Um livro que explica a médicos, enfermeiros, pacientes, cidadãos comuns e administradores na área da saúde que uma forma diferente de exercer a profissão pode e deve se tornar patrimônio cultural para devolver dignidade e valor a uma prática que se esvai rumo a uma medicina pouco empática e ineficaz.
Referências Bibliográficas
1. Bobbio, Marco et al. “Slow medicine and choosing wisely: a synergistic alliance”. Journal of Evidence ‑Based Healthcare, 2021, n. 4, p. e4222.
2. Bert, G. et al. “Le parole della medicina che cambia: un dizionario critico”. Roma: Il Pensiero Scientifico, 2017.
3. Bonaldi, A.; Vernero, S. “Slow medicine: un nuovo paradigma in medicina”. Recenti Progressi in Medicina, 2015, n. 106, p. 1 ‑7.
4. Sackett, D. et al. Evidence‑based medicine — How to practice and teach EBM. Londres: Churchill Livingstone, 1998.
Marco Bobbio é presidente da Associação Italiana de Slow Medicine e ex‑diretor do Departamento de Medicina Cardiovascular do Hospital Santa Croce e Carle de Cuneo (Itália)
Tradução de: Andrea Bottoni, médico pela Universidade de Roma La Sapienza e especialista em Estilo de Vida e Coaching em Saúde pela Faculdade Israelita Albert Einstein.
O lançamento do livro Slow Medicine: sem pressa para cuidar bem será no dia 25/04/2024, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo. O livro foi escrito pelos colaboradores do Movimento Slow Medicine Ana Coradazzi e André Islabão e publicado pelo Grupo Summus.
Nos faz lembrar do trabalho que vem sendo desenvolvido faz tempo no Brasil da Medicina Integrativa.