Slow medicine: uma interface entre a Bioética, a Medicina e o Direito

março 26, 2018
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Por Lívia Callegari:

O avanço da tecnologia trouxe inúmeros benefícios à assistência em Saúde, principalmente, pela possibilidade de aplicação de processos diagnósticos mais precisos e, com isso, a adoção de terapêuticas mais adequadas para o caso concreto. Para doenças que até outrora não existia opção de manejo, passou a ser possível oferecer ao paciente alternativa de tratamento, que vislumbra a qualidade de vida, e não unicamente a cura da enfermidade.

A divulgação das informações sobre as recentes “descobertas” são vastas e de fácil acesso mas, por vezes, partem de um marketing infeliz e que explora a aflição humana, são pouco confiáveis e, consequentemente, trazem degeneração à essência da Medicina. Patologias que não representam maiores ameaças para o tempo de vida são criadas e amplamente valorizadas. Para elas sempre se embute, na maioria dos discursos, a promessa de cura/controle.

Por sua vez, a investigação diagnóstica, em detrimento da clínica médica, acaba por ser o foco, e tão somente se prioriza a mera leitura dos exames complementares que, em muitas situações, são inadequados ao esclarecimento da hipótese da patologia, por alguns trazerem a possibilidade de falsos positivos, sem contar, ainda, com os riscos à incolumidade do paciente, causado por iatrogenias (complicações ou evento adverso causado em decorrência da assistência em Saúde) que, em curto ou longo prazo podem se manifestar.

Não se olha para o paciente, não se faz uma anamnese adequada, e não se estabelece um diálogo eficiente. Tudo acontece muito rápido. E quando do resultado dos exames, o processo de comunicação entre médico e paciente é frágil e, invariavelmente, gera uma patente estigmatização no indivíduo, que reduzido meramente a uma doença, sente-se fragilizado e, tão somente, se vê conduzido a uma fútil medicalização, sem ainda receber orientação sobre a necessidade de introduzir alguma alteração de comportamento diário. Na pressa, esquece-se da importância do direcionamento adequado ao paciente, pois jamais um ruim hábito de vida poderá ser suplantado por um medicamento.

Por conseguinte, há intensificação de um descomensurado desperdício, ausência de otimização de recursos e danos ao meio ambiente, além da falta de sustentabilidade, que geram uma descabida elevação de custos para a Assistência à Saúde. Apenas para situar mais profundamente, de acordo com a ANS, no relatório de 2017, levantamentos estatísticos comprovaram o crescimento na quantidade de pedido de exames complementares por pessoa, que chega a 21% para Tomografia Computadorizada e 25,2% para Ressonância Magnética.

Deve ser questionado, entretanto, se a justificativa para o aumento de requisições dos exames está realmente aliado a uma criteriosa evidência científica ou ao menos a um esperado raciocínio clínico. Isso porque, atingir metas passou a ser a força matriz de alguns estabelecimentos de Saúde, notadamente, aos que adotam o modelo denominado “fee for service” (pagamento por procedimento). Nessa vertente caótica, também se devem inserir os incentivos financeiros de hospitais, laboratórios e médicos por esse tipo de remuneração.

Com isso, instaura-se a saga do “overdiagnosis” (em tradução aproximada, excesso de diagnóstico) e “overtreatment” (excesso de tratamento), que, invariavelmente, resultam na condução do caso com ausência de adoção da melhor técnica, sem contar com o desate total a uma ideal prática clínica. Claramente, um direcionamento que traz mais males do que benefícios a quem se vale do atendimento. O primum non nocere (primeiro não prejudicar), que está umbilicalmente ligado ao princípio bioético da não-maleficência, e preconiza, dentre outros aspectos, sopesar os riscos e possibilidades de danos desnecessários aos pacientes, majoração de custos ao se requisitar exames não indicados, elaborar diagnósticos, executar procedimentos ou mesmo prescrever medicamentos, é colocado de lado. Não se assimila com parcimônia que, para o caso concreto, o menos não pode representar mais.

Do mesmo modo, nessa esteira de conduta inadequada, há o abalo do Sistema de Saúde como um todo, pois não traz se segurança ao paciente, nem para a Instituição e profissional, e nem tão pouco segurança jurídica. Surgem, então, confrontos no judiciário que, em não raras vezes, são escoradas com teses excessivamente leigas e totalmente desprovidas de base, aumentando ainda mais distância entre as áreas do saber. Ambos os lados, no entanto, olvidam-se que, pelo estado da ciência por mais seguras que sejam as técnicas, o risco nunca é eliminado por completo, pois não estão adstritos somente a técnica, mas às reações do próprio organismo.

O modo e a expectativa de vida mudaram. A tecnologia também mudou, mas o ser humano continua o mesmo com as suas individuais repostas biológicas, e nem sempre as formas de controle disponíveis são eficazes. Além disso, por mais que sejam elaborados protocolos de atendimento para obter uma eventual segurança, devem exclusivamente servir como norte, e não como regra absoluta a ser aplicada de maneira autômata, sem o mínimo de reflexão e adequação às peculiaridades que se apresenta em cada caso.

