Por Jequélie Duarte
“Tudo o que importa é feito de palavras! Tudo o que nos importa no cuidado é a saúde daqueles de quem cuidamos, por isso as palavras que estes nos dirigem, assim como aquelas que dirigimos a eles, são tão significativas e preciosas.” (José Ricardo. C. M. Ayres)
Já passava da hora do almoço, em um domingo ensolarado. Eu finalizava minhas atividades do dia no hospital, sentindo uma enorme satisfação por estar (finalmente!) a apenas alguns minutos de experimentar o mundo lá fora, sensação que só quem trabalha aos domingos ensolarados compreende.
Oi, tudo bem? Você é a infectologista? Que bom que te encontrei. Você poderia ir ao leito 802 conversar com a filha do paciente? Ela está bastante exaltada, diz que não está entendendo sobre o tratamento, pois cada um fala uma coisa, você pode ir lá explicar?
Suspirei. Já havia vivido essa situação tantas vezes, o suficiente para imaginar que havia ali uma pessoa resistente ao tratamento proposto pela equipe ou uma equipe pouco hábil em comunicar o plano de tratamento. Ou, mais provável ainda, as duas coisas. Qualquer que fosse o cenário, não me parecia uma situação animadora para lidar naqueles momentos finais de turno, em um domingo ensolarado. Suspirei de novo. E disse que sim, tudo bem, eu posso.
Mal entrei no quarto 802, já preparada para encontrar a tal pessoa resistente…
Oh! Há quanto tempo! Que bom que você está aqui hoje, quero mesmo falar sobre o tratamento do meu pai, preciso da sua ajuda…
Suspirei mais uma vez, deixei o domingo de sol lá fora e desloquei minha atenção para onde meu corpo já se encontrava.
No quarto branco do hospital, não entrava a luz do sol pela qual eu ansiava. Não era possível saber se era dia ou noite, menos ainda diferenciar entre domingos, segundas e quartas-feiras. No centro, havia uma cama onde encontrava-se um homem idoso e bastante frágil. Sonolento, não falava, movia-se pouco, quase não comia. Existia por um triz. Ao seu lado, uma filha tão amorosa quanto aflita. Ao perceber toda a cena, relembrei que já havíamos nos encontrado antes exatamente naquela mesma posição. O pai na cama; de um lado, a filha; do outro lado, eu. Não me lembrava absolutamente o que havia acontecido à época, mas a aflição da filha era tão transbordante que ficou gravada na memória do meu corpo e parecia repetir-se agora.
Você se lembra da outra vez que estivemos aqui? Quando tudo isso começou… eu fiz de tudo para ter o meu pai de volta como antes. Eu tinha a certeza de que ele poderia se recuperar completamente caso recebesse um tratamento bom de verdade. Me irritei com muita gente desse hospital, por achar que não estavam colocando esforço suficiente para deixar o meu pai exatamente do mesmo jeito que era antes de vir pra cá. Mas houve um dia em que você veio vê-lo porque estava com uma nova infecção, e enquanto me explicava sobre os exames e o tratamento, disse que meu pai naquele momento era como uma porcelana… e aí eu entendi tudo. Você se lembra disso?
Não. Eu não lembrava. Eu disse mesmo aquilo? Eu nem sou assim tão entendida de porcelana…
Mas me pareceu uma metáfora interessante: algo valioso, durável, belo, inteiriço… porém, uma vez quebrado, não volta a ser como antes. Ainda que se colem os pedaços e encontre uma nova beleza, sempre manterá as marcas dos fragmentos e da perda de resistência.
Olhei novamente para a cama. Ele estava calmo, respirava sem esforço, quase parecia feliz. Mas sim, era possível ver ali marcas de quebras, a ruptura com uma vida anterior que não mais existiria.
Você acha que essa infecção vai melhorar, doutora?
Sim, na verdade ela já está melhorando e em breve o tratamento da infecção será encerrado. Mas é possível que ocorram outras, cada vez mais frequentes…
Ela me olhou, denunciando que já havia entendido tudo novamente.
Silenciosamente, indagava a mim, ao pai, a si mesma. Seria aquela, mais uma vez, a porcelana quebrada sendo colada, até que os cacos ficassem tão miúdos que não haveria mais como restaurar?
Apenas acenei.
Eu sei que gostaria de ver novamente o meu pai exatamente como era há alguns anos. Mas isso não vai acontecer, né?! É difícil aceitar a velhice, a doença, pensar… na morte? Mas eu olho para ele e consigo entender.
De alguma forma, senti que o sol de fora também aquecia o ambiente ali dentro.
No caminho de volta para casa, algumas horas depois, compreendi que não havia feito nenhuma intervenção significativa para mudar o curso da vida – e da morte – daquele homem na cama, nem de sua filha. Mas sem querer, havia dito uma única palavra que, para ela, mudou tudo.
Por-ce-la-na.
Que poder tem uma simples palavra diante da vida? A vida inevitável, implacável, que acontece a despeito das palavras que escolhemos para narrá-la. A vida que caminha inexoravelmente para a morte. A vida grandiosa diante das palavras, tão ínfimas.
Mas se é irrevogável e finita nossa existência, são as palavras que nos dão indícios das experiências imperscrutáveis e delineiam os sentidos que damos para elas. Ante a enormidade da existência, ao final o que importa são as delicadezas com que tecemos o existir e o cuidar.
Tudo o que importa é feito de palavras.
Jequélie Duarte é médica infectologista, professora, pesquisadora pós-graduanda em Saúde Coletiva (FMUSP) e poeta amadora. Escreve aos domingos na Inspira, uma newsletter sobre saúde, cuidado, cultura e humanidades.
Um texto belo e delicado para iniciarmos mais um dia, em que pronunciaremos tantas palavras, algumas causarão impactos duradouros na vida das pessoas. Muitas vezes os que pronunciam nem conseguem enxergar o poder que elas têm, mas elas marcam profundamente a vida dos que ouvem.
Palavras que confortam os médicos também.