Artigo publicado no site italiano Quotidianosanità, elaborado pela Diretoria da Associação Italiana de Slow Medicine, traduzido para o português pelo nosso colaborador Andrea Bottoni.
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O Cuidado, em todos as suas dimensões
Os trágicos eventos atuais estimularam muitas reflexões às quais acrescentamos algumas considerações a partir da ótica da Slow Medicine: não pelo prazer de dar explicações, procurar erros ou identificar culpados, mas com o objetivo de usar esta experiência dramática para tirar algumas lições dela.
Frequentemente, durante um evento dramático, a natureza humana mostra uma inclinação peculiar em fazer listas detalhadas de todos os erros cometidos e acerca do que deveria ser feito no futuro: respeitar o meio ambiente, limitar o consumo, melhorar as estratégias de prevenção, reorganizar os serviços de saúde, reduzir as desigualdades, repensar o sistema econômico, dedicar mais recursos à pesquisa, etc. Todos elementos importantes, que demandam a máxima atenção, mas que não devem nos fazer esquecer que a vida também inclui as limitações e a morte.
Considerando o que aconteceu durante a pandemia, entendemos que algo deveria mudar na maneira como encaramos os momentos cruciais da existência, durante os quais as necessidades da vida e as características da morte se aproximam, entrelaçam, misturam e manifestam-se com situações opostas.
Nestes dias, devido a esta situação complexa, toda a atenção se voltou para tecnologias, respiradores, oxigênio, unidades de terapia intensiva, tratamentos inovadores, vacinas, máscaras: questões absolutamente importantes, que foram tratadas com louvável esforço.
Por outro lado, tem sido escassa a atenção prestada à pessoa, aos seus afetos, aos sentimentos e ao enorme sofrimento causado pela súbita separação, absoluta e cruel em qualquer relacionamento humano. São comoventes histórias de avós, pais, cônjuges, filhos levados de ambulância, sem a possibilidade de lhes dar uma saudação, uma palavra de conforto, um carinho, um olhar; falecidos na solidão, longe dos entes queridos, em ambientes estranhos, desorientados e oprimidos , numa luta intensa pela sobrevivência.
Nesse sentido, provavelmente a gestão da assistência deveria ter sido menos centrada no hospital, mais atenta à saúde pública, ao território e às equipes de saúde que, principalmente no início, enfrentaram a pandemia sem muitos recursos e com a grande responsabilidade de tomar decisões.
Como combinar pandemia e Slow Medicine
Mesmo em uma emergência, mesmo neste tempo cheio de decisões dramáticas, o pensamento Slow é pertinente. O conceito Slow aplicado à medicina não significa “lento”, não significa necessariamente fazer as coisas com calma. Remete a uma maneira de praticar o cuidado, tanto no manejo de situações clínicas crônicas, como em uma emergência. O adjetivo Slow inclui as três características explicitadas no manifesto do movimento: uma Medicina Sóbria, Respeitosa e Justa, que remetem aos três princípios fundamentais – caridade, autonomia e justiça – que a bioética há cinquenta anos propõe como espinha dorsal da prática médica na era moderna. Esta não é uma fórmula mágica que ofereça, com efeito garantido, os cuidados de saúde dos nossos sonhos. Os três adjetivos nos remetem a critérios de qualidade, que nos permitem uma avaliação cuidadosa de nossos comportamentos. A pandemia ainda continua, mas em tempos menos conturbados (atenção: este artigo refere-se à realidade atual da Pandemia na Itália), e é apropriado refletir sobre os dias que passaram e a maneira como tratamos os pacientes e como combatemos a epidemia. Sem nenhuma intenção acusatória. Mas é um fato que nos dias mais difíceis da luta contra o COVID-19, emergiram os pontos fortes e os pontos fracos do nosso sistema. Tivemos comportamentos exemplares junto com os outros que nos deixaram perplexos. Confrontar serenamente estes comportamentos com a prática da medicina na forma Slow pode ser instrutivo. Acima de tudo, isso pode nos estimular a melhorar. Será útil em tempos de pandemia, bem como em tempos mais tranquilos. O que é sóbrio, respeitoso e justo nos