Por: Josikwylkson Costa Brito
“Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.”
O cuidado na obstetrícia tem nuances que só se encontra na própria especialidade. Espalho repetidamente aos quatro cantos do mundo o quão difícil foi escolher essa área. Para mim, ela implicaria abrir mão de paixões que achei que só teria na medicina “convencional”: a paliatividade, o vínculo, o social, a parcimônia, o raciocínio clínico, o cuidado mais próximo, o conforto. Passado pouco tempo de residência, percebi o meu próprio preconceito. A obstetrícia necessita dessas valências de forma muita intensa, e ainda com adaptações às próprias especificidades obstétricas, tornando ainda mais difícil aplicá-las em harmonia. É necessária a filosofia slow.
Para começar, a obstetrícia vem carregada de dúvidas éticas e existenciais relacionadas ao início da vida e à sua finitude, muitas vezes, difíceis de serem sanadas pela objetividade (sim, a obstetrícia também carrega sua finitude, gostemos disso ou não). Quando um amontoado de células passa a “viver”? Não há como ter uma resposta precisa para isso, pelo menos, do ponto de vista estritamente científico. Precisamos, no entanto, assumir uma resposta para dar continuidade ao processo de raciocínio. Talvez, o termo “sobreviver” seja mais adequado: os fetos vivem dentro do útero até estarem suficientemente formados para sobreviverem fora dele. Isso, infelizmente, nem sempre será possível.
Algumas patologias gestacionais, como diabetes, pré-eclâmpsia ou restrição de crescimento fetal, nos forçam a ponderar qual o momento certo do nascimento, levando em consideração a probabilidade de sobrevivência extra-útero e a probabilidade de danos intra-útero. Não vale a pena manter dentro do útero a todo custo um feto já capaz de sobreviver se continuar dentro do útero puder causar-lhe danos, mas retirá-lo de lá precocemente também não é uma decisão isenta de riscos, devendo ser pautada em ponderações racionais e sóbrias, levando em conta, ainda, toda a angústia materna relacionada ao processo.
Essas são circunstâncias comuns do nosso dia a dia: confrontar potenciais riscos e potenciais benefícios – às vezes, atemporais – nem sempre é tarefa fácil (quase nunca é). Há situações, é claro, em que há riscos imediatos à vida e o caminho a seguir é claro. Por exemplo: uma gestante portadora de síndrome HELLP, caracterizada por anemia hemolítica, plaquetopenia e hepatite aguda, terá de interromper sua gestação imediatamente após o diagnóstico, sob risco de sua própria morte, independentemente das condições de sobrevivência do feto após o nascimento, embora tenhamos intervenções, hoje em dia, que minimizem as consequências de um nascimento prematuro (como corticoterapia antenatal para maturação pulmonar, sulfato de magnésio para neuroproteção fetal ou antibioticoprofilaxia para prevenção de sepse neonatal). O mesmo vale para corioamnionite, ou para fetos com formações incompatíveis com uma vida extra-útero (embora, na segunda situação, não costume haver risco à vida materna, e as decisões sejam mais baseadas nos valores e crenças pessoais do que em argumentos técnicos). Contudo, mesmo diante de situações nas quais há um pouco mais de clareza na dinâmica de decisão, precisamos lidar com o componente humano da equação, composto pelos valores e expectativas das pessoas envolvidas, e é nesse ponto que os princípios slow da Individualização e da Autonomia se fazem necessários. Quando a vida, a sobrevida e a finitude estão tão entrelaçados, não há diretriz de conduta que seja totalmente suficiente para dar conta da decisão a ser tomada.
Difícil também é lidar com a variável tecnológica do serviço. Uma mãe que tem sua bolsa rota com 22 semanas de idade gestacional terá de abreviar o parto devido ao risco de infecção ou poderá esperar algum tempo até que seu bebê se desenvolva suficientemente para nascer. Até quando esperar? Se o serviço em que ela estiver sendo atendida for capaz de dar sobrevida para bebês de 24 semanas, é racional esperar até essa idade. Se o serviço tem tecnologia apenas para 28 semanas, surge a questão: o risco de uma infecção intrauterina compensa a espera de mais 1 mês, considerando que esse risco aumenta progressivamente e pode diminuir ainda mais a probabilidade de sobrevida do recém-nascido? Não é uma decisão nada fácil, que acaba recaindo sobre discussões complexas entre equipes multidisciplinares e, claro, a própria paciente.
Conjunturas como essas envolvem vida e sobrevida, mas a maior finitude é a da esperança. Súbita. Arrancar dos braços de uma mãe a esperança da maternidade, mesmo que por um motivo nobre, pode ser necessário, mas certamente é doloroso. Doloroso para todos os participantes (profissionais e pacientes), cuja dor se intensifica pelos respectivos valores. Uma gestante com cinco filhos que já passou por alguma situação extrema previamente talvez tenha melhor aceitação da intervenção do que uma mulher de 42 anos em sua primeira gestação que tem plena noção das dificuldades de engravidar novamente. Cabe ao obstetra compreender as pacientes da melhor maneira possível e conduzir um processo de decisão sóbrio e parcimonioso. Cabe também compreender a nós mesmos: para mim, que não tenho filhos, pode ser menos doloroso lidar com essas pacientes do que para uma colega que já experimentou a maternidade. Cada um sabe onde suas dores estão e o quanto é capaz de lidar com elas.
