Por José Renato Amaral:
“Nunca antes na história da humanidade os métodos mais ou menos científicos de prolongar a vida foram discutidos de maneira tão incessante em toda a sociedade como em nossos dias. O sonho do elixir da vida e da fonte da juventude é muito antigo, mas só assumiu uma forma científica – ou pseudocientífica – em nossos dias. A constatação de que a morte é inevitável está encoberta pelo empenho em adiá-la mais e mais com a ajuda da medicina e da previdência, e pela esperança de que isso talvez funcione”
Norbert Elias, 1982
A Sra. Anita foi uma das primeiras pacientes muito idosas que de que cuidei. Conheci-a no primeiro ano de residência em Geriatria, em 1999, com a idade de 104 anos, pelo que se conclui que nasceu em 1895. Internou-se por icterícia a esclarecer, que logo levou ao diagnóstico de câncer de pâncreas. Era uma senhora italiana muito simpática, agradável e bem-disposta, ou seja, uma velhinha fofa. Não tinha antecedentes mórbidos de relevância (ou pelo menos que eu me recorde). Das coisas que mais me impressionaram de toda essa história foi a reação de sua irmã – não recordo qual sua idade, mas, por óbvio, tratava-se de outra idosa – que, ao ter ciência do diagnóstico, prontamente perguntou; “Mas doutor, como é que pode? Ela nunca teve nada! ”
É evidente que não se espera lampejos de racionalidade nesses momentos, a todos é garantido o direito à negação e ao enfrentamento; contudo, não pude disfarçar meu espanto ao ser instado a fornecer explicações sobre o adoecimento de uma centenária. Tal estranhamento também se deve ao fato de que, felizmente, em geral as pessoas conformam-se com relativa facilidade com a enfermidade e a morte de seus familiares idosos, de modo que a reação da irmã da Sra. Anita foge mesmo ao habitual. Provavelmente, quando elas eram crianças, ninguém perguntaria a um médico porque determinado idoso adoeceu ou morreu. Mas elas cresceram no século XX, quando a Medicina moderna invadiu definitivamente corações e mentes de toda a sociedade.
Em 1999, enquanto eu era o residente que cuidava da Sra. Anita, James Goodwin, professor de Geriatria da Universidade do Texas, publicou um ensaio chamado “Geriatrics and the Limits of Modern Medicine”, no New England Journal of Medicine. No texto, ele comenta essencialmente sobre como o envelhecimento e a velhice, que são componentes normais do nosso ciclo vital, passaram a ser problemas médicos. Na verdade, Goodwin lembra que toda a experiência vital passou a ser um problema médico, basta observar como vivemos, da vida intrauterina à velhice, sempre sob a devida assistência à saúde. O autor cita o livro de Ivan Illich, “Medical Nemesis”, de 1975, uma áspera, porém instigante crítica à medicalização da vida. Uma das premissas fundamentais de Illich é a de que a Medicina se apropriou do cuidado com a saúde de modo tão abrangente como o próprio conceito de saúde, expropriando do indivíduo algo que até então lhe pertencia.
Illitch fundamenta sua dissertação em muito estudo, e toca num problema contemporâneo. Muitas críticas podem ser feitas ao seu trabalho, e sinceramente não sei se estou à altura para fazê-las, mas acho que muito do ceticismo com a Medicina “moderna” dos anos 70 já não mais se justifica, pois hoje há resultados sólidos no tratamento das afecções mais comuns, incluindo-se aí doença cardiovascular e câncer, as campeãs dentre as causas de mortalidade. O reaparecimento de epidemias como o sarampo em países onde segmentos da sociedade decidiram gerir a saúde por sua própria conta e risco, de modo divergente do preconizado pelas sociedades médicas, também demonstra que provavelmente as pessoas se beneficiem de determinadas intervenções na saúde pública, ainda que delas não sejam protagonistas.
