Por Ana Coradazzi
“Não há segredos que o tempo não revele.”(Jean Racine)
“Os curiosos efeitos colaterais da transparência médica”. Este foi o título escolhido pela médica Danielle Ofri para um artigo que ela publicou recentemente no The New Yorker, intrigante desde o primeiro parágrafo. Danielle inicia o texto confessando seu constrangimento em registrar todas as hipóteses diagnósticas que lhe vieram à mente durante a avaliação de uma paciente com anemia. Desde 2016, a legislação americana prevê o livre acesso dos pacientes a seus registros médicos, em tempo real, sem restrições de dados, inclusive às anotações médicas, e a perspectiva de ter suas anotações escrutinizadas pela paciente paralisou Danielle. À primeira vista, pode parecer uma bobagem que um profissional se sinta desconfortável com algo assim. Posso até ouvir alguém gritando, no fundo da sala: “Quem não deve não teme!” De fato, tendemos a sempre considerar a transparência como algo positivo e desejável, o símbolo máximo da honestidade e da integridade, que permite maior segurança e reduz a possibilidade de erros ou fraudes. Mas eu imediatamente me solidarizei com a autora do artigo, sentindo em mim a mesma preocupação e constrangimento de saber que tudo o que registro nos prontuários dos meus pacientes poderia ser lido por eles ou por seus familiares a qualquer momento, sem que minha permissão (ou a ordem de um juiz) fosse necessária. Não se trata de receio de que descubram eventuais erros médicos. Estamos falando de algo bem mais profundo que isso.
O artigo de Danielle é longo e aborda com excelência todos os pontos que merecem uma avaliação mais cuidadosa: o desencadeamento desnecessário de ansiedade nos pacientes ao lerem informações que lhes são ininteligíveis; o acesso de familiares a dados que o paciente gostaria de manter sob sigilo; a eventual hesitação de pacientes em contar tudo o que gostariam (ou deveriam) para seus médicos; a mudança de comportamento dos médicos ao saberem que estão sendo observados; entre outros. Mas vou pedir licença para fazer um recorte do que me pareceu mais crucial nisso tudo: a perda de informações, sejam elas técnicas ou pessoais. A meu ver, isso é algo de enorme relevância no cuidado que pretendemos oferecer às pessoas.
Fiquei algum tempo imaginando como seria vivenciar essa “suspensão das cortinas” no atendimento a pacientes. Na verdade, imaginei como seria a experiência específica de um paciente acessando as anotações de seu médico logo após a consulta e descobrindo que, entre as possibilidades para sua dor na coluna, está uma metástase de um câncer de próstata que ele julgava curado há alguns anos. Esta é uma hipótese plausível para um paciente com esta queixa e que tenha um histórico oncológico, mas não necessariamente é a hipótese mais provável. Se estivermos falando de uma neoplasia de comportamento indolente, adequadamente tratada em seu estágio inicial e sem sinais de recidiva há anos, a possibilidade de uma metástase pode ser remota, devendo constar no prontuário apenas por uma questão de raciocínio clínico. É assim que nós, médicos, somos treinados: pensamos em diagnósticos diferenciais e os colocamos em ordem de probabilidade e de gravidade, buscando sempre descartar o que for mais grave e procurar pelo que é mais provável. Mas não é razoável imaginar que o paciente terá um raciocínio semelhante – ele não tem o conhecimento e o treinamento necessários para isso (sem falar na distorção que suas emoções afloradas podem causar em sua capacidade de compreensão). É muito mais provável que, ao ler a hipótese registrada pelo médico, ainda que seja a mais remota de todas, ele se convença imediatamente que o câncer retornou e que seus dias estão contados. Não me parece justo que alguém passe por algo assim.