momentos em que você se depara com escolhas que contemplam a morte e precisa decidir por si e pelos outros? Quais conselhos e qual apoio pode ser dado às pessoas, aos profissionais e às instituições, no que diz respeito a lidar com uma pandemia dessa magnitude? Sobriedade, ou seja, o cuidado na medida certa: “O médico age de acordo com o princípio da eficácia dos tratamentos, respeitando a autonomia da pessoa, levando em consideração o uso adequado dos recursos”. Este tríplice conceito do profissionalismo médico foi resumido com estas palavras na versão de 2006 do Código de Deontologia Médica. O primeiro critério – fornecer tratamentos eficazes – foi cada vez mais avaliado não apenas com o critério de validação científica de tratamentos, mas também com sua quantidade. A Slow Medicine aderiu ao lema: “Less is more”, promovendo o correspondente italiano “Fazer mais não significa fazer o melhor”. Para evitar mal-entendidos: isso não significa fazer o mínimo possível, mas procurar a medida certa. Por esse motivo, os profissionais são convidados a buscar um equilíbrio, identificando e excluindo pelo menos cinco práticas rotineiras em sua área que não mostraram uma melhoria para a saúde. O movimento internacional Choosing Wisely aceitou o desafio, promovendo uma série de orientações bem fundamentadas de práticas com risco de não serem adequadas, derivadas da competência de profissionais e de evidências científicas. Certamente, é verdade que “às vezes menos é mais, às vezes mais é mais, e muitas vezes simplesmente não sabemos” (Lisa Rosenbaum, New Engl J Med 2017). Mas nos perguntamos se a incerteza causada por uma epidemia para a qual atualmente não temos medicamentos eficazes justifica “fazer todo o possível”, e até “prolongar a vida a qualquer custo”, ou se, mesmo neste caso, a base de nossas ações não deveria ser a expectativa razoável de trazer mais benefícios do que danos. É o princípio da proporcionalidade da assistência, que leva em consideração o fato de pacientes idosos frágeis em condições tão críticas que exigirem intubação por qualquer motivo, incluindo o COVID-19, apresentarem resultados de sobrevida muito baixos e baixa qualidade de vida. Nesse cenário, em que as escolhas foram mais trágicas pela grande concentração de casos que às vezes obrigavam os médicos a decidir em quem iniciar os cuidados intensivos, consideramos a iniciativa da SIAARTI (Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva) exemplar, considerando os critérios para fazer escolhas através do documento “Recomendações de ética clínica para tratamentos intensivos e sua suspensão em condições de exceção de desequilíbrio entre necessidades e recursos disponíveis” (6 de março de 2020).
Isso implica o desejo de trazer luz para a área cinzenta da clínica onde as decisões são tomadas sem explicação e compartilhamento com outros profissionais, ou seja, a crença de que certas coisas são feitas, mas não ditas, prevalece. Com um termo que soa enigmático em italiano, essa atitude de explicar os critérios em inglês é chamada de accountability. Corresponde à tentativa de contabilizar na medicina os critérios adotados para as escolhas. Isso não aconteceu apenas na Itália: com a disseminação da pandemia, médicos de muitos outros países enfrentaram o crescimento exponencial de pessoas com a necessidade de cuidados intensivos, questionaram-se sobre as decisões a serem tomadas antes da escassez de vagas em unidades de terapia intensiva, equipamentos, serviços de saúde de apoio. No passado, prevalecia o critério de escolhas feitas “na ciência e na consciência”. Mesmo quando ambas estão realmente presentes, é necessária transparência nos nossos dias, o que equivale a relatórios. Um relatório do trabalho de alguém que não se dirige ao judiciário, como acontece na hipótese de denúncias, mas aos próprios cidadãos. A accountability alimenta a confiança daqueles que precisam necessariamente confiar na “ciência e consciência” dos profissionais; mas eles se sentem mais seguros pois não lhes é exigida confiança cega. Isso ocorre quando os critérios de escolhas e decisões são tornados públicos pelos próprios profissionais.
