A memória é o essencial, visto que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se combinando recordações.
A velocidade é parte da vida contemporânea. A informação chega a nós permanentemente, de todos os lados, de todas as formas, num fluxo inesgotável, pautado pela rapidez. Pensemos numa viagem, há alguns milênios, quando o ser humano, em sua infância neste planeta, buscava a caça. Muitas vezes isso demorava dias ou semanas. Ao voltar, depois de provavelmente tentar contar aos outros as peripécias de sua viagem, com os rudimentos de sua linguagem, buscava deixar o registro desta história gravado nas paredes das cavernas que vivia.
Mais tarde, com a escrita, os registros eram elaborados e lapidados vagarosamente, e constituíam a forma de construir memórias, às vezes enriquecidos de desenhos e pinturas. Muitos de nós leram, encantados, ‘As viagens de Marco Polo‘, em que ele contava histórias fantásticas e extraordinárias do império de Kublai Khan e do longo caminho que percorreu até chegar lá. O advento da fotografia mudou nossa forma de registrar as viagens. Os cartões postais, que fizeram parte da vida por tanto tempo – aquele amigo, aquele parente, próximo ou distante, que se fazia presente, de repente, em nossas vidas, com a chegada pelo correio, muitas vezes com uma distância de meses de seu envio, de uma correspondência na forma de um cartão – a paisagem idílica, as montanhas nevadas, ou aquele café em uma cidade mítica, que existia em nossa imaginação… O mundo era maior, e longe era um conceito real. Este mundo mudou. A globalização nos aproximou, virtual e concretamente. As pessoas se deslocam celeremente pelo globo, registrando, em tempo real, detalhes de suas vidas nas redes sociais. Mas nossa memória, ainda se constrói, se lapida, na voracidade de nossos tempos?
Foi com estas ideias em mente que resolvi contar a história de nosso encontro em um ritmo mais lento. Registrar, pensando e elaborando como fazê-lo. Foi uma longa gestação, para que o Iº Encontro Paulista de Slow Medicine pudesse acontecer. Elaborar conteúdos, pensar em quem poderia falar. Reuniões, contatos, troca de emails. Divulgação. Um projeto que vai se concretizando aos poucos, tomando forma, angariando ideias e simpatizantes. Até que, em uma manhã de sábado, de sol e de luz, abrimos as portas para que as pessoas – a principal razão para que o encontro aconteça – entrem, tomem seus assentos e passem a ouvir. E ver e refletir, e pensar e perguntar e trocar ideias. Este é o processo de construção de uma memória. E, em tempos céleres, isso me parece fundamental. Foi Samuel Jonhson que afirmou que “a verdadeira arte da memória é a arte da atenção”. Talvez a atenção – que exige concentração, é o que falte nestes tempos líquidos.
A temática do encontro foi abrangente. Dividida em 2 módulos, o primeiro versou sobre aspectos relevantes à prática médica, abordados pelos professores Luis Eduardo Fontes e Dario Birolini, sob a coordenação do Dr. Álvaro Nagib Atallah. O Dr. Álvaro e o dr. Luis representam a iniciativa Cochrane no Brasil, entidade que busca dar um norte à prática médica pela democratização e capilarização da Medicina Baseada em Evidências em nosso país. Foi exatamente sobre este tema que se debruçou o dr. Luis Eduardo, os entrelaçamentos necessários entre a medicina baseada em evidências e a filosofia da Slow Medicine, como afirma este artigo que aborda os fundamentos teóricos da Medicina sem Pressa: ” … o profissional Slow ‘pratica a Medicina Baseada em Evidências, entendida como a integração dos resultados da pesquisa clínica, com a experiência própria e com as exigências e os valores do paciente e das pessoas próximas a ele, com base na relação entre os benefícios, os riscos e as incertezas’. O dr. Dario Birolini, nosso mentor e um dos precursores na divulgação das ideias da Slow Medicine no Brasil, falou em seguida sobre a ciência e a arte da avaliação clínica, tema que tem sido objeto frequente de suas reflexões, como ele afirma em comentário sobre um artigo de Francis Weld Peabody “….para complicar mais um pouco o panorama, (Peabody) alerta para o fato de que o atendimento oferecido nos hospitais tende a ser impessoal, pois não leva em conta o perfil do paciente e costuma ser feito por vários profissionais que muitas vezes valorizam os exames e esquecem a avaliação clinica, e alerta para o fato de que não adianta focalizar a atenção apenas em um órgão do paciente, pois ele é apenas uma parte de um ser humano”.
