Por Ana Coradazzi
“Nada é para sempre, dizemos, mas há momentos que parecem ficar suspensos, pairando sobre o fluir inexorável do tempo.”
José Saramago
OU:
“Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as pessoas…”
Mário Quintana
Não é nenhuma novidade que o uso das diversas redes sociais para que médicos divulguem seu trabalho tenha se tornado a ferramenta mais importante de publicidade na área. Há muito que as indicações de bons médicos através do boca-a-boca se tornaram obsoletas, e nem mesmo uma análise superficial do currículo profissional é hoje considerada uma opção para conhecer melhor seu futuro médico. Nada mais natural: novos tempos exigem novas formas de comunicação e divulgação de informações. Mas algo parece fora do lugar nesse processo. Algo não se encaixa, não nos deixa confortáveis.
Não se trata de apego ao passado ou saudosismo barato: a questão é bem mais profunda que isso. O descompasso parece vir do fato de que a tecnologia (e nosso deslumbramento em relação a ela) mudou numa velocidade muito mais acelerada do que nossas necessidades e angústias humanas. Procuramos nossos médicos pelo seu número de seguidores ou por sua capacidade de produzir bons conteúdos no Instagram, mas esperamos deles a postura discreta e compassiva que víamos neles quando éramos crianças. Buscamos por soluções rápidas e simples no TikTok, mas esperamos que o resultado delas reflita a experiência e sensatez dos médicos de outrora. Talvez estejamos esperando demais das redes sociais. Provavelmente, estamos esperando demais dos médicos também.
A medicina nunca foi uma ciência exata. Seus desafios – e também sua beleza – estão no fato de que cada pessoa tem necessidades diferentes, sejam elas físicas, sociais, emocionais, sociais ou espirituais. Embora a atividade médica tenha sua base em dados e estatísticas, os números são apenas isso: sua base. A construção necessária a partir daí é complexa e única para cada paciente, o que torna a prática médica infinita em suas abordagens. Enquanto humanos, não evoluímos (pelo menos não ainda) para uma espécie homogênea cujas necessidades possam ser definidas por algoritmos e sanadas através da aplicação de protocolos padronizados, ainda que sejam protocolos incrivelmente complexos. Simplificar essa atividade a ponto de imaginar que conselhos dados por médicos em redes sociais resolverão nossas vidas ultrapassa os limites da ingenuidade: chega a ser absurdo. Um absurdo perigoso. Não me refiro aos bons perfis de profissionais que se dedicam a transmitir informação responsável e com qualidade, que ajudem as pessoas a compreender melhor a si mesmas e estimulá-las a cuidar da própria saúde. Falo do lado obscuro das redes, aquele no qual profissionais sem capacitação adequada, sem bom senso e – por que não? – sem escrúpulos se prestam a sugerir condutas a quem os procura. Um território sem qualquer fiscalização efetiva, sem normas que protejam as pessoas dos maus profissionais, e no qual as informações se dissipam à velocidade da luz é um cenário fértil para danos à saúde, às vezes irreversíveis.
Mas não é apenas o ambiente das redes, propício a charlatanices e abusos, que pode lesar as pessoas. Temos nos condicionado a procurar tudo nas redes sociais, e nosso critério mais frequente para avaliar a eficiência e idoneidade de um profissional ou de um serviço passou a ser seu número de seguidores. Artistas que não sejam ativos nas redes sociais têm suas carreiras sepultadas (quem vai ouvir a cantora com uma voz maravilhosa mas cujo perfil no Instagram não passa de uns poucos milhares de seguidores?). Lojas com perfis pouco elaborados perdem clientes o tempo todo. Com médicos não tem sido diferente. As pessoas têm buscado nas redes sociais as informações sobre os profissionais, frequentemente valorizando aqueles com redes sociais infladas de seguidores e olhando com desconfiança para os que, por falta de intimidade com a tecnologia ou por questões pessoais, optam por não estar tão presentes por lá. O risco aqui é de se deixar enganar por um perfil construído para seduzir os algoritmos por trás das redes, não sendo necessariamente comprometido com a capacidade do profissional em questão. Mas também há o risco de perder a chance de receber o auxílio de um profissional extremamente capacitado para lidar com as demandas médicas, ainda que seja um semianalfabeto nas redes sociais. É sempre bom lembrar que a qualidade da prática médica não depende da publicidade médica. Já a publicidade médica pode depender dos valores pessoais e dos objetivos de quem a exerce, e tais valores são praticamente impossíveis de acessar num relance.
