Um encontro fortuito: Cinema, Humanismo e Slow Medicine

agosto 29, 2016
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Por Pablo González Blasco:

Considerações sobre o filme islandês “Fúsi”:


Encontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência – disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.

Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos – com muito esforço e modesto sucesso – fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar – para refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema – este filme islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.

A intuição funcionou, porque a partir desse momento, um compromisso tranquilo, sem stress, no ritmo da Slow Medicine, as ideias começaram a surgir, a conexão tomou forma. A figura do bom gigante islandês, assumiu proporções ainda maiores; não físicas, mas de estatura interior, de categoria humana, desenhando-se o que o título deste filme em espanhol representa: Coração gigante. Melhor e mais profundo do que a versão em inglês, Virgin Mountain que é tremendamente simplificador. O título original, em islandês, é simplesmente o nome do protagonista, Fúsi, como indicando que esgota a sua espécie, que é único e singular. Tal como ensina a boa teologia acerca dos anjos. Neste caso, um anjo imenso de traços vikings.

Fúsi é um homem enorme, na casa dos quarenta, que vive com a mãe, e tem alma de criança. Trabalha no aeroporto, em serviço externo de apoio, o que significa descarregar malas do avião e colocá-las na cinta transportadora. Em silêncio, em ritmo pausado e eficaz, sem nunca faltar ao serviço. Tem prestígio entre os colegas, embora não pareça ligar para isso. Aliás, desperta inveja e sofre perseguições, tudo provocado pela sua bondade contundente, por uma ingenuidade que insiste em acreditar, quase infantilmente, na boa vontade do ser humano. Como se não houvessem paixões e mesquinharias à solta. Mas também não se importa com isso: é indiferente a elogios e acossamentos. O supervisor preocupa-se e o convoca no escritório: “Ouvi dizer que está sofrendo bullying”. “Penso que não” responde com simplicidade. É como se esta gigantesca figura carregasse a própria atmosfera, alheio às turbulências do ambiente.

Fúsi é a criança grande que brinca com figurinhas, percebe as necessidades dos outros, encontra tempo -e dinheiro! – para dedicar-se a eles, está atento a todos e a tudo. Sem fazer barulho, com um low profile circundado pela bondade que transpira por todos os poros. Uma personificação real de como a bondade é capaz de cuidar – e de mudar – as pessoas, os que se aproximam dela. “É preciso afogar o mal em abundância de bem” -dizia um santo contemporâneo. E outro, o místico de Castela no século XVI, assinalava algo semelhante: “Onde não há amor, coloquemos amor, e obteremos amor”. Porque, no final, parece que é isso o que conta, o saldo de uma vida produtiva: “No outono da nossa vida seremos julgados pelo amor”, em palavras do mesmo autor.

Diariamente comprovamos, em nós e nos outros, como a vida corrida, a febre pela produtividade, a competição e as comparações – com o vizinho, com o colega, com o familiar – geram permanente inquietude e rendem susceptibilidades doentias. Reclamações e queixas, reivindicações inúmeras e, na prática, pouca resolutividade e ausência completa de preocupação real pelos demais. Neste cenário, uma figura como o nosso protagonista, que apresenta sustentabilidade anímica e transita incólume diante dos nervosismos espasmódicos, é algo invejável que faz pensar. E da inveja nasce a emulação, que é o lado bom da inveja: querer imitá-lo. Um modelo possível, não uma quimera filosófico-teórica.

Volto ao começo destas linhas e ao desafio da Slow Medicine e da minha intuição em ligar o modelo médico com este filme. O ritmo lento, a serenidade, o não querer fazer muitas coisas, mas fazer muito bem o que se decide levar a cabo. E vejo a figura do gigante islandês assumindo este papel com naturalidade. A densidade serena de Fúsi, que funciona como solução tampão para os problemas – ácidos e básicos – da nossa vida agitada. Com lentidão, sem ânsias de produtividade, a modo de uma turbina que gera milhões de watts de bondade, e ilumina o ambiente.