O acolhimento é habitualmente lembrado nas tragédias. Do lado oposto, o nascimento é visto com glória, sendo celebrado por várias civilizações diferentes desde o início da humanidade (inclusive, todos os anos, cantando “Parabéns Para Você”). No entanto, o processo até o nascer é complexo, trazendo, muitas vezes, dor, impaciência, angústia e, infelizmente, violência, com um forte atrelo psicossocial. Esse processo começa na concepção. O simples encontro de um óvulo com um espermatozoide carrega um turbilhão das mais substanciais emoções do ser humano. Uma concepção para Joana, uma mulher de 38 anos que tentou engravidar por cinco anos após vários tratamentos para infertilidade, representa a realização de um sonho. Para Yasmin, uma mulher de 31 anos em seu segundo casamento, uma concepção significa um recomeço. Para Carla, de 28 anos, constitui a maravilha do que sempre disseram ser impossível, pois a concepção veio através de uma fertilização in vitro que permitirá a vivência da maternidade para ela e sua esposa. Uma concepção para Carol, uma adolescente de 16 anos que recém-descobriu sua vida sexual, mas infelizmente não foi bem orientada, traz uma encrenca. Para Júlia, uma mulher de 25 anos que foi abusada sexualmente, retrata a continuidade de um sofrimento, uma violência. Todas elas buscarão ajuda de alguma forma, e, eventualmente, estarão nas mãos de um profissional da obstetrícia, que precisa agir de maneira diferente para cada uma delas, para que cada uma receba o cuidado, a informação e o acolhimento de que necessita dentro de suas particularidades.
As diferenças entre as pacientes também me fazem pensar no quanto a obstetrícia precisa estar atenta a outra esfera de heterogeneidade: as imensas diferenças sociais que permeiam nosso dia a dia. O acesso das pacientes ao cuidado de que precisam será diferente. Carol, uma adolescente de classe social mais baixa, poderá não conseguir fazer seu seguimento no pré-natal de forma suficiente. Se ela for diagnosticada com alguma patologia gestacional leve, poderá ter piores desfechos do que Joana, uma gestante com patologia grave, pertencente a uma classe média alta. Carol, na ultimação do parto, poderá ter um natural prejuízo de sua assistência, gerado, por exemplo, pela sobrecarga dos serviços do SUS, culminando em um parto normal que poderá aumentar os riscos de um desfecho desfavorável; do outro lado, Joana, de classe mais abastada, terá seu parto fotografado e agendado por meio de uma cesárea que, no seu caso, poderá minimizar os seus riscos gestacionais. Talvez, essas frequentes situações até façam com que a opinião popular seja de que a cesárea é um sinônimo de boa assistência, ou com que o trabalho de parto seja transformado em uma patologia, que apenas traz dor e sofrimento e que só é realizado por não haver recursos para uma cesárea. Só talvez…
Em obstetrícia, como em toda a medicina, nenhum procedimento é melhor que o outro. O melhor procedimento é o que está bem indicado. Propor uma cesárea para quem não precisa pode causar tanto dano quanto não propô-la num caso em que ela está bem indicada. O princípio slow do Uso Parcimonioso da Tecnologia nos ensina justamente sobre isso: não se trata de oferecer tudo a todos, e sim o necessário a cada um.
Entender a fisiologia do parto, apoiar a paciente e executar os procedimentos com primazia não é suficiente. Induzir um parto em uma gestante com HELLP não é suficiente. Decidir se uma cesárea está ou não indicada não é suficiente. Como diz um amigo de residência, a medicina não é apenas sobre pacientes e técnica; é sobre lei, cultura e sociedade. É sobre a Carol, a Joana, a Carla, a Júlia e todas as pessoas do mundo. Buscar esse entendimento é encontrar os valores e preferências que toda paciente tem, mesmo que eles não sejam expressos de forma ativa, mesmo que não estejam alinhados com os nossos valores pessoais. A compreensão do outro introduz a sobriedade da boa assistência. Isso é ser slow. Esse é o caminho para quebrar o estigma incutido à obstetrícia, e resgatar a beleza que permeia a sua prática sóbria, respeitosa e justa.
Josikwylkson Costa Brito: Sou médico residente em Ginecologia e Obstetrícia pela FMABC. Formado em 2021, tenho experiência de cerca de um ano e meio como médico generalista. Fui co-autor do livro Manual de Medicina Baseada em Evidências. Sempre busquei aliar a prática clínica aos valores das Medicina Baseada em Evidências, Slow Medicine e Choosing Wisely. Se é difícil aplicar à medicina como um todo, hoje, tenho encontrado desafios fascinantes dentro da minha especialidade.