Em suma, no aspecto prático, doença ou qualquer aspecto relacionado à saúde humana, passou a fazer parte da vertente relacionada à sociedade de massa, enquadrando-se o com viés inadequado de mercantilização. As relações sociais tornam-se cada vez mais impessoais que resultam na perda do elo da confiança. O estabelecimento da distorcida cultura a um suposto imediatismo para solução de todo e qualquer mal que assole o bem-estar do indivíduo contribuem para esse panorama. A totalidade do ser, contando-se com seu sofrimento, expectativas e entendimento cultural, fica limitada, muita vez, com uma visão utilitarista de experimentação patrimonial, o que torna, inclusive, o processo de comunicação deficitário.

Aliás, todo esse cenário é o reflexo da mais evidente falha no ensino e preparação desde a graduação – o ponto de partida-, por lançarem à sociedade, profissionais que se encontram com robusto saber técnico, mas extremamente distantes e carentes de uma visão humanizada. Inclusive, não se direciona espaço nas grades das aulas para as necessárias reflexões trazidas pela Bioética, pois muitos consideram a temática de somenos importância. Por esse motivo, fundamentar a origem desse excesso na Assistência à Saúde unicamente por consequência da denominada Medicina Defensiva, é algo pueril por não analisar as todas as questões, desde o seu ponto de origem.

É bem verdade que a tecnologia é fascinante, mas apenas quando bem e inteligentemente utilizada, pois facilita em muito o cotidiano, criando boas perspectivas. No entanto, jamais deve causar abalo ou distanciamento nas relações, mesmo porque, por mais avançada que ela esteja – e nem sempre o novo supera o já existente , ainda quem a cria, opera e interpreta o resultado das máquinas são os seres humanos. Não se pode esquecer que a clínica é soberana, e não se aprende Medicina mexendo nas máquinas, mas com o contato direto com o paciente. Um exame de laboratório ou um de imagem não são capazes de sozinhos explicarem uma doença, pois isso sempre dependerá de um profissional para a condução do diagnóstico, por mais que se avance a inteligência artificial. A precisão que pode ser obtida pelas inovações, nunca deve representar açodamento ou volume de produção, mas fundamental ganho em qualidade.

Em uma sociedade cada vez mais líquida em que o consumo, o efêmero e a pressa são a mola propulsora, muito há o que se resgatar. Por isso que a Slow Medicine toma corpo e muito bem se adequa a essas questões atuais na área da saúde, justamente por se preocupar em desenvolver uma filosofia de trabalho centrado no paciente com presteza.

Parte-se de uma Medicina Sóbria, Respeitosa, Justa e honesta. Não se trata de uma nova construção, mas um reenraizamento na essência da Medicina. Privilegia-se, também, a utilização da tecnologia baseada em Choosing Wisely (escolhas sábias) e, consequentemente, anda em direção diametralmente oposta ao desperdício irracional e exposição de riscos desnecessários a todos os participantes da assistência, pois se acredita que fazer mais nem sempre significa fazer melhor.

Tudo começa com o diálogo, com a empatia e a aproximação. Existe o olhar humanizado, a escuta ativa e real aplicação prática da Bioética, que se fundamenta na compaixão e no constante “colocar-se no lugar do outro”. A comunicação é próxima. Busca-se identificar e reconhecer a singularidade, a capacidade e autodeterminação do paciente, objetivando encaixar suas características e história de vida, para que o paciente sinta-se cômodo e colaborativo no processo do cuidado. Há tempo para ouvir, entender e refletir. Nesse sentido, a estimulação do empowerment é fundamental.

A informação ampla sobre os vários aspectos do tratamento é um real elemento para o pleno exercício da autonomia do paciente. Da autonomia do paciente, tem o profissional, após a informação esclarecedora, obrigação de respeitar as crenças, valores e escolhas pessoais. O consentimento é amadurecido e não apenas informado ou esclarecido, que passa a ser uma segura ponta final da comunicação, segundo o qual o paciente dentro do binômio avaliação/entendimento, pode externar a sua autodeterminação por meio da tomada de decisão. A decisão, por sua vez, é compartilhada. Tem como base as crenças, convicções, expectativas e preferências do paciente. É um direito que deve ser exercido livre de coação ou intimidação, originado de uma linguagem fornecida de maneira clara e que não induza a um erro essencial, sob pena de nulidade.

O paciente é bem direcionado e por isso se torna mais consciente e participativo. Nesse processo, em colaboração ao cuidado, redes de apoio de cuidado também são constituídas. A relação médico paciente nasce bem constituída, e, por isso, dificilmente haverá um confronto, pois há eticidade no vínculo estabelecido.

A Slow Medicine é, portanto, um necessário e real resgate da medicina individualizada, pois todos somos uma única essência em nos mesmos, e não meras estatísticas em uma coletividade massificada. É a ideal retomada do “primum non nocere et in dubio abstine” (primeiro não prejudicar e na dúvida se abstenha). É o renascimento da verdadeira arte de cuidar.

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Lívia Abigail Callegari, nascida  em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

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