Sobre a sorte de envelhecer: reflexões a partir do filme “Lucky”

julho 16, 2018
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8 min de leitura

Por Carla Rosane Ouriques Couto

                                                   “Toda pessoa é um idioma à parte” (F. Carpinejar)

Num cenário de clima extremamente árido, o filme mostra o cotidiano de Lucky, 90 anos, todos eles vividos em uma pequena cidade de região desértica americana. Lucky nunca se casou, vive só, cuida de suas plantas e mantém em sua geladeira apenas uma garrafa de leite. A simplicidade de sua rotina, no entanto, não é árida e tem seus encantos. Ouve boa música, uma delas com o refrão: “tempo é amigo…por que paga e por que cobra, por que tira e por que dá...”, enquanto faz religiosamente toda manhã, cinco exercícios de Yoga. Este início do drama confirma o que diz o poeta Carpinejar: “a velhice vem aos goles. Nunca se bebe o tempo num único sorvo”.

A trilha sonora principal é um clássico do folclore americano – “Red River Valley”, que se ouve enquanto Lucky caminha a passos rápidos e largos, por toda a cidade, cumprimentando seus amigos e conhecidos, que sentem pelo velho rabugento, um misto de respeito e amor, expresso em brincadeiras e ditos que foram se construindo através dos anos como forma de comunicação. 

Lucky faz suas refeições matinais numa pequena lanchonete, onde estão seus amigos mais próximos e ao fim do dia passa no bar da Elaine. O “bom dia” de Lucky ao amigo atendente da lanchonete é invariavelmente a expressão: “você não é nada!”. Por conta de seu comportamento singular que não admite a mínima repressão a si ou aos outros, Lucky foi expulso do outro bar da cidade, e encontrou acolhimento entre os amigos do Elaine’s. Ali todos sabem que para Lucky toda autoridade é arbitrária.

Entre o café da manhã e sua happy hour, Lucky se ocupa em fazer palavras cruzadas, acompanhar programas de TV, em especial aqueles que tratam do significado das palavras. Como objeto importante em sua casa simples, conserva um grande dicionário. Certo dia entende mais profundamente o significado de “realismo” e conclui: “cada um vê uma realidade, é preciso aceitar a coisa como ela é e estar preparado para lidar com ela”. 

Um dos melhores amigos de Lucky é o também idoso Howard. Howard possui um jabuti de estimação, chamado Presidente Roosevelt. O animalzinho está desaparecido para desespero do dono, que vê nele, seu único e maior amigo. Os amigos do bar não compreendem tamanho amor, e Lucky defende e compreende a solidão de seu amigo. Solidão que ele próprio nunca sentiu. Mas acha o animalzinho interessante, porque carrega sua própria casa, seu próprio caixão até o fim. 

Numa manhã, a doce passagem do tempo segundo a percepção de Lucky, é interrompida por uma síncope. Vai então em busca de socorro médico. A cena da consulta realizada pelo também idoso, médico de família da cidade, é das mais interessantes do filme. Percebe-se ali claramente os elementos do Método Clínico Centrado na Pessoa e os princípios do movimento Slow Medicine: respeito, sobriedade, afeto, cuidado e compartilhamento de decisões entre médico e paciente. 

Lucky é saudado e recebido como um amigo. Absolutamente como Lucky, não como mais um paciente.  “Amigo! com tem passado?” – pergunta o médico, na abertura do atendimento. Após o relato do paciente e poucos exames complementares básicos, o médico lhe comunica que: “está tudo bem! Segue-se um diálogo precioso:

– Mas então é só isso? Isso pode me matar?

– Se fosse matá-lo já o teria feito…eu poderia fazer mais exames, mas acho que mostrariam o que penso ser…

– E o que é?

 – Você é velho, e continua envelhecendo…É tudo o que eu tenho. O corpo em algum momento vai falhar. Eu não quero fazer mais exames e você também não quer.

Com muita habilidade o médico lhe conta, como foi a morte do próprio pai, tranquila e sem intervenções, e que assistiu o pai perder a mobilidade e autonomia, mas “tudo fica bem se você percebe que isso é parte do processo. Meu pai morreu tranquilo, o mais importante é aceitar”. Recomenda a Lucky um cuidador domiciliar, o que este de pronto recusa, explicando ao médico que há uma diferença entre ser solitário e ser sozinho, e que sempre cuidou de si. 