Precisamos dar um passo atrás. Não se trata de ignorar as redes sociais quando buscamos auxílio para questões de saúde. O ponto aqui é termos o discernimento para compreender que a presença nas redes não é o critério principal para uma boa escolha. Ela pode ajudar a encontrar um profissional, mas é muito pouco útil para avaliar sua capacidade. Também precisamos de discernimento para entender que soluções simples e generalizadas para problemas complexos e heterogêneos nunca são uma boa ideia. Podemos, sim, nos utilizar das redes para entender como um profissional pensa, o que ele prioriza, com o que trabalha, mas seu perfil nas redes sociais é apenas parte da pesquisa necessária. Precisamos sair da superfície.
Caetano Veloso
Há ainda uma outra consequência funesta do nosso comportamento hipervalorizador das redes sociais. Ao deixarmos claro que o número de seguidores, a viralização de materiais publicados, ou qualquer outra métrica relacionada às redes são decisivos para a escolha de um profissional, provocamos uma mudança profunda no comportamento dos próprios médicos. Humanos que são, eles respondem a isso dedicando mais tempo à publicidade que aos próprios pacientes e à sua própria formação profissional Eles transformam suas prioridades, aprendem a dissimular o que possa desagradar ao público e distanciam-se do papel que nós mesmos esperamos deles: o de cuidar de nós. Como sempre adverte a filosofia da Slow Medicine, precisamos de tempo junto às pessoas para desempenharmos adequadamente nosso trabalho. A Medicina precisa de profissionais que não se distraiam o tempo todo pela sedução da mídia, determinando sua atuação pelo sucesso que atingem por lá. Não podemos esperar médicos atenciosos e sensatos, se os estimulamos a olhar sempre para longe da sua atividade primordial.
É claro que este é um assunto complexo e delicado, e não se trata de fazer uma apologia ao boicote das redes sociais pelos médicos, isso seria uma idiotice sem tamanho. As novas tecnologias que envolvem relacionamentos humanos podem ser extremamente úteis, inclusive para médicos e pacientes. Mas nenhuma tecnologia é boa ou ruim por si só: ela depende do uso que fazemos dela. Podemos mantê-la sob nosso controle, em vez de nos deixarmos controlar. Podemos limitar o peso que elas exercem sobre nossas decisões, em especial quando estas decisões dizem respeito à nossa saúde. Podemos exercitar nossa crítica com relação ao conteúdo que elas revelam, confrontando-o com informações de outras fontes. E podemos, principalmente, exigir ser tratados como humanos, e não como seguidores em potencial. Pacientes (ainda) não são consumidores a serem conquistados, embora muitos já os vejam assim. Se queremos receber um cuidado que nos respeite como as pessoas que somos, precisaremos deixar mais clara essa mensagem. Talvez possamos fazer isso aprendendo a usar nossas redes sociais com mais inteligência.
Ana Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio. Seu livro mais recente, “De Mãos Dadas” propõe um novo conceito, Slow Oncology – a Oncologia sem Pressa, e é inspirado em uma das principais obras da Slow Medicine, “My mother Your Mother“, de Dennis McCullough, geriatra americano.
Texto lúcido, sensível e verdadeiro. Equilíbrio e profissionalismo são muito necessários para o exercício da medicina com ética e responsabilidade.
Texto lúcido, sensível e verdadeiro. Equilíbrio e profissionalismo são muito necessários para o exercício da medicina com ética e responsabilidade.
Excelente! Um bálsamo de ler, sinto me muito aflita na minha área por não me sentir à vontade e com tempo para publicações de atendimentos ou fórmulas mágicas
Excelente texto. Dá um alívio.
Particularmente, não me identifico com essa exposição em rede social. Sei que o mundo mudou, e as demandas também. Mas é além do que quero pra mim.
Não gosto nem de “produzir” conteúdo. Gosto de ser médica.