Uma casa que não pode cair

junho 3, 2024
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Por Ana Coradazzi

“A chegada de uma doença grave escancara coisas que sabemos que existem (mas que muitas vezes escolhemos ignorar) e nos revela tantas outras que sequer poderíamos imaginar.”

Júlia Jalbut

O título já adverte sobre a complexidade do seu conteúdo: a privação do direito à fragilidade, à vulnerabilidade, à instabilidade. É a metáfora ideal para descrever a jornada de quem cuida de pessoas queridas que adoecem e que se veem obrigadas a vivenciar a difícil condição da terminalidade. E é exatamente o que Júlia Jalbut consegue fazer em seu livro: jogar luz à invisibilidade dos cuidadores, com sinceridade e delicadeza tocantes. Júlia parte de sua história pessoal como principal cuidadora dos pais – ele cardiopata e ela com diagnóstico de câncer de ovário -, mas seu livro vai muito além de uma biografia. Ela generosamente se propõe a ajudar as pessoas a encontrar um caminho mais leve, menos sofrido no processo de cuidar e no luto. E é justamente aí que, sem saber, ela escreve sobre Slow Medicine.

O livro narra as enormes dificuldades que nosso sistema de saúde – e nossa sociedade em geral – oferecem a quem dele necessita devido a condições crônicas como as insuficiências orgânicas ou o câncer: um sistema desenhado para resolver problemas mais do que para cuidar de pessoas. Um sistema baseado na Fast Medicine. Júlia fala com propriedade sobre os momentos dolorosos e difíceis do processo de cuidar, mas também compartilha seu imenso aprendizado e sua evolução rumo à paz consigo mesma. Ela enxerga a imensa importância do tempo no processo de cuidar: tempo para compreender as necessidades e limitações dos pais, para entender os processos médicos e as rotinas hospitalares, para adaptar-se às muitas realidades que precisou vivenciar durante seus anos cuidando dos pais, para entender-se a si mesma como um ser humano descolado de seu papel de filha/cuidadora. E fala, inclusive, da falta de tempo “do lado de lá”: o tempo que os profissionais da saúde conseguem dedicar ao cuidado real, às relações humanas com seus pacientes, é mínimo.

Júlia também escreve muito sobre qualidade de vida e o papel essencial dos pacientes e cuidadores em defini-la e preservá-la. É a partir do reconhecimento dos nossos próprios valores e expectativas que conseguimos expressar nossas necessidades e preferências: esse é o primeiro passo para que nossa autonomia seja respeitada. Num sistema de saúde que prioriza números e processos técnicos, pode ser trabalhoso e cansativo proteger nosso direito a um cuidado individualizado. Júlia sentiu isso na pele, e tornou-se uma voz sensata em meio ao automatismo dos nossos tempos atuais.

Mas o livro dela está longe de ser um dedo acusatório apontando as (muitas) falhas do nosso sistema. Júlia se utiliza da sua vivência para sugerir caminhos, muitos deles perfeitamente alinhados com os princípios slow. Entre eles, a compreensão do autocuidado não como um luxo, mas como ferramenta essencial para que o ato de cuidar do outro se viabilize. Isso vale não apenas para os cuidadores, mas também para os próprios pacientes (que podem e devem assumir seu autocuidado na medida em que puderem) e para os profissionais da saúde (que costumam não cuidar lá muito bem de si mesmos). Júlia traz um conceito valioso que aprendeu durante sua formação em Medicina Integrativa: a tríade do cuidado. Trata-se de entender o cuidado como o equilíbrio entre cuidar, cuidar-se e ser cuidado, transitando pelas três esferas de forma a não hipertrofiarmos uma delas em detrimento das outras. E, dentro dessa tríade poderosa, Júlia insere o que aprendeu das práticas integrativas como Ayurveda, yoga, meditação. Ela fala do valor imensurável das pausas, do “desacelerar”. Nada mais slow.

Enfim, Uma Casa Que Não Pode Cair é verdadeiramente a versão da prática da Slow Medicine desenhada para pacientes e cuidadores. Os princípios slow do Tempo, Individualização, Autonomia e Autocuidado, Qualidade de Vida, Medicina Integrativa e – talvez principalmente – Paixão & Compaixão permeiam todo o seu texto, indicando direções, acolhendo angústias, e enchendo seus leitores da esperança de um mundo em que cuidarmos legitimamente uns dos outros seja a regra, e não a exceção.

Ana Coradazzi é médica oncologista e paliativista, escritora e blogueira. Sua obra mais recente foi escrita em parceria com André Islabão, médico e colaborador do Movimento Slow Medicine Brasil, e se chama Slow Medicine, sem pressa para cuidar bem.

1 comentário

  1. Infelizmente conseguimos entender quanto a saúde e preciosa somente quando já não a temos mais.

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