Cuidados respeitosos: uma aliança entre profissionais e pacientes
O respeito com o qual o movimento Slow Medicine promove vai além da proteção da privacidade e da delicadeza necessária para cuidar de uma pessoa sob tratamento. Ela decorre do segundo princípio que caracteriza o profissionalismo do cuidado moderno: o respeito à autonomia. Isso não deveria faltar, mesmo quando as pessoas não são mais autônomas no sentido social. Aqui está outro termo do qual é difícil encontrar o equivalente em italiano: empowerment. Isso significa que as decisões clínicas são tomadas com o paciente, não para ele. Esta modalidade se estende a todas as situações, incluindo as extremas. A condição de fim de vida não é excluída: compartilhar caminhos e escolhas é uma condição indispensável para o exercício do empowerment. Informação e consentimento (mesmo na forma redutiva e burocratizada do que é difundido na prática clínica sob o nome de consentimento informado) quase desapareceram dos cuidados prestados na era da pandemia. Considere-se quase um luxo que não podemos nos dar, como um prato gourmet em tempos de carestia, especialmente em face a uma grande quantidade de pacientes críticos. Mesmo as informações para os familiares de pessoas internadas em umidades de terapia intensiva e nas casas de repouso para idosos têm sido extremamente difíceis e muitas vezes muito reduzidas devido às limitações impostas pelas necessidades de segurança e privacidade. No que diz respeito das vontades e preferências do paciente, a recomendação nº 8 do movimento internacional Choosing Wisely sobre COVID-19 merece menção especial: “Não intubar pacientes frágeis sem conversar com os familiares sobre as diretrizes antecipadas do paciente, sempre que possível”. Essa atenção define o perímetro da boa medicina. “Sempre que possível”, é claro; mas antes de tudo, devemos reconhecer o direito à cidadania na medicina de nosso tempo, mesmo em situações de emergência. O documento da SIAARTI mencionado acima vai na mesma direção, pois entre suas recomendações prevê “considerar cuidadosamente a possível presença de desejos anteriormente expressos pelos pacientes por meio de Diretivas Antecipadas de Vontade e, em particular, o que é definido através de planejamento compartilhado do cuidado”. Quanto ao relacionamento com os familiares, foi publicado um documento elaborado por diferentes sociedades científicas italianas SIAARTI, ANIARTI (Associação Nacional Enfermeiros de Área Crítica), SICP (Sociedade Italiana de Cuidados Paliativos) e SIMEU (Sociedade Italiana de Medicina de Emergência e Urgência) , no dia 18 de abril de 2020, “Como se comunicar com os familiares em condições de completo isolamento“. A sensibilidade demonstrada neste caso por médicos e enfermeiros, paliativistas e especialistas em emergências-urgências e dá corpo ao significado de “cuidados respeitosos” na “Slow Medicine”, não apenas para os doentes, mas também para os familiares, e insere a comunicação como parte integrante do caminho do tratamento. Muita perplexidade suscita sobretudo a ausência dos cuidados paliativos no cenário pandêmico. “Morrer mal de Coronavírus é uma realidade com números assustadores que traça o perfil de uma tragédia dentro de uma tragédia”, lembra o deputado Giorgio Trizzino (ex-diretor do Hospice Civico de Palermo). A noção muito difundida de que os cuidados paliativos são reservados para pacientes com câncer e uma alternativa à intervenções com intenções curativas também pesaram nesta situação de crise. Ainda mais se eles são organizados como uma transferência de habilidades, quando “não há mais o que fazer”, dos especialistas da cura para outros especialistas, os paliativistas. Ainda está longe de se tornar um lugar comum entre todos os profissionais o slogan que os pioneiros da Medicina Paliativa na Itália fizeram desde o início: “Quando não há mais o que fazer, há muito o que fazer”. Infelizmente, em alguns casos, mesmo estruturas como hospices, dedicadas justamente para acompanhar o último trecho da estrada, para aliviar dores e sintomas, para tornar a morte mais digna, não foram usadas conforme estas orientações e a morte ocorreu em um estado de abandono. Embora algumas vezes, as instituições de longa permanência para idosos tenham sido usadas como hospice, não no sentido apropriado, mas como um lugar para morrer. Até os pacientes do COVID-19, quando os tratamentos se mostram ineficazes, têm o direito de “morrer bem” em qualquer ambiente em que estejam, através do controle dos sintomas e do acompanhamento psicológico e espiritual.Por fim, não se pode esquecer que a solidão e o medo marcaram as experiências das pessoas, pacientes em todos os estágios da doença, mas também dos profissionais de saúde, e que as consequências psicológicas provavelmente persistirão por muito tempo.