Goodwin, em seus ensaios, enfatiza uma premissa um pouco distinta da de Ilitch: a de que a Medicina se afastou muito de sua missão fundamental, que é a de aliviar o sofrimento. Embora pelo menos desde Francis Bacon já se espera da Medicina a preservação da saúde e o prolongamento da vida, a essência desse ofício gravita em torno do diagnóstico e tratamento das perturbações do corpo e da mente; Goodwin, contudo, provoca-nos questionando como distribuímos nosso tempo entre o tratamento de “proto-doenças”, como ele denomina condições crônicas como hipertensão, osteoporose, etc. e o alívio do sofrimento, para concluir que a prática médica atual não funciona muito bem para os idosos, por três razões principais: a medicalização da vida, a primazia do diagnóstico e o sistema de pagamento dos médicos.
Medicalização geralmente é um termo pejorativo, usado para designar o enquadramento de determinada condição como questão de saúde. Por exemplo, muitas crianças que algumas décadas atrás seriam apenas classificadas como levadas são, atualmente, diagnosticadas como portadoras de hiperatividade, podendo eventualmente ser medicadas para tal condição. A sociedade não é necessariamente refém da medicalização: o movimento gay conseguiu excluir a homoafetividade da lista de transtornos mentais, para ser considerado simplesmente um modo de relacionamento entre pessoas.
Analogamente, quando condições outrora “normais” como dificuldades em se recordar de fatos recentes, menor agilidade e algum desconforto articular e despertares noturnos para urinar são elevados à categoria de diagnósticos como comprometimento cognitivo leve, artrite e noctúria, podemos falar em medicalização. Goodwin argumenta que, se formos detalhistas com a avaliação geriátrica, não faltarão oportunidades para se medicalizar. Não obstante, hoje sabemos que diversas condições até algum tempo atrás consideradas normais em idosos beneficiam-se de intervenção, como o tratamento da hipertensão ou da doença aterosclerótica. Se já é discutível a possibilidade de se discernir entre o que é normal e patológico no envelhecimento, tanto mais difícil é definir quais alterações merecem ou não ser medicalizadas.
Um problema correlato é o que o autor denomina a primazia do diagnóstico, a exigência em se condicionar o tratamento a um diagnóstico acurado. Evidentemente, o diagnóstico correto é um excelente preditor no sucesso do tratamento; entretanto, há casos em que o alívio do sofrimento não deveria precisar esperar pela precisão que atualmente se pode obter, assim como no processo de se chegar a um diagnóstico atualmente não é raro descobrirmos tantas outras condições que nos desviam do caminho inicialmente traçado. Em idosos isso é particularmente problemático porque, a bem da verdade, procurando bem, você encontra a patologia a toda hora: a radiografia de tórax pode revelar calcificação de aorta e achatamento vertebral, a endoscopia pode mostrar atrofia de mucosa gástrica, o ecocardiograma vai evidenciar alteração de relaxamento… Uma correção forçada dessa rota acaba sendo imposta pelas operadoras de planos de saúde, quando deixam de reembolsar por procedimento e passam a pagar por “pacotes” de internações hospitalares, o que, indiscutivelmente, altera a condução dos casos, pelo menos no sistema de saúde norte-americano, conforme citado pelo autor, o que acaba sendo um problema adicional no cuidado aos idosos.
Vale lembrar que, em 1991, Goodwin já havia provocado o establishment geriátrico com um artigo publicado justamente no Journal of American Geriatrics Society, com a tese de que (de um modo bem resumido) atribuir a senilidade a doenças é ideológico. No seu raciocínio, tal ideologia pressupõe que envelhecer é bom, pois as coisas ruins não necessariamente precisam acompanhar o processo, uma vez que podem ser prevenidas e tratadas. Além de tal proposição não corresponder ao que se percebe do envelhecimento, a sua consequência mais extrema seria a imortalidade, afinal, se tudo for adequadamente administrado, nunca morreremos.