O segundo módulo do evento, coordenado pelo Dr. José Carlos Campos Velho, editor do site Slow Medicine Brasil, focou a importância da atenção multiprofissional enquanto um dos alicerces da filosofia da Slow Medicine. A psicóloga Sylvia Mello Silva Baptista abordou a ideia de uma Psicologia sem Pressa, sublinhando que o tempo desde sempre é uma ferramenta de trabalho do profissional de saúde mental, enriquecendo sua reflexão com o estudo dos mitos e o aporte que seu conhecimento podem trazer para a compreensão e o manejo do sofrimento mental. A geriatra Daniela Lima de Souza abordou, de maneira elegante, a delicada questão das práticas integrativas e seu entrelaçamento com a filosofia da Medicina sem Pressa. “Marco Bobbio, em seu livro ‘O Doente Imaginado’, afirma que, nas últimas décadas, diante do desenvolvimento da pesquisa clínica , construiu-se uma ilusão de que os resultados das pesquisas poderiam tornar-se o único guia do trabalho médico. Reiteramos que é importante resgatar a medicina como arte, não somente como ciência, pois ambos as perspectivas são importantes. A ciência melhora o curso da doença e arte permite oferecer o suporte moral ao paciente. Muitas das práticas integrativas servem como alicerce para que o paciente possa se olhar, focar em seu corpo e em sua mente, de maneira a conviver com sua doença de forma mais harmoniosa.” Em uma bonita construção de ideias, analisou os 10 princípios da Slow Medicine a partir de uma ótica inclusiva em relação às práticas integrativas. Em seguida, a advogada Lívia Callegari dissertou sobre “Direito, Bioética e Slow Medicine“, tema de artigo publicado em nosso site, onde faz uma genuína defesa da humanização da prática médica, apontando a Slow Medicine como uma forma para concretização – ou pelo menos para a oferta de elementos para reflexão – no que tange a estas estratégias de humanização. Para finalizar o encontro, tivemos a primorosa palestra da enfermeira Maria Júlia Paes da Silva, que abordou o assunto Slow Nursing. Existe muito pouca literatura sobre este tema, e o artigo publicado em nosso site faz uma extensa revisão e engrandece esta expressão com novos conceitos e elaborações. Em sua fala no Encontro, com a habilidade para comunicação que lhe é peculiar, Maria Julia manteve a platéia tantalizada no começo da tarde que já se insinuava, aprofundando a reflexão sobre a arte de cuidar, tão bem representada pelo trabalho da enfermagem.
Registramos a presença atenta de cerca de 100 pessoas, que participaram ativamente do evento, perguntando, questionando e trazendo à tona suas reflexões. A diversidade de profissionais, de várias áreas do conhecimento, de diferentes faixas etárias e momentos profissionais, provenientes inclusive de outros estados, de estudantes de medicina, psicologia, e de outras profissões da área da saúde, trouxe o colorido necessário para o encontro, que buscava trazer exatamente esta possibilidade: aproximar as pessoas, promovendo efetivamente um encontro real: o olho no olho, o aperto de mãos , o abraço.
Nossa colaboradora, a endocrinologista Suzana Vieira, encerrou o evento com um breve recado sobre a presença da Slow Medicine nas diversas redes sociais.
Não podemos encerrar sem o agradecimento à Associação Paulista de Medicina, e ao seu departamento científico, em especial as suas colaboradoras Mayara de Almeida Pedro e Marina Mallozzi. Sem este apoio e trabalho abnegado o encontro não teria acontecido.