Slow Recovery: Adicção é uma doença crônica

janeiro 29, 2019
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Por José Carlos Velho

“As drogas me deram asas para voar, depois me tiraram o céu.”
(autor desconhecido)

John Callahan era um cartunista americano, já falecido que, de forma ácida e irreverente, se tornou conhecido pelo humor negro expresso em seus quadrinhos. O novo filme de Gus van Sant, ‘A pé ele não vai longe’ explora sua biografia, marcada pela tragédia: o alcoolismo e o acidente que o tornou tetraplégico. Joaquin Phoenix vive de forma magistral o cartunista, mostrando sua vida antes do fatídico acidente, até sua consagração como artista polêmico, que trazia à tona o politicamente incorreto, os desvalidos, as pessoas portadoras de deficiências.John, que claramente tem graves problemas com álcool, sai de uma festa com Dexter, vivido por Jack Black, que havia acabado de conhecer, e eles bebem até ficarem completamente embriagados, na procura de uma festa que seria “a grande festa”. No caminho, dirigindo um velho fusca, Dexter dorme na direção e eles sofrem um grave acidente. John sofre uma lesão medular e fica tetraplégico. Após uma longa estadia no hospital e em uma clínica de reabilitação, John consegue uma relativa independência para viver fora da instituição (este é um dos aspectos do filme que também aborda um tema caro à Medicina sem Pressa: a reabilitação). Apesar das graves consequências de seu acidente, ele volta a beber, e sua vida vai se tornando cada vez mais difícil e deteriorada. Em meio a uma grave síndrome de abstinência, John percebe que precisaria fazer algo para mudar a sua vida. E resolve conhecer os Alcoólicos Anônimos.É este aspecto do filme que queremos comentar neste texto. 

A relação do homem com substâncias psicoativas remonta a pré-história. Um longa caminhada foi percorrida até que o alcoolismo e a dependência química passassem a ser considerados doenças, mais do que uma falha moral ou uma fraqueza da vontade. A dependência química é uma doença que afeta o cérebro, fazendo com que o indivíduo continue fazendo uso das substâncias que paulatinamente destroem sua vida pessoal, familiar e social. Este é um dos critérios para o diagnóstico da síndrome da dependência química: o uso continuado de determinada substância apesar da “consciência que o indivíduo tem de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância. “A pé ele não vai muito longe” mostra didaticamente o alcoolismo de John, as síndromes de abstinência por ele vividas e sua total incapacidade de fazer escolhas saudáveis e sensatas. Quando ele, não suportando mais a vida de degradação e desespero que vivia, busca no AA uma alternativa, o filme muda a direção, focando o longo e árduo trabalho de recuperação de John.

Uma questão bastante interessante no filme é a exploração da filosofia que sedimenta o trabalho de recuperação nas irmandades que se utilizam da estratégia dos 12 Passos, entre elas os Alcoólicos Anônimos e os Narcóticos Anônimos. O início da história do AA remonta a 1935, quando Bill W., corretor de valores em Nova York, encontrou o cirurgião conhecido como Dr. Bob  na cidade de Akron, Ohio, pois estava buscando permanecer sóbrio e uma das maneiras que ele encontrou para fazê-lo, era conversando com outro alcoólico. Bill W. tinha uma longa e trágica história de alcoolismo e vinha tentando recuperar-se utizando as estratégias que havia aprendido com os Grupos de Oxford. A partir deste primeiro encontro de Bill e Bob, o embrião da organização, hoje existente em quase todos os países do mundo, foi constituído. A publicação do Livro Alcoólicos Anônimos, em 1939, e posteriormente um artigo publicado por Jack Alexander no jornal The Saturday Evening Post, trouxe enorme publicidade  para a organização. Posteriormente foi publicado “Os 12 Passos e as 12 Tradições”, que estabeleceu o método, posteriormente seguido por outras organizações de mútua-ajuda, como os Narcóticos Anônimos, cuja fundação data de 1953. Atualmente, várias organizações utilizam-se da filosofia dos 12 Passos para oferecer aos seus membros perspectivas de superação de seus comportamentos aditivos e compulsivos.

