Slow Nursing e escuta ativa: quando se está disposto, até o silêncio nos fala

março 17, 2021
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Por Marcella Tardeli

“Dê a todas as pessoas seus ouvidos, mas a poucas a sua voz.”
(William Shakespeare)

Houve um tempo em que eu era simplesmente uma enfermeira… recém-formada, cheia de medos e insegurança. Eu me lembro que cheguei a pensar se conseguiria recordar os nomes de todos os meus pacientes da unidade, sem ter que “colar” da folha de passagem de plantão. Não demorou muito para eu entender como as coisas de fato funcionavam. Enquanto estagiária, com aquela tremenda atenção focada em não errar, o desafio se limitava a registrar no meu caderninho tudo o que eu não podia esquecer (o algodão, a pinça, o par de luvas, o termômetro…). O que não me contaram, naquela época, é que eu também não poderia esquecer de OUVIR. 

Eu me lembro de ter aprendido sobre o conceito de escuta ativa, especificamente, durante meu curso de aprimoramento em cuidados paliativos, mas acredito fortemente que com o passar do tempo esta habilidade também acabou virando material de bolso da minha versão enfermeira. Descobri também que aquele meu medo primário, de não lembrar os nomes de todos os meus pacientes, perde o sentido quando aquele indivíduo do leito 210 me conta a sua história, me fala sobre o que está sentindo numa amplitude muito maior do que me dizer se a sua dor tem um escore de zero a dez, se ela queima ou se é em agulhadas. Quando ele me conta sobre seus medos, suas angústias, suas crenças, seus valores e eu realmente o escuto, fica praticamente impossível esquecer seu nome. 

Fato é, também, que a rotina do enfermeiro sempre foi recheada de tarefas, intercorrências, campainhas e telefones tocando. Não faltam estudos que mostram o impacto que as tais interrupções provocam na qualidade da assistência de enfermagem oferecida. Nosso desafio, ou melhor, um dos nossos desafios durante um plantão é o de, ao entrar no quarto de um paciente, simplesmente estar lá. Porque a escuta ativa exige muito mais do que ouvir: exige estar inteiramente ali, capturando cada mensagem verbal e não-verbal emitida, interpretando os sinais, respeitando o silêncio e conduzindo o diálogo de forma construtiva, ampliando a investigação e não limitando a escores.   

Como enfermeira que sou (super antenada com cada som e movimento que está rolando na unidade), entendo como pode ser difícil estar no quarto sem se preocupar com a campainha que segue tocando, com uma ligação que foi perdida ou o colega médico que está à sua espera no posto de enfermagem. Então deixo aqui algumas possibilidades de trabalharmos essa habilidade. Algumas práticas como meditação e mindfulness, por exemplo, podem contribuir para este exercício de foco e atenção plena. Mas são facilitadores apenas… Estamos falando de treino! Cada oportunidade de praticar a escuta ativa precisa ser percebida e aproveitada. O movimento Slow Medicine, que lindamente trouxe com ele o Slow Nursing, corroboram com esta prática de dedicação da sua escuta de forma ativa em prol do cuidado.

Quando trazemos de seus princípios o Tempo e a Individualização, estamos praticamente exigindo de nós mesmos que pratiquemos a escuta ativa, porque não é possível fazê-la de fato às pressas ou com um pensamento paralelo de que “todos os pacientes são iguais e sentem o que o senhor está sentindo”. Nos movimentos dinâmicos de um plantão, muitas vezes nos parece impossível este tipo de dedicação. Entrar no quarto do paciente sem hora pra sair? Impossível! Mas reforço que se trata de uma prática e que, portanto, requer treino. Não é preciso que você passe o plantão todo em um único quarto. É preciso que naquele momento em que você está lá o paciente sinta (não é apenas saber, ele precisa sentir) que aquele tempo que você está dedicando a esta visita é realmente dele: inteiro e pleno – sejam cinco minutos, seja uma hora. 