Pensei na infinidade de informações técnicas que costumo registrar nos prontuários e senti um calafrio na espinha. Não me refiro apenas a possíveis diagnósticos diferenciais que possam assustar meus pacientes, mas a exames que pretendo solicitar, a possíveis tratamentos futuros que costumo deixar anotados (“após progressão tumoral, discutir possibilidade de tratamento X ou Y”), ou até mesmo a resultados de exames já realizados nos quais minha interpretação foi diferente da de outro colega. Tudo isso faz parte da atividade médica: diagnosticar, tratar, reavaliar, desenhar estratégias futuras. Mas nem de longe são atividades corriqueiras para a maioria dos pacientes, e comunicá-las de forma adequada exige técnica, tempo e empatia. Um dos principais alicerces da boa comunicação entre médicos e pacientes, em especial quanto as notícias não são boas, é que o profissional transmita as informações de forma gradual, no ritmo que o paciente deseje e/ou consiga compreender, e de maneira empática. Acho pouco provável que a árida leitura de um prontuário consiga cumprir este papel.
Fiquei imaginando como seria se eu estivesse num avião e me fosse permitido acessar tudo o que está acontecendo na cabine de comando, incluindo todas as informações do imenso painel de controle e até as conversas entre os pilotos. Eu ficaria sobressaltada a cada luz diferente que se acendesse, ou a qualquer bip-bip-bip que começasse a tocar. Certamente entraria em pânico se, durante uma turbulência (por menor que fosse), ouvisse os pilotos descontraidamente fazendo alguma piada sobre a queda de uma aeronave ou algo do gênero. O que para um piloto treinado é um evento corriqueiro, para mim é a iminência de uma tragédia. E pensar que tudo o que eu desejava era um vôo tranquilo nas mãos de uma tripulação experiente… Por um momento, vislumbrei o mal que eu posso causar aos pacientes ao mostrar, indiscriminadamente, os bastidores do meu trabalho. Sendo sincera, eu provavelmente optaria por não registrar tudo o que penso ou planejo nos prontuários, guardando para mim as informações que pudessem ser mal interpretadas. Talvez eu até tivesse um prontuário paralelo para que meu próprio raciocínio não se perdesse de mim (fica a dica). Acho que muitos colegas agiriam da mesma forma, e o que era para ser transparente ficaria ainda mais obscuro. A consequência direta disso seria o empobrecimento da prática clínica, tanto para o próprio médico (que veria sua prática clínica limitada e precisaria confiar em sua memória falível) quanto para o trabalho multiprofissional, visto que outros profissionais de saúde que se baseassem nos registros disponíveis poderiam ficar confusos ou até ser induzidos a erros. Estaríamos abrindo mão de uma troca de informações que sempre foi extremamente valiosa e do compartilhamento de ideias diversas sobre o mesmo caso. A pluralidade de visões sempre resultou em melhores resultados para os pacientes, principalmente em casos mais complexos, e restringir-la provavelmente comprometeria esses resultados. Em última instância, a falta de privacidade resulta em perda de autonomia profissional. No artigo de Danielle, o filósofo Nguyen descreve magnificamente essa questão: “Em qualquer esquema de transparência em que os especialistas são transparentes para os não especialistas, há uma perda significativa de informação”. Para mim, faz todo sentido.
Mas há ainda um outro ponto que atravessou meus pensamentos: o impacto disso tudo nas relações humanas que se estabelecem entre médicos e pacientes. Não são informações meramente técnicas que passam a ser acessadas pelas pessoas. Eu, particularmente, ainda cultivo o hábito de escrever notas sobre minhas impressões pessoais, bem como lembretes que me ajudem a estabelecer com os pacientes um vínculo humano mais profundo. Algumas são notas simples e inócuas, algo como “Sandra está entusiasmada com a chegada iminente da primeira neta, vai se chamar Paula”. Anotações assim me ajudam a aprofundar vínculos e compreender o que é importante para os pacientes. Mas há outras que, embora me ajudem a identificar situações complexas e até de risco, poderiam causar um problema gigantesco se fossem acessadas diretamente pelo paciente: “A esposa me relatou em separado, após a consulta, que José tem bebido cachaça diariamente; acessar essa questão no retorno”; ou “Marli estava muito calada hoje, me pareceu extremamente constrangida com a presença do esposo; talvez esteja sofrendo algum tipo de abuso”. Algumas especialidades médicas ficariam ainda mais impactadas com essa transparência irrestrita: imagine a dificuldade de um psiquiatra ou psicólogo para descrever dados relevantes sobre a saúde mental do paciente sem expô-lo, sem que ele se sinta julgado e, ao mesmo tempo, sem negligenciar dados importantes… Sentiu meu calafrio na espinha?