Não obstante, a Geriatria nasce justamente da demonstração que idosos podem ser tratados e reabilitados – precisamente o que Marjory Warren, a mãe da especialidade, fez na década de 1930 com idosos institucionalizados por problemas sociais. Warren demonstrou que boa parte das condições que suscitaram as internações eram condições clínicas tratáveis, com resultados práticos positivos tanto para os pacientes como para a economia. Desde então, cada vez mais condições dadas como “normais do envelhecimento” têm-se revelado merecedoras de tratamento, como a hipertensão arterial sistólica e a dislipidemia, que cerca de vinte anos atrás eram consideradas, dentro de certos limites arbitrários, perfeitamente aceitáveis.
A meu ver, o problema principal não é medicalizar ou não a velhice, mas sim discernir o quê, dentre tudo o que afeta a saúde de quem envelhece, é merecedor de intervenção médica ou não. Combater as rugas e a calvície e aumentar o vigor sexual costumam ser com muito mais frequência demandas espontâneas dos clientes que prescrições de seus clínicos. Há tratamento médico para essas condições, e há demanda para isso, opor-se a seu atendimento também seria puramente ideológico. Por outro lado, quando avaliamos o sofrimento psíquico dos idosos, parece-me muito mais difícil distinguir entre o que deve ser tratado, como depressão e ansiedade, e o que simplesmente não dá para tratar, pelo menos no sentido estritamente clínico, como a solidão e um certo cansaço existencial, tão frequente em pessoas muito longevas (a mim já causa algum sofrimento pensar em como deve ser a vida num mundo onde não se conheça mais ninguém mais velho que si próprio).
Nesta perspectiva, o Movimento Slow Medicine se coloca enquanto uma lente e uma ferramenta para observação dos fenômenos da velhice e do envelhecimento, do adoecer e do morrer. E busca instrumentalizar o médico em sua lide cotidiana com estas situações-limites, onde a decisão acerca da razão de ser de determinada intervenção, pode ter um significado muito particular para àquele idoso – enquanto um ponto de inflexão para a melhora ou, desafortunadamente, contribuindo para a deterioração de sua qualidade de vida.
A Sra. Anita foi tratada com a colocação de endoprótese na via biliar e sintomáticos, o que parece ter lhe proporcionado conforto e alívio durante o desenrolar da doença. Faleceu dois anos após o diagnóstico, encantou todos que a conheceram durante seus retornos e breves internações periódicas para trocar a tal endoprótese. Contou com a assistência da família (sua irmã logo conformou-se com o diagnóstico) e, em função de sua idade, ninguém cogitou tratamentos fúteis; pareceu-nos um caso com bom desfecho. Na prática, a maioria dos casos com os quais nos deparamos são mais desafiadores quanto ao que é problema médico ou não. Como o próprio Goodwin pontua num de seus artigos, precisamos pensar de maneira científica, e não ideológica. Conseguir discernir quais fenômenos do envelhecimento devem ser analisados e tratados com as ferramentas da Medicina e o que foge a esse escopo é nossa tarefa diária.
Referências
1 – Goodwin, JS. Geriatrics and the limits of modern Medicine. N Engl J Med1999; 340(16): 1283-85
2 – Goodwin, JS. Geriatric ideology: the myth of the myth of senescence. J Am Geriatr Soc 1991; 39: 627-31
3 – Illitch I. Medical nêmesis: the expropriation of health. London: Calder&Boyars, 1975
4 – Ebrahim S. The medicalisation of old age should be encouraged. BMJ 2002; 324: 861-63
5 – Camargo Jr KR. Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário. Cad Saúde Pública 2013; 29(5): 844-46
____________
José Renato Amaral é geriatra, fez graduação e residência pela Faculdade de Medicina da USP e é assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 2003. Embora paulistano, sempre sonhou em ser médico e morar numa chácara, no interior, mas deu nisso. Acredita nos fundamentos do movimento Slow Medicine como princípios para a boa prática médica contemporânea, tanto no interesse de cada indivíduo/paciente como para a sociedade como um todo.
Muito bom!!! Elucidado!!! Valeu a leitura!!!!