Uma jovem com dor em baixo ventre

agosto 11, 2021
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por Suzana Vieira e Ana Lucia Coradazzi:

“O óbvio é aquilo que ninguém enxerga, até que alguém o expresse com simplicidade.”

Khalil Gibran

A VERSÃO FAST:

MGV, sexo feminino, 27 anos, branca, procura o clínico geral do Posto de Saúde devido dor em baixo ventre e aumento do volume abdominal há mais ou menos 2 meses. Apresenta excesso de pelos em região de mento e buço, irregularidade menstrual (ciclos esparsos, achava que a última menstruação tinha ocorrido há uns 3 meses) e obesidade. Relata história de “cisto ovariano” diagnosticado há 7 anos. O médico solicita dosagens hormonais e a encaminha para endocrinologista, pensando em síndrome dos ovários policísticos. Cerca de um mês após a paciente procura o Pronto-Atendimento devido piora das dores em baixo ventre. O médico plantonista solicita um RX de bacia e receita analgésicos, liberando-a a seguir sem informá-la sobreaquaisquer achados radiológicos. Após duas semanas a paciente comparece à consulta previamente solicitada com endocrinologista, mantendo as mesmas queixas e insistindo para que fosse solicitada uma ressonância magnética do abdome para diagnóstico do aumento de volume. A médica verifica os resultados das dosagens hormonais trazidos pela paciente: hormônios tireoideanos normais, prolactina 10 vezes acima do limite superior da normalidade, proteína carreadora de hormônios sexuais aumentada em três vezes, níveis de testosterona livre e gonadotrofinas indetectáveis, glicemia e insulina normais. Segundo a paciente, sua última menstruação ocorrera há cerca de 3 ou 4 meses e não fazia uso de qualquer medicação. Ao ser questionada sobre sua atividade sexual, a paciente relembra ter tido relações sexuais sem proteção há 7 meses. Ao exame físico, a médica detecta aumento da pilificação em face e discreta alopecia, peso = 100 kg, altura = 1,65m (IMC = 36.7 kg/m2) e massa palpável em baixo ventre, estendendo-se até acima da cicatriz umbilical. Ao analisar o RX de bacia solicitado no Pronto-Atendimento, observa-se a calota craniana de um feto na topografia da bacia. É realizada cardiotocografia, que confirma presença de batimentos fetais, sendo então feito encaminhamento da paciente para exames pré-natais e acompanhamento obstétrico.

A VERSÃO SLOW:

MGV, sexo feminino, 27 anos, branca, procura o clínico geral do Posto de Saúde devido dor em baixo ventre e aumento do volume abdominal há mais ou menos 2 meses. Apresenta excesso de pelos em região de mento e buço, irregularidade menstrual (ciclos esparsos, achava que a última menstruação tinha ocorrido há uns 3 meses) e obesidade. Relata história de “cisto ovariano” diagnosticado há 7 anos. O médico então questiona sobre a possibilidade de gravidez, e a paciente relembra ter tido relações sexuais sem uso de métodos contraceptivos há cerca de 5 ou 6 meses. Ao exame físico, o médico detecta aumento da pilificação em face e discreta alopecia, peso = 100 kg, altura = 1,65m (IMC = 36.7 kg/m2) e massa palpável em baixo ventre, estendendo-se até a cicatriz umbilical. É solicitada dosagem de beta-HCG, que confirma a hipótese diagnóstica de gravidez. A paciente é então encaminhada para realização de exames pré-natais e acompanhamento obstétrico.

FAST VERSUS SLOW:

O caso relatado acima revela claramente o impacto dos achados de exame físico no diagnóstico, principalmente quando o paciente não traz informações precisas em sua história médica. A médica Victoria Sweet, em seu livro God’s Hotel, considera o exame físico tão crucial que adota uma rotina pouco ortodoxa ao avaliar pela primeira vez seus pacientes: ela começa sempre pelo exame físico, feito da forma mais detalhada possível, buscando as pistas que o corpo revela quando algo está errado. Somente após essa primeira “leitura” ela busca dados na história do paciente que possam explicar os achados do exame físico. Segundo a Dra. Sweet, os achados clínicos são mais precisos que a história extraída do paciente, pois não estão sujeitos a interpretações pessoais, emoções ou capacidade de memória do paciente.

Na versão FAST do caso acima, a paciente foi examinada pela primeira vez apenas em sua terceira consulta médica (com a endocrinologista). Como nos mostra a versão SLOW, uma história médica minimamente mais detalhada (que incluísse o histórico sexual da paciente) e um exame físico do abdome poderiam ter evitado exames laboratoriais e radiológicos desnecessários (inclusive com potencial deletério para o bebê), além de terem permitido o diagnóstico mais precoce da gestação, possibilitando o acompanhamento adequado da paciente e da criança. Trata-se da adoção, na prática clínica, do princípio mais importante da Slow Medicine: o TEMPO. Tempo para extrair uma história clínica mais eficiente e realizar um exame físico bem feito, aumentando exponencialmente as chances de um diagnóstico mais preciso. Trata-se ainda do uso parcimonioso da tecnologia (décimo princípio slow), evitando a realização de exames desnecessários e/ou prejudiciais ao paciente. É quando nos afastamos de princípios como esses que deixamos de ser capazes de diagnosticar algo tão simples quanto uma gravidez.

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Caso clínico enviado pela nossa colaboradora, Dra. Suzana Vieira, endocrinologista.

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