Voltando ao filme em questão, podemos acompanhar John ao longo de seu lento processo de recuperação, palmilhando o caminho apontado por seu padrinho, Donny, um belíssimo papel representado por Jonah Hill. O apadrinhamento é um assunto de grande relevância na filosofia dos 12 Passos. Um padrinho é um alcoólico ou adicto com certo tempo de sobriedade, conhecedor da filosofia de recuperação expressa nos 12 passos, que trabalha com seu afilhado a execução dos passos, funcionando também como seu confidente e suporte para momentos difíceis. O filme percorre cada um dos passos de maneira detalhada. John muda completamente sua vida, e descobre sua capacidade de produzir cartoons ao longo do processo de recuperação.

A filosofia dos 12 Passos considera a adicção (e o alcoolismo é uma adicção) como uma doença física, mental e espiritual. As organizações que se utilizam destes conceitos buscam essencialmente ajudar adictos e alcoólicos em sua recuperação, e para isso se utilizam de vários instrumentos, entre eles as reuniões e uma extensa literatura sobre as doenças e o caminho para a recuperação. Um dos focos desta concepção de recuperação é a capacidade e a possibilidade de uma alcoólico ou um adicto ajudar ao outro, através de um processo de identificação por meio do qual, muitas vezes terem passado sofrimentos em comum, buscarem  soluções semelhantes, sempre numa postura de não julgamento e não professoral. Na filosofia das irmandades de 12 Passos, as adicções são consideradas, além de doenças físicas e mentais, também como doenças espirituais. O conceito de um Poder Superior, de ordem espiritual e não religiosa, é sempre presente, tratando-se de um Poder Superior que é eleito pelo próprio sofredor, que ele considere maior que do si próprio e maior que a doença. Além disso, esta abordagem trabalha também com uma série de princípios espirituais, que constituem elementos essenciais para o processo de recuperação, cujo objetivo é a abstinência – chamada de sobriedade, e uma transformação pessoal. Estes princípios são bastante variados, e procuram salientar maneiras de lidar com a vida diferentes da forma habitual com que um dependente químico em fase ativa de sua doença não costuma cultivar. Honestidade, boa-vontade, mente aberta, aceitação, tolerância são alguns deste princípios, que devem fazer parte do trabalho interior cotidiano do doente, mediando suas relações com as outras pessoas, dentro e fora das irmandades. Ao longo do filme, todas estas questões são abordadas e o processo de recuperação de John e sua vivência dos 12 Passos, são meticulosamente abordados. Ele se torna um entusiasta desta filosofia, e passa a divulgá-la em palestras e encontros, fato que acaba por auxiliá-lo na construção da sua recuperação.

Por que este assunto vem a ser comentado em um site sobre Slow Medicine? A dependência química é uma doença crônica, “incurável, progressiva e fatal”. Como toda doença crônica, pode passar por períodos de calmaria, em que o indivíduo está visceralmente vinculado ao processo de recuperação e cujo funcionamento psíquico pde aproximar-se daquela pessoa não afetada pela doença. Mas, infelizmente, as recaídas são uma realidade frequente no contexto do problema e o indivíduo afetado deve trabalhar cotidianamente para manter-se em sobriedade. Não existem “receitas de bolo” ou estratégias rígidas para sua abordagem. Muitas vezes o acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico é um caminho, seja através de abordagens individuais ou grupais, eventualmente com a utilização de medicamentos específicos, em algumas dependências, a necessidade de internações em clínicas especializadas, em particular em situações de crise, bem como a abordagem de comorbidades clínicas e psiquiátricas. O acompanhamento profissional de dependentes químicos deve trabalhar questões caras à Slow Medicine, entre elas o estabelecimento de uma sólida relação médico-paciente, que deve se consolidar ao longo do tempo – pois se trata essencialmente de uma questão de cuidado de longo prazo – baseada em uma profunda e honesta convivência entre o doente e seu terapeuta. As irmandades que trabalham com a filosofia dos 12 Passos são sabedoras desta necessidade de um esforço contínuo e persistente, muitas vezes permeadas por idas e voltas, sucessos e fracassos, para que um dependente químico possa enfrentar a sua doença e viver uma vida produtiva e saudável, como um membro ativo de sua comunidade. É neste aspecto que a ideia de uma Slow Recovery pode fazer sentido.As reuniões das irmandades de 12 Passos costumam iniciar e terminar com uma pequena oração, conhecida como a “Oração da Serenidade”:

“Concedei-me Senhor, a Serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar,
Coragem para modificar aquelas que eu posso,
E Sabedoria para distinguir uma das outras.”


José Carlos Campos Velho é médico geriatra e editor do Site Slow Medicine Brasil.

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