A partir desse evento, Lucky inicia o seu processo de despedida da vida, relembrando os momentos mais significativos de sua jornada, muitos deles em que estava sozinho, mas os sentimentos foram tão fortes que ainda habitavam seu coração. Lembra dos preconceitos que tinha na juventude, e hoje ri…de si mesmo, percebendo quão pouco importantes eles eram. 

A singularidade da personalidade de Lucky aflora ainda mais, e ele se envolve em novas encrencas. Como proteger seu amigo Howard de um advogado que vende planos funerários. Por que fazer um “plano de fim de vida” para após a morte? Não compreende também a expressão “lar definitivo”. Mas, o que seria “definitivo”?

Ao mesmo tempo, admite para os amigos que tem medo. Relembra sua atuação como marinheiro na segunda guerra mundial, quando teve a sorte de ser um cozinheiro, não um combatente. Desta situação, veio o apelido “Lucky”, um cara de muita sorte. 

Ao final da película, Lucky comparece a uma festa infantil latina e canta: “chegou o momento de perder...” O amigo Howard desiste de procurar seu jabuti, e Lucky discursa no bar da Elaine, enquanto fuma um cigarro (uma atitude proibida ali). Mas os amigos o perdoam pois como diz: “a verdade do universo está esperando. O que somos e o que fazemos, tudo irá desaparecer e ninguém está no comando”.

Ao som da música que diz: “só estou viajando, não tenho nenhum lugar para ir”, Lucky caminha para casa, admira os cactos gigantes e brinda o expectador com um olhar final, cujo significado certamente é pessoal. A mim pareceu dizer: OK…é isso pessoal…vivam apenas! Há nesse olhar curiosidade, serenidade, aceitação, paz, empatia, compreensão, solidariedade, misericórdia (aquela que reforça a crença na vida apesar de tudo) e a grande lição: a velhice de cada um é a velhice de cada um, como a vida de cada um. Não cabem moldes, modelos, protocolos ou qualquer coisa do gênero. Se quisermos cuidar de idosos, precisamos primeiro conhecê-los, trocar olhares e percepções. 

O ator protagonista, Harry Dean Stanton, faleceu aos 91 anos, em setembro passado. Sua personalidade e trajetória pessoal guardam grande sintonia com o personagem Lucky (a última canção do filme é uma homenagem à Stanton). Foi veterano da segunda guerra, atuando como cozinheiro embarcado na Batalha de Okinawa, bastante lembrada no filme. Era solteiro, e tinha uma personalidade polêmica e genuína. Ator e personagem se confundem, e provavelmente o olhar de Lucky é o olhar de Stanton, nos dizendo: “apenas vivam, sejam vocês…até o fim, e não permitam que alguém os considere – mais um velho, mais um idoso. Cada um de vocês precisa ser olhado como único”.

Lendo algumas críticas sobre o filme, percebi que a maioria delas considera a obra, acima de tudo, uma justa homenagem ao velho ator. Um dos críticos diz que a atmosfera do filme, é um pouco “gasta”, “desolada”, “não enche os olhos do expectador”. Discordo. Nem sempre onde falta exuberância ou vitalidade explícita, falta beleza. A beleza do filme é a dos cactos, do deserto, da permanência, da convivência com o tempo e seus efeitos materiais e sentimentais, da aceitação das perdas, da coerência com seus valores até o fim, da dignidade da existência de todas as criaturas, incluindo o jabuti Roosevelt.

É também um hino à amizade, aos vínculos não consanguíneos. Lucky soube fazer amigos. Entre amigos, não há julgamento, há aceitação plena, há felicidade apenas em estar junto. Da coragem de viver e partir só, também fala o brilho do último olhar de Lucky/Stanton, parecendo nos dizer: “até breve, amigos!”

Ficha Técnica:

LUCKY (título original)

Data de lançamento 29/09/2017(88min)

Direção: John Carroll Lynch

Elenco: Harry Dean Stanton, David Lynch, Barry Henley

Gênero Drama.

Nacionalidade: EUA.

Título original: Lucky

____________

Carla Rosane Ouriques Couto é Médica de Família e Comunidade, especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Terapia Familiar e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Sente-se grata por estar vivendo um momento slow, e assim ter a sorte e o tempo de poder admirar o brilho do olhar azul da mãe Diva, que atravessa, em seu estilo único, aos 91 anos, mais um rigoroso inverno no sul. 

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