Recursos alocados e organizados com justiça
Provavelmente a pandemia foi mais grave em algumas regiões também porque a organização não estava preparada o suficiente para enfrentar um evento imprevisível, pelo menos nos moldes, tempos e dimensões em que ocorreu. O cobertor era muito curto e nem todas as pessoas infectadas conseguiram os cuidados de que precisavam. Pensamos nas deficiências dos programas de saúde pública para conter as infecções, dos serviços domiciliares, de uma rede de assistência territorial, dos equipamentos de proteção individual para os profissionais, dos leitos nos hospitais, dos serviços de cuidados paliativos e das vagas nas unidades de terapia intensiva. Até a capacidade de lidar com uma emergência tem um termo técnico: em inglês, é preparedness. Podemos traduzir como preparação, mas implica habilidades muito específicas para lidar com eventos inesperados, como planejamento, fornecimento de recursos e habilidades multidisciplinares, a capacidade de intervir. A preparação é o oposto da atitude supersticiosa, do tipo “espero que tudo dê certo” … De fato, nossa preparedness nunca foi capaz de funcionar. A primeira reação à onda de pacientes com sintomas de insuficiência respiratória aguda foi a busca por respiradores mecânicos e locais de internação, especialmente terapia intensiva, em vez de fortalecer o tratamento domiciliar desde os estágios iniciais da doença. Não foram identificadas e organizadas estruturas intermediárias que servissem de filtro ao hospital e de assistência a pacientes menos graves, confiando seus cuidados e isolamento aos familiares, sem um suporte assistencial adequado. Esses serviços, no entanto, podem ser aprimorados em situações de emergência, como, por exemplo, com o apoio das Unidades Especiais de Continuidade Assistencial, mas não podem ser criados a partir do zero, se ainda não houver uma ampla estrutura de serviços, de profissionais e de programas bem testados nos quais poder-se apoiar. A pandemia revelou a não adequação dos serviços de saúde pública e de comunidade e as limitações culturais da programação centradas quase exclusivamente em tecnologias e especialização. De repente, a ordem mudou e surgiram, com toda a gravidade, problemas organizacionais e, especialmente, as deficiências da política de saúde, a destinada a prover a alocação macro de recursos e sua finalização. Quando falamos sobre o território, não queremos dizer um lugar físico, mas uma rede estruturada de serviços que penetram no tecido social da comunidade de referência. Nesse contexto, o médico de família não pode ser um elemento separado do sistema, ele deve ocupar um lugar de destaque dentro da equipe grupo multiprofissional com vínculos ágeis e bem coordenados com: serviços de prevenção primária, serviços de atendimento domiciliar, especialistas de apoio, família, associações de voluntariado, serviços sociais, hospice, ILPIs, etc. É somente em um contexto territorial bem estruturado, que os pacientes podem receber os cuidados de que precisam sem serem obrigados a recorrer indevidamente ao hospital, podendo usar todos os recursos da comunidade para, na medida do possível, deixar as pessoas dentro do contexto familiar e social de referência. Nossa esperança é que, à luz do que aconteceu, seja iniciada sem demora uma radical renovação da organização do cuidado, a ser realizada sob uma perspectiva sistêmica, levando em consideração que a especialização das competências e a integração dos profissionais e das atividades entre hospital e território devem acontecer em completa sintonia, de acordo com programas estruturados e compartilhados. No território, em especial modo, deve-se perceber que os serviços não se baseiam na hierarquia, nas ordens e nos procedimentos, mas nos princípios que caracterizam o funcionamento das redes, ou seja, por meio de agregações funcionais flexíveis, trabalho em equipe multiprofissional, serviços adequados às necessidades, aos estímulos e aos apoios provenientes da comunidade de referência e, acima de tudo, que atuam de maneira sóbria, respeitosa e justa.
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Andrea Bottoni, italiano, de Roma, é médico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, onde fez sua Residência em Nutrologia. Especialista em Medicina Desportiva na UNIFESP, tem Título de Especialista em Nutrologia e em Medicina do Esporte, é Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP. Além disso cursou o MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper e Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo. É instrutor de Mindful Eating pela UNIFESP, vive no Brasil, em São Paulo, há 24 anos, felizmente casado com Adriana, também médica.