Outro princípio da Slow Medicine que provoca a prática da escuta ativa é o da Autonomia e Auto-Cuidado. Só é possível compreendermos o que significa ter autonomia quando entendemos de fato o que isso simboliza para o paciente, perguntando a ele sobre seus valores e crenças, sobre o que “movimenta” o seu ser. Não consigo imaginar ouvir coisas de tamanha importância sem dedicar minha atenção total. Aqui aproveito e trago um contraponto para a nossa assistência e a prática da escuta ativa. Faz parte do nosso papel enquanto enfermeiros o de realizar a educação do paciente para o seu auto-cuidado. Observe a grande oportunidade que temos para que o paciente receba melhor nossas orientações: quando ele é quem pratica a escuta ativa. Eu preciso proporcionar essas condições diminuindo distrações, escolhendo o local apropriado, pedindo que ele me fale sobre o que eu disse para validação da compreensão sobre o conteúdo. Vejam como a escuta ativa se mostra aqui, mais uma vez, algo maior do que o simples ato de ouvir.

A escuta ativa, quando praticada com frequência, possibilita a criação e fortalecimento do vínculo entre as partes envolvidas. Nessas horas, nós enfermeiros acabamos sabendo das coisas que o paciente gosta, não gosta ou faz que nunca contou para nenhum outro membro da equipe: um tratamento que lhe parece desproporcional, uma “terapia alternativa” que ele vem utilizando em paralelo, suas verdadeiras opiniões pessoais sobre o que é qualidade de vida. Coisas que só conseguimos captar quando estamos totalmente ali, plenamente entregues ao diálogo, e a partir disso podemos trazer novos elementos para as discussões multidisciplinares sobre o plano de cuidado daquele paciente. 

O princípio da Paixão e Compaixão, talvez um dos mais belos da Slow Medicine, nos incita a realizar este exercício. Você consegue imaginar alguém apaixonado pelo cuidar e que luta pela humanização dos cuidados à saúde que não escuta o que o seu paciente realmente quer dizer? Pois é… eu também não. Definitivamente, não há nada a perder no treino e na prática diária da escuta ativa. Você pode inclusive começar a praticar ouvindo seus colegas de equipe durante uma reunião, na passagem de plantão, nas visitas multiprofissionais…

Como eu disse, houve um tempo em que eu era simplesmente uma enfermeira… e felizmente ainda sou! Mas descobri no caminho que cabem infinitas possibilidades de se conduzir um plantão e de cuidar de um paciente. Um dia, quando dei por mim, estava ali, ouvindo, serena, exercitando a escuta ativa, praticando Slow Nursing, sem precisar fazer esforço, sabendo de tudo o que poderia estar acontecendo do lado de fora daquele quarto, mas inteiramente dedicada àquela história. Enfermeira, sim. Mas na melhor versão que eu puder ser.


Marcella Tardeli: Sou enfermeira com especialização em Oncologia e Cuidados Paliativos. Trabalho há alguns anos no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, onde procuro exercer minha profissão da forma mais significativa possível. Foi buscando esse valor intrínseco do cuidado que acabei me tornando também aromaterapeuta, contribuindo para o bem-estar dos pacientes (e para o meu também). Gerencio a Ophicina de Cuidados Paliativos, que promove formação de qualidade para profissionais da saúde, e também o perfil @cuidados.paliativos do Instagram. E sou mãe da Luísa, luz dos meus dias e minha maior inspiração.

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Kelly Telles
Kelly Telles
3 anos atrás

Bom dia,
Lindo texto!! Leva a uma reflexão interna. Também sou Enfermeira, atualmente estou na Ouvidoria em uma Maternidade pública…. e na data de hoje ( 17/03) que é comemorado o dia do Ouvidor me deparo com este tema que as vezes não conseguimos encontrar em alguns profissionais ou pessoas.

Parabéns !!

Renata
Renata
3 anos atrás

Tocante e de uma leveza quando li. Compreender o ser humano por inteiro na prática da ciência de enfermagem ainda é desafiador para muitas realidades. Me mostra que podemos estimular com uma ação simples: escutar, mesmo quando o ruído externo é mais alto.

Cintia R. Vivanco
Cintia R. Vivanco
3 anos atrás

Relato inspirador!
Em minha caminhada profissional, o movimento filosófico “Slow Medicine” e sua prática em Enfermagem, responde a questões que me inquietavam, como o cuidado holístico, que está na gênese da Ciência da Enfermagem, porém realizá-lo no cotidiano caótico assistencial e de gestão, é cada vez mais desafiador. A resposta para este desafio está na prática da “Slow Nursing”, cuidado individualizado e integral.

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