A bondade, como o nosso almejado estilo médico, também é artesanal. Como a das mães pacientes, a das avós que parecem terem tempo para tudo, ou melhor, tempo para o que interessa que nunca é o interesse próprio, mas o benefício dos outros. Lembrei da minha avó que gostava do pescoço e de asa do frango – o que facilitava a divisão na partilha da ave, sobrando o melhor para os outros. Depois descobri que esse gosto não era privilégio dela, mas de todas as avós, e das pessoas que tem o saudável hábito de pensar sempre nos demais.

Por contraste, também lembrei de uma história antiga de um colégio interno, que nunca soube se era verdadeira, mas é muito esclarecedora. Certo dia, um dos alunos teve durante o almoço uma crise epiléptica e teve de ser levado até o hospital. Na hora em que o retiravam, ouviu-se uma voz: “O bife dele é meu”. Desconcertante, instigante e revelador. O colega cruel exprimiu de modo cru o que talvez muitos outros pensavam e desejavam. Uma metáfora grosseira de atitudes que contemplamos diariamente. E até nos vemos envolvidos nelas. Tal é a condição humana. Não sei se somos lobos para os outros homens, como Hobbes dizia, mas aproveitar o bife sobrante é tentação presente. Fúsi nos faz entrever justamente o contrário e nos encanta com a atitude de quem voluntariamente cede o bife a quem está cego pelo próprio egoísmo. No final, o lucro é de quem soube ceder, sem queixar-se, colocando boa cara ao mau tempo, porque aliás não tem tempo ruim para ele. Um modelo invejável.

Mas o que tem a ver com tudo isto a medicina artesanal? Como conectar Fúsi com o humanismo médico que é, afinal, a nossa praia? Simplesmente com o exemplo de que é possível ser uma máquina geradora de bondade, serena, eficaz, que cuida das pessoas. Um exemplo possível, que se vê e se toca, que é do que carecemos hoje. Minha irmã, professora de filosofia costuma dizer-me: “O que você faz é simplesmente lembrar aos médicos aquilo que 70 anos atrás faziam, e acabaram esquecendo”. Difícil conseguir uma melhor definição com menos palavras.

O exemplo incarnado em alguém é capaz de acordar a lembrança, e assim formar as atitudes, solidificar a missão, promover a vontade de fazer um mundo melhor. Porque essa atitude – não apenas na medicina, mas na vida – não é coisa que se ensine com treinamentos de qualidade, projetos inúteis de humanização, quando há uma absoluta carência de exemplos. E o exemplo estimula e faz sonhar, porque os sonhos -como os de Fúsi- também fazem parte da educação. “Se você quer construir um navio, não chame as pessoas para juntar madeira ou atribua-lhes tarefas e trabalho, mas sim ensine-os a desejar a infinita imensidão do oceano” -dizia Saint Exupéry. No mundo corporativo, estamos saturados de cursos para cortar madeira, com certificações internacionais de qualidade e protocolos, e até algumas pitadas de liderança. Mas faltam exemplos. O exemplo do dia a dia, da turbina de bondade.

Desajustados. Esse é o título em português. Incomodou-me no início, porque não representa nada do que os outros títulos se atrevem a vislumbrar. Decidi ignorá-lo como mais uma infelicidade das nossas traduções, uma longa tradição que bateu o recorde com The Sound of Music, grotescamente traduzido por Noviça Rebelde, maculando um dos maiores musicais da história e indispondo-nos com a magnífica Julie Andrews que nem noviça era. Mas após esta reflexão escrita penso que o título até se encaixa. Sim, desajustados é o novo parâmetro para medir-nos a nós mesmos. Nós é que somos os desajustados, não o Fúsi. Ele é o exemplo contundente, o gold standard – para usar um termo que os médicos adoram – ao qual teremos de nos adaptar se queremos fazer a diferença. Com a Medicina, e com a própria vida.

Os Desajustados  , Islândia, 2015. Diretor: Dagur Kári.


Pablo González Blasco

Nascido na Espanha, é médico e Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Membro fundador e diretor científico da SOBRAMFA – Educação Médica e Humanismo, é autor dos livros “Medicina de Família & Cinema”,  “Educação da Afetividade através do Cinema”, ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema”  e “Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education”. Os principais temas de suas reflexões são a medicina de família, educação médica, humanismo e medicina. Conheça mais sobre o Dr. Pablo em seu site. Lá você vai encontrar textos, artigos, resenhas de livros e outros temas relevantes nesta area médica fundamental que são as Humanidades Médicas.


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