Um idoso acometido de câncer de próstata

fevereiro 17, 2019
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Esta é a mais nova categoria em nosso site: casos clínicos. Depois de uma experiência bem sucedida no Facebook, acreditamos que a exposição de casos clínicos pode mostrar a utilização das ferramentas obtidas através dos princípios da Slow Medicine na prática cotidiana. Nossa colaboradora Ana Lucia Coradazzi, oncologista e paliativista, abraçou esta tarefa com o talento e a sensibilidade que lhe é peculiar. Contrapondo uma visão ‘fast’ com uma visão ‘slow’, ela disseca, de maneira didática e objetiva, situações clínicas onde um olhar sem pressa faz toda a diferença.

Por Ana Lucia Coradazzi:

A VERSÃO FAST

OP, 88 anos, é acompanhado da filha durante a consulta com o oncologista. OP tinha recebido o diagnóstico de câncer de próstata há 6 anos, com metástases ósseas disseminadas, e vinha fazendo tratamentos hormonais desde então. Vinha se queixando de piora importante das dores ósseas nos últimos 3 meses, com fadiga intensa. Seus exames mostravam elevação progressiva do PSA. Ao exame físico OP apresenta caquexia moderada, sem outras alterações significativas. O oncologista explica que o tumor se tornou refratário aos tratamentos hormonais e que ele poderia receber quimioterapia, cujo benefício tem sido demonstrado em vários estudos clínicos recentes. A filha concorda em tentarem a quimioterapia, que é iniciada 3 dias depois. OP evolui com náuseas, piora da fadiga e dores musculares após a quimioterapia, sendo hospitalizado para alívio dos sintomas. Durante a internação, apresenta febre e tosse produtiva, iniciando antibioticoterapia. Permanece hospitalizado por 12 dias. Após a alta, em retorno ambulatorial, o oncologista explica que ainda é cedo para saber se a quimioterapia será benéfica, e que eles podem manter o tratamento, reduzindo a dose do quimioterápico. OP recebe então o segundo ciclo de quimioterapia, após o qual apresenta piora muito importante da fadiga, sem melhora das dores pelo corpo. OP não consegue mais deambular sozinho e precisa de ajuda para o banho. Seus exames de monitorização mostram anemia (Hb = 7.6 g/dl e Ht = 22%), sendo necessária transfusão de hemácias. O oncologista então decide pela interrupção definitiva do tratamento oncológico, mantendo agendamento dos retornos mensalmente e orientando a filha a procurar o Pronto-Socorro caso OP tenha alguma intercorrência. Após duas semanas OP apresenta piora clínica, com fadiga severa, a ponto de não conseguir mais se virar na cama sozinho. Evolui com confusão mental, sendo levado ao Pronto-Socorro, onde é detectada novamente anemia (Hb = 6.7 g/dl e Ht = 20%), infecção urinária e insuficiência renal (creatinina = 3.6 g/dl e ureia = 201). OP é encaminhado à UTI, onde é realizada transfusão de hemácias e iniciada antibioticoterapia de amplo espectro e hidratação, sem melhora do quadro. O nefrologista é chamado, indicando diálise. Durante a diálise OP apresenta hipotensão severa, iniciando-se drogas vasoativas, com melhora discreta dos níveis pressóricos. Durante a noite OP apresenta nova piora clínica, sendo entubado. Logo após a entubação apresenta parada cardíaca, sendo reanimado por 15 minutos, durante os quais algumas das costelas são fraturadas. O óbito de OP é então declarado pelo intensivista, e a filha de OP é avisada por telefone sobre o desfecho.

A VERSÃO SLOW

OP, 88 anos, é acompanhado da filha durante a consulta com o oncologista. OP tinha recebido o diagnóstico de câncer de próstata há 6 anos, com metástases ósseas disseminadas, e vinha fazendo tratamentos hormonais desde então. Vinha se queixando de piora importante das dores ósseas nos últimos 3 meses, com fadiga intensa. Tem apresentado quedas frequentes em casa, alimentando-se menos e não tem conseguido usufruir da companhia da família, que sempre foi uma prioridade para ele. Seus exames mostravam elevação progressiva do PSA. Ao exame físico OP apresenta caquexia moderada, sem outras alterações significativas. OP diz ao médico que já desconfiava que o tratamento não estava mais funcionando, e que entende que não pode esperar muito mais tempo de vida. O que mais deseja é ficar o máximo de tempo com a família, desde que não se torne um fardo. Gostaria de controlar melhor as dores e a fadiga e evitar internações hospitalares, que o impediriam de usufruir esses momentos importantes. Considerando as expectativas de OP, o oncologista propõe que o tratamento seja definitivamente interrompido e que o controle dos sintomas seja prioridade máxima. Prescreve morfina e corticoides, ambos em doses baixas. Sugere acupuntura para controle das dores e da fadiga. Explica quais as possíveis complicações que o câncer de próstata costuma provocar nessa fase (hipercalcemia, fraturas, insuficiência renal, infecções) e orienta a filha sobre como proceder em cada uma delas para tentarem evitar ao máximo as internações hospitalares. OP mantém retornos mensais com o oncologista, ajustando as medicações de acordo com os sintomas apresentados. Após cerca de 3 meses, OP apresenta confusão mental e agitação. A filha entra em contato com o oncologista, que explica que é provável que esta seja a condição que levará OP ao óbito, e que é muito importante mantermos em mente os desejos expressos por ele. É providenciado acesso subcutâneo domiciliar para que OP receba as medicações necessárias (haloperidol, manutenção de doses baixas de opioides). OP apresenta melhora da agitação, mantendo-se dormindo a maior parte do tempo. Após 48 horas, OP evolui a óbito em casa, dormindo, na companhia da filha e de dois netos.

FAST X SLOW
Um dos principais pilares da Slow Medicine é o compartilhamento de decisões. Isso não significa que o papel do médico seja apresentar dados de estudos clínicos e perguntar se o paciente concorda ou não em receber o tratamento: isso é delegar ao paciente uma decisão, e não construir com ele uma estratégia. O compartilhamento de decisões inclui a compreensão do médico a respeito das prioridades do paciente, suas preferências, seus valores e suas condições clínicas. A partir dessa compreensão o médico propõe estratégias que sejam compatíveis com as expectativas do paciente, e oferece o apoio necessário para que o planejamento construído seja efetivado. Cabe ao médico apropriar-se das evidências científicas disponíveis, ser capaz de selecionar aquelas que são potencialmente benéficas para aquele paciente específico (de acordo com suas expectativas e prioridades) e descartar as que são desproporcionais ou incompatíveis com seu contexto de vida. Nem sempre é simples, nem sempre é fácil, muitas vezes nem mesmo é viável, mas é uma meta que precisa ser perseguida, em nome de uma prática médica com excelência.

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