Um dos principais pilares da Slow Medicine é a Individualização. Compreender os valores, o contexto e as necessidades de cada paciente é parte importante da prática médica sem pressa. São informações que muitas vezes transcendem a esfera técnica e envolvem relatos bastante particulares, percepções do profissional e até mesmo sua intuição, lapidada por seus muitos anos de prática clínica. Como em todas as relações humanas, a exposição irrestrita de nossas impressões pessoais, preocupações ou até mesmo informações íntimas pode ser devastadora para a confiança mútua. Talvez a transparência plena se revelasse uma ótima estratégia se a medicina fosse uma atividade estritamente técnica, onde 1 + 1 é sempre igual a 2. Mas não é. A medicina tem seu quinhão de arte. Ela se utiliza da emoção e das complexas relações humanas para ajudar as pessoas. Me pergunto se é sábio ou até prudente prescindir dos benefícios que o acesso cauteloso às informações pode proporcionar em nome da praticidade do acesso irrestrito a tudo, a qualquer momento, em qualquer contexto, de qualquer lugar.
Mais uma vez, talvez seja o momento de permitirmos que o bom senso prevaleça e possamos achar um caminho do meio, bem ao estilo slow. A transparência de informações é, claro, benvinda. Mas talvez possamos limitá-la ao que é realmente útil e seguro aos pacientes. Não se trata de uma censura autoritária, e sim de respeito humano (inclusive pelos profissionais). Temos inteligência e tecnologia suficientes para achar uma saída que proteja a todos e enriqueça as já tão deterioradas relações clínicas de hoje. Que possamos usá-las em benefício de todos nós.
*Imagem de Bénédicte Muller, utilizada também no texto original de Danielle Ofri
**O texto original de Danielle Ofri pode ser acessado clicando aqui.
Ana Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Oncologia Clínica e pós-graduada em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio. Seu livro mais recente, “De Mãos Dadas” propõe um novo conceito, Slow Oncology – a Oncologia sem Pressa, e é inspirado em uma das principais obras da Slow Medicine, “My mother Your Mother“, de Dennis McCullough, geriatra americano.
Ana – lendo seu texto, foi como a ouvisse narrar. Obrigado.
Parabenizo a autora pela clareza em expor difíceis questionamentos para essa questão. Sim, o caminho do meio se vê necessário, ao meu ver. Em questões onde o saber é assimétrico (embora se precise fazer chegar ao paciente de forma simétrica e compreensivel) existirão sempre os “misunderstandings”, próprios do que se deseja ler e/ou ouvir. Prontuários paralelos, para facilitar e humanizar o atendimento médico, com suas impressões e dizeres pessoais, seriam importantes. Nem tanto ao mar…..nem tanto…..
Ótima colocação. Entendo e até concordo com o posicionamento, porém, gostaria de destacar 2 questões pessoais ocorridas: 1- em que pese a existência de relatos incompreensíveis para mim, como leiga, acessar o prontuário da minha mãe, que faleceu de covid em abril de 2021, me trouxe um pouco de alento, já que ela faleceu sozinha, no hospital, não pudemos vê-la e nem despedir. Esse prontuário me deixou um pouco mais próximo dela, embora ele tbm tenha me causado uma certa agonia, preferi ficar com o pouco de conforto que ele conseguiu me trazer. 2-o tal prontuário paralelo. Me forneceram um prontuário, mas quando acionados na justiça, por uma outra questão, nada relativa as decisões médicas ou tratamentos realizados, o hospital forneceu um outro prontuário, diferente daquele que haviam me entregado quando ela faleceu. Esse novo e diferente prontuário, tinha inclusive assinatura, ao que parece da minha mãe, com autorizações dadas por ela, que não tinha sequer condições de avaliar e dá-las naquele momento (letra toda trêmula e ilegível)e que a família (eu, meu pai e irmã) sequer fomos consultados. Esse novo prontuário me deu raiva e vontade de processar a equipe médica e o hospital por essa conduta. Porém, eu estava “morta” por dentro, tendo que ser a forte da família, resolvendo muitas questões e preocupada com meu pai, então, precisei deixar pra lá e seguir em frente, para conseguir sair do fundo do poço, o lugar mais visitado do mundo, conforme a Cris Guerra escreveu.