Tradução do artigo em italiano “Vera e falsa prevenzione – Gli screening e i pericoli della sovradiagnosi”, publicado no dia 12 de dezembro de 2018, escrito pelo Dr. Antonio Bonaldi, médico e expert em saúde publica, diretor de instituições de saúde na Itália por mais de 20 anos, coautor do livro “Slow Medicine: le parole della medicina che cambia”, presidente de Slow Medicine Itália, docente na Universidade de Verona – Itália.
Para que a discussão do texto possa ser deveras proveitosa, entendemos que primeiramente seja necessária uma tradução literal. Achado isso, mesclamos durante a tradução pontos de confluência com nossos saberes, como profissionais que atuam na área da saúde e mais precisamente com os princípios estabelecidos na Slow Medicine.
Desta forma o leitor poderá degustar de uma literatura fiel e ao mesmo tempo articulada e que convida para novos argumentos e reflexões.
Dito isso vamos ao brilhante e atual material que Bonaldi nos presenteia.
Do que depende a saúde?
Cada um de nós quer viver bem e por muito tempo e para esse objetivo, do qual a saúde é um dos principais requisitos, dedicamos uma boa parte da vida. Sem saúde, de fato, não se pode viver nem por muito tempo e quando estamos doentes, as coisas terrenas (dinheiro, poder, fama) perdem valor. Portanto, não é surpreendente que muita energia seja dedicada a preservar a saúde e tentar derrotar o sofrimento. Mas temos certeza de que essa energia toda e os gastos e escolhas sempre vão na direção certa?
Malgrado não! A experiência concreta desmente o enunciado. Estamos avançando silenciosamente, sendo arrebatados numa doce e ao mesmo tempo cruel realidade. “Nossos tempos estão desnorteados” já dizia Hamlet de Shakespeare, há quase quatrocentos anos, frase que cabe perfeitamente aos nossos dias. De lá para cá, esse desnorteamento aumentou e a humanidade, na mesma medida em que encheu a terra de conquistas e mazelas da ciência e da tecnologia, se viu esvaziada de um critério ético e moral com relação ao que realmente acreditar e em quem realmente acreditar. Nesse esvaziamento desumanizador que tantas e tantas patologias tem provocado, os homens procuram equivocadamente remédios e condutas que lhes possam devolver a saúde perdida ou retardar doenças imagináveis sem se dar conta da sua parcela de responsabilidade ativa frente ao que realmente precisa ser feito. A cada um cabe uma parcela singular e única de responsabilidade frente a acalentada preservação da saúde, parcela esta que não pode ser delegada a outrem.
Em geral, as pessoas são levadas a pensar que a saúde e a doença são apanágio dos médicos e por profissionais de saúde. Na verdade, eles conhecem o funcionamento do corpo, eles podem interpretar testes diagnósticos, entender quando tudo está indo bem e o que fazer quando estamos doentes. Autorizamos à medicina e seus profissionais o estabelecimento da fronteira entre saúde e doença bem como a autoridade para tratar nosso corpo e nossa mente, como se todos os distúrbios e doenças tivessem uma causa biológica e tratável por meio de drogas e procedimentos médicos e cirúrgicos.
A medicina certamente alcançou sucessos extraordinários e o cuidado nos ajuda a manter-nos em boa saúde, tanto que o acesso a serviços de saúde de boa qualidade seja reconhecido unanimemente como um dos mais importantes direitos humanos. Os serviços de saúde, no entanto, respondem por menos de um terço das mudanças na saúde das pessoas. Os 75% restantes estão associados a fatores genéticos, estilo de vida e, sobretudo, a circunstâncias ambientais e sociais.
Existe um imperativo genético, mas as causas externas e o estilo de vida tem um papel determinante na manutenção da saúde, onde as escolhas tem um papel relevante.
Para melhorar a saúde, portanto, devemos enfrentar as principais mudanças climáticas, respeitar o meio ambiente e a biodiversidade, rever o modo de construir casas e cidades, os modelos de produção agrícola e a maneira como nos alimentamos. Precisamos repensar os modelos através dos quais organizações e serviços de saúde são projetados e gerenciados, limitando o consumismo, reduzindo a produção de resíduos e incentivando a autoconfiança. É realmente notável que aqueles a quem foi confiada a tarefa de proteger nossa saúde prestem tão pouca atenção a esses fatores.
Por que se submeter a um rastreamento?
A confiança excessiva depositada na medicina transmitiu para a opinião pública a ideia de que, para salvaguardar a saúde, é suficiente realizar alguns exames preventivos. Diz-se, de fato, que é melhor prevenir do que remediar e que, para manter nossa saúde, é bom passar por consultas e exames periódicos que detectem doenças que ainda desconhecemos a existência, para tratá-las antes que seja tarde demais. É uma experiência comum, de fato, observar que quando as doenças são tratadas na fase inicial, elas frequentemente requerem tratamentos menos invasivos e a recuperação é mais fácil. Afinal, basta olhar em volta para se convencer. Quem não tem um parente ou amigo persuadido de ter sido miraculosamente salvo de um câncer que o teria levado direto ao cemitério se o tumor, graças ao rastreamento, não tivesse sido descoberto a tempo? E quem poderia duvidar, considerando que a própria pessoa é a prova viva daquilo que afirma?
Mas as opiniões, por mais respeitáveis que sejam, devem ser validadas por evidências. Se nos limitássemos a interpretar os fatos com base na observação direta, continuaríamos a argumentar que a Terra é plana e que o Sol gira em torno dela, porque é isso que observamos ao acordar todas as manhãs e é isso que milhões de pessoas pensaram por milênios. O que poderia estar escondido atrás do rastreamento? Quais benefícios e riscos estão associados a essa prática simples e apressada?
Armadilhas cognitivas
A única maneira confiável de demonstrar a eficácia de um rastreamento, ou seja, sua capacidade de melhorar o prognóstico de uma doença e prolongar a sobrevida, é realizar estudos experimentais ou observacionais apropriados, como, além disso, fazemos (ou deve ser feito) para qualquer outra intervenção de saúde. Na prática, em poucas palavras, você deve seguir por um determinado período de tempo dois grupos de pessoas que têm as mesmas características, para verificar se os sujeitos que passam pelo rastreamento tem melhor situação de saúde e vivem mais tempo dos outros.
Nossas observações, ao contrário, nos levam a superestimar a eficácia do rastreamento por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque o rastreamento tende a identificar mais facilmente os casos de doença que duram mais e geralmente têm um prognóstico melhor do que os mais agressivos e de crescimento rápido, que por essa razão tendem a escapar do rastreamento e manifestar-se espontaneamente. Em segundo lugar porque a sobrevivência medida a partir da data do diagnóstico, independentemente da eficácia do rastreamento, é mais longa do que os casos diagnosticados quando os primeiros sintomas ocorrem.
Além dessas duas armadilhas cognitivas, a tendência instintiva ao rastreamento é motivada pela ideia de que todas as doenças (especialmente as mais temidas), sem intervenções terapêuticas, estão destinadas a evoluir de uma fase inicial, caracterizada por alterações biológicas mínimas, até um estágio marcado por doença, caracterizado por uma procissão de sintomas mais ou menos graves e específicos.
Na realidade, os fenômenos biológicos são menos lineares e previsíveis do que imaginamos. O mesmo tipo de doença, na verdade, pode assumir características completamente diferentes. Em alguns casos, pode subitamente surgir e crescer de forma tumultuada e incontrolável. Em outros, pode ter uma evolução mais gradual e amena. Em outros casos, pode crescer lentamente, sem nunca chegar à fase sintomática. Finalmente, algumas doenças podem regredir e curar espontaneamente graças às defesas naturais do organismo (vis sanatrix naturae).
Infelizmente, o conhecimento atual não é capaz de prever a evolução de cada caso individual e, portanto, independentemente do estágio de desenvolvimento em que as mudanças são detectadas, somos forçados a tratá-las como se todas estivessem destinadas a progredir. Por outro lado, seria incompreensível, em face de um diagnóstico formal de câncer, decidir não fazer o tratamento adequado.
Sobreutilização de procedimentos diagnósticos
Pelas considerações acima é fácil se dar conta que quanto mais precocemente é descoberta a patologia, maior será o número de pacientes para cuidar, considerando que deveremos tratar também todas as alterações que sem o rastreamento nunca teriam se manifestado.
Nos últimos anos esta tendência de sobreutilização de procedimentos diagnósticos foi bastante estudada e foram evidenciadas as graves consequências que provocam nas pessoas sadias, desde problemas físicos (dor, incapacidade, efeitos colaterais de medicamentos e de radiação), psicológicos (ansiedade, distúrbios emocionais), sociais (comprometimento das relações familiares e sociais) e econômicos (custos diretos e indiretos associados ao tratamento) . Na Coreia do Sul, por exemplo, após a introdução do rastreamento, os tumores da tiroide aumentaram mas de 600%, fato que coloca a Coreia do Sul como o país com a mais alta incidência de tumores da tireoide no mundo. Situação parecida foi notada em um dos maiores estudos sobre rastreamento dos tumores de próstata, onde a proporção de homens com diagnostico de câncer resultou significativamente mais elevada no grupo com rastreamento (4,3%), quando comparado com o grupo controle (3,6%), sem evidenciar alguma diferença na mortalidade.
Em ambos os casos, portanto, o rastreamento atua como um possível indutor para o diagnóstico de tumores e os médicos e os cidadãos devem estar cientes e devidamente informados deste resultado. Exemplos semelhantes são bastante difundidos na medicina: o check-up (exames laboratoriais e exames de imagem realizados em pessoas saudáveis), por exemplo, não necessariamente oferece benefícios à saúde, e pode expor as pessoas à danos associados a sobreutilização de procedimentos diagnósticos.
O mercado e a mídia
Embora muitos estudos científicos tenham destacado os perigos associados ao sobrediagnóstico, o mercado parece não perceber isso. Basta dar uma olhada no Google para perceber o extraordinário negócio que se alimenta desse tipo de desempenho. Check up, rastreamento e linhas de cuidados personalizadas na prevenção, consistindo de análises laboratoriais de todos os tipos, exames complementares e visitas especializadas, são oferecidos com convites atraentes, promessas irreais e descontos especiais para um público consumidor em constante crescimento. Mesmo uma intervenção devastadora, como a triagem ultrassonográfica da tireoide, é veiculada como uma intervenção que salva vidas sem levantar uma única voz indignada.
O que podemos dizer então dos apelos resolutos ao primado da ciência que nos alcançam de uma maneira tão peremptória, quando as distorções deste tamanho passam em silêncio? Por que um mercado tão agressivo e enganoso não provoca uma reação de indignação e nada é feito para conter um fenômeno que desperdiça e produz efeitos tão nocivos à saúde? Por que o mercado, com a absoluta indiferença de médicos, dos políticos, da mídia, continua imperturbável, vendendo seus produtos milagrosos, aproveitando a credulidade das pessoas, vítimas ignorantes de uma fraude indecente?
O dilema do médico
Em um contexto cultural que exalta a tecnologia e promove o consumo, diante do dilema de prescrever ou não um determinado exame, o médico tende a escolher a primeira opção. Neste caso frequentemente o paciente fica satisfeito: se o rastreamento é negativo, pelo fato de estar bem; se o rastreamento for positivo porque, não tendo noção dos problemas associados à sobreutilização de procedimentos diagnósticos, aceitará de bom grado o sofrimento oriundo do tratamento. E se o médico não prescreve o rastreamento: se o paciente estiver bem, nem agradecerá ao médico por ter evitado os eventuais efeitos deletérios da sobreutilização de recursos diagnósticos, que em geral ele nem imagina. Porém, se o paciente ficar doente(e alguns com certeza ficarão doentes), ele poderá acusar o médico de negligência por não ter solicitado o rastreamento.
Além disso, frequentemente pode haver uma tendência, por parte do paciente, em querer fazer exames, de preferência de última geração, mais específicos e elaborados, “afinal é minha vida que está em jogo, para isso que pago meu caríssimo plano de saúde; tenho o pleno direito de querer o que acredito ser melhor para mim”. Infelizmente é assim o pensamento de uma significativa parcela da população brasileira, particularmente aqueles que tem acesso a planos privados de saúde, onde a solicitação de exames complementares não segue critérios racionais, e tampouco são solicitados após uma conversa franca com o médico, em uma decisão consciente e compartilhada.
Em suma, a questão é muito delicada, porque as instituições, a mídia e a propaganda incutem nas pessoas o medo de negligenciar algo teoricamente importante para a saúde, na ilusão de que fazer mais é sempre melhor e que a tecnologia pode resolver qualquer problema .
Conclusões
A saúde não é apenas uma questão restrita à medicina: para preservar a saúde, devemos cuidar da vida em todos os seus componentes: físico, mental, espiritual, social e ambiental. No campo da medicina preventiva, infelizmente há muito pouca coisa a fazer, mas para evitar dividir as pessoas empavoáveis e contrárias (como aconteceu com as vacinas), abstenho-me de propor uma lista de coisas a fazer ou a não fazer, até porque o conhecimento muda com o tempo. Para este fim, existem excelentes fontes de atualização, como a U.S. Preventive Services Task Force.
No entanto, mesmo nos poucos casos em que a eficácia foi demonstrada, não existe a decisão correta, mas apenas a opção adequada às características daquele indivíduo singular. Nesse sentido, os médicos podem atuar em dois níveis distintos:
Considerações
“Há tantas maneiras de se viajar pelas mesmas doenças, tantas escolhas a serem feitas, precisamos da companhia daqueles que amamos e precisamos da sabedoria para escolher o caminho que é só nosso. A objetividade clínica que deveria entrar em nossas decisões deve vir de um médico que esteja familiarizado com nossos valores e as vidas que temos levado e não só do virtual estranho cujas habilidades biomédicas superespecializadas convocamos. Nesses momentos, não é da gentileza de estranhos que precisamos, mas da compreensão de um médico amigo de longa data. Seja qual for a forma pela qual nosso sistema de saúde possa ser organizado, o bom senso exige que esta simples verdade seja considerada.”
Essas palavras foram escritas por Sherwin B. Nuland na edição de 1995 de seu livro “Como Morremos” e após 24 anos a mensagem continua atual. Faz-se necessária uma educação médica que atinja culturalmente a todos, profissionais da área da saúde e a população, de maneira uniforme. O consultório médico é lugar de ensino também, tentar curar alguém é também educá-lo, apontar para mudanças necessárias. Há uma frase atribuída a Hipócrates que diz: Antes de curar alguém, pergunta-lhe se está disposto a desistir das coisas que o fizeram adoecer.
A responsabilidade com o binômio saúde & doença recai dos dois lados da mesa, pela orientação segura e fidedigna por parte do médico e a responsabilidade pessoal e existencial por parte do paciente. O paciente precisa sentir-se como um participante ativo de seu processo vital, na sua busca pela saúde, seja ela com fins de prevenção ou de tratamento, tendo os profissionais de saúde como coautores e participantes dessa promoção.
___________________
Vera Anita Bifulco,Psicóloga Clínica, Psico-oncologista.Integrante da Equipe Multiprofissional de Cuidados Paliativos do Setor de Cuidados Paliativos da Disciplina de Clínica Médica da UNIFESP-EPM, período 2002 a 2007. Aperfeiçoamento em Gerontologia Social e em Psico-Oncologia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Ciências pelo Centro Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da UNIFESP-EPM. Diretora da Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia, gestão 2008/2010. Organizadora do livro “Câncer: uma visão multiprofissional”, editora Manole, Volumes I e II. Co-autora do livro Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde, editora Manole 2016. Co-organizadora do livro Cuidados Paliativos, Um Olhar Sobre as Práticas e as necessidades Atuais, Ed. Manole. Coordenadora do grupo de Apoio a Cuidadores de Alzheimer, Hospital 9 de Julho, Cerqueira Cesar.
O que torna um trabalho magistral é ver como ele nos modifica. A filosofia Slow Medicine é parte integrante de minha filosofia de vida pessoal e profissional, é como eu acredito no binômio saúde & doença.
_______________
Andrea Bottoni, italiano, de Roma, é medico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição, com Especialização em Medicina Desportiva na UNIFESP, tem Título de Especialista em Nutrologia e em Medicina do Esporte, é Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP, com MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper e MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo, vive no Brasil, em São Paulo, há 23 anos, felizmente casado com Adriana, também médica. Andrea acredita filosoficamente, culturalmente e cientificamente na Slow Medicine e no Slow Food. Acredita também na importância de um modelo de vida Slow Life.
PS: em itálico, os comentários dos autores.
Parabéns aos autores. Consultório médico é lugar de acolher, ouvir e educar pessoas. A abertura ao aprendizado faz bem a quem atende e a quem é atendido.
Parabéns aos autores, pois educar sempre será o melhor caminho. Fazer entender que na saúde vivemos cada vez mais sobre a influência do consumismo é primordial para uma boa relação